Cansada de tantas derrotas nos últimos tempos, a esquerda
simplesmente comemora como fosse um gol a forma como a Globo detonou a ministra
Damares Alves no quadro “Detetive Virtual” no Fantástico do último domingo. Uma
detonação bem seletiva: enquanto a emissora demonstra toda sua indignação e
furia investigativa nas questões identitárias e de costumes (vide a caça aos
abuso sexuais de João de Deus), as tragédias de Brumadinho e do incêndio no Centro
de Treinamento do Flamengo são encaixadas na narrativa “tragédia-emoção-homenagens”
– com direito a Galvão Bueno narrando os nomes dos jovens atletas mortos... Depois
de colocar Lula na prisão perpétua e por os militares no Governo, agora o novo
papel da Globo é varrer a luta de classes para debaixo do tapete – cônscia de
que, a partir de agora, acidentes como esses e a tensão social tenderão a
crescer sob o modelo econômico de extrativismo selvagem: vender commodities
módicas como ferro, manganês e jovens jogadores. Tudo a baixo custo, no limite
da irresponsabilidade. Enquanto isso, sem se ater à tática semiótica de
dissonância posta em ação pela parceria Governo/Globo, a esquerda reage de
forma reflexa a cada bravata “politicamente incorreta” e esquece da luta de
classes.
Enquanto a
esquerda vibra com o quadro do Fantástico chamado “Detetive Virtual” que desmentiu as afirmações bizarras da
ministra Damares Alves (“Estamos vivendo numa ditadura gay”, “Europa ensina a
masturbar bebês”, entre outros delírios), a Globo continua com suas feitiçarias
semióticas – depois da missão cumprida colocando Lula na prisão perpétua e
entronar um governo militar, agora seu escopo é varrer a luta de classes para
debaixo do tapete.
Afinal, os
feiticeiros da emissora sabem: o acerto de contas neoliberal sem limites,
prometido contra as garantias e direitos sociais (chamado de “reformas”), daqui
em diante somente vai acirrar as tensões sociais, ao retroceder o País a um
regime econômico extrativista colonial -
relegando à condição de país sub-industrial, mero exportador de commodities
(produtos primários de baixo grau de transformação).
Mas a esquerda
parece hipnotizada pela estratégia dissuasiva de criação sistemática de
dissonâncias por parte do atual governo: colocar ministros falastrões e
delirantes para desviar a atenção com seus ataques a questões culturais,
identitárias e de costumes progressistas. Talvez por falta do que comemorar nos
últimos tempos, quando vê uma emissora como a Globo apontar seus canhões contra
essas figuras, a esquerda vê nesses eventos a oportunidade de revanche, raros
momentos de prazer e comemoração como fosse um gol.
Porém, a mesma
fúria investigativa demonstrada pela emissora, por exemplo, na caça a João de
Deus, seus assédios e abusos sexuais da pedofilia a agressões físicas, até aqui
não foi demonstrada nas duas últimas tragédias em um país com uma atmosfera
cada vez mais pesada, triste e soturna: o genocídio de Brumadinho e a
negligência do Flamengo por trás do incêndio do alojamento e centro de
treinamento chamado “Ninho do Urubu”, matando dez jovens atletas.
A seletiva fúria investigativa da Globo contra João de Deus |
Fúria seletiva
Estrategicamente,
o furor investigativo e indignação do jornalismo global é muito bem seletivo:
enquanto os ataques aos temas identitários e agendas de costumes progressistas
do atual governo de ultradireita merecem indignação e caras de espécie de
jornalistas e apresentadores, os acidentes criminosos de Minas Gerais e Rio de
Janeiro apenas merecem a velha narrativa da tragédia-emoção-homenagens.
Enquanto a
cobertura da catástrofe de Brumadinho vai ampliando espaço para as “boas
notícias” e “homenagens” (doações em dinheiro da Vale para as famílias, as
aulas que voltam depois da tragédia, tudo no tom lacrimoso de praxe), vemos no
Fantástico familiares dos jovens atletas mortos no gramado do Maracanã de mãos
dadas em volta das quatro linhas, enquanto no telão aparecem, um a um, as fotos
da vítimas e a indefectível voz de Galvão Bueno dizendo o nome dos atletas –
afinal, o onipresente locutor já havia narrado o velório do time da
Chapecoense...
O “sanduíche” semiótico
A “pegadinha”
semiótica foi a narrativa, por assim dizer, “sanduíche”: para começar, as
emotivas imagens do Maracanã narrado por Galvão Bueno. Em seguida uma
reportagem comprometedora sobre a negligência do Flamengo (um grande container,
com apenas uma porta, sem rota de fuga, janelas gradeadas e parede recheada com
isolante térmico/acústico do mesmo material tóxico da trágica Boate Kiss). E para
finalizar, mais matérias de cunho passional: homenagens, aplausos e relatos
emocionados dos familiares sobre sonhos interrompidos. Espremida entre matérias
de cunho passional, a matéria sobre a apuração das responsabilidades perde a
força.
A narrativa tragédia-emoção-homenagem |
Somente ontem o
JN carregou nas denúncias de irregularidades (certamente pressionado por emissoras
concorrentes como a ESPN, que apresentou em destaque os laudos recentes da
prefeitura do RJ mostrando as gambiarras elétricas, deterioração e mofo nas
instalações), mas sempre no “sanduíche” do “voice roll” lacrimejante – discurso
vocal com ritmo para criar audição imersiva de sensações – clique aqui sobre o kit
semiótico de manipulação das multidões.
É evidente que a
Globo participa deliberadamente nessa treinada tabelinha com os delirantes e
falastrões ministros e generais do governo atual – enquanto o jornalismo é
“contra” a regressão das pautas identitárias e de costumes, por outro lado
fecha incondicionalmente com a agenda neoliberal que vai rifar todas as
conquistas políticas, constitucionais e econômicas de décadas.
É a luta de classes, estúpido!
Por que? É a
luta de classes, estúpido! Daqui em diante as tensões sociais serão crescentes.
E Brumadinho, combinado com o incêndio no Ninho do Urubu, é apenas a ante-sala
daquilo que nos aguarda.
Foram dois
acontecimentos com a mesma matriz causal: a radical conversão do Brasil em uma
economia extrativista, transformando as riquezas nacionais em commodities
módicas, mas com alto custo social.
Se não, vejamos.
Em Minas, enquanto os trabalhadores da Vale morrem sob o tsunami de lama
descendo a 80 km/h da barragem de rejeitos tóxicos, os únicos personagens
responsabilizados e presos (com toda a pompa da meganhagem policial nas telas
da TV) foram dois engenheiros de empresa terceirizada que concedeu laudo de
segurança e três funcionários da Vale. Enquanto CEO e executivos da empresa
seguem sem serem molestados, recebendo seus polpudos salários e bonificações,
sob o beneplácito da grande mídia.
Classe trabalhadora morre, engenheiro classe média é punido e elite... |
Deu para
perceber a distribuição das consequências e responsabilidades? A divisão entre
classe trabalhadora, classe média e elite?
E ao mesmo tempo
em que o Flamengo paga salários da ordem de um milhão de reais para jogadores
do elenco profissional, jovens são alojados num enorme container que mais
parecia uma ratoeira mortal.
Exploração e extrativismo
As duas
tragédias são amostras da calamidade social de um regime econômico de
exploração e extrativismo – commodities baratas (minérios e garotos pobres
cheios de sonhos) que serão vendidos como matéria-prima de baixo custo para
serem beneficiados no mercado externo: ferro que ajudará a construir a
infraestrutura chinesa e meninos-atletas que ganharão alto valor agregado no
mercado europeu para dar lucros aos grandes clubes do continente. Enquanto o
País vende esses insumos a preço de banana.
Baixo custo:
manganês e ferro extraídos sem os custos de proteção ambiental e trabalhista; e
meninos pobres que surgem aos borbotões atrás de sonho de virar um Neymar ou um
Messi – de resto, ídolos transformados em iscas para a atual geração,
alimentando a máquina de vender matéria-prima barata, com baixo custo, para o
mercado de futebol europeu.
Enquanto isso, o
voice roll lacrimejante e passional
da grande mídia narra imagens de jogadores com camisetas estampadas com uma rashtag corporativista, análoga ao notório
corporativismo das associações de Medicina: #ForçaFlamengo – os clubes ajudam a
estender o manto do sentimentalismo para proteger os seus pares e a integridade
do negócio: continuar a explorar garotos, com empresários já a reboque.
O “descuido” de
gestão do Flamengo (a sanha de querer reduzir drasticamente custos) foi apenas
um pequeno ponto fora da curva dentro do espírito extrativista generalizado – a
pobreza produz um insumo inesgotável, até mais do que ferro e manganês. A desigualdade
social crescente, aliada ao script midiático padrão da “tragédia-emoção-homenagens”,
mantem a máquina azeitada.
Os 300 mortos e
desaparecidos e Brumadinho e os 10 garotos mortos no incêndio serão
imediatamente repostos pelo desespero da pobreza e do desemprego.
Enquanto isso, a
esquerda se comporta tal como na batida metáfora do cão que caiu do caminhão de
mudança e perdeu o caminho: hipnotizada pelas bravatas identitárias das
estratégias de dissonância da alt-right e comemorando a detonação da Globo em
Damares Alves (afinal, depois de tantas derrotas, precisa minimamente comemorar
alguma coisa), esquece da luta de classes.
Ou será que apenas
está seguindo os passos da velha estratégia do “quanto pior, melhor”?
Se Bolsonaro
ainda não desceu do palanque eleitoral para governar, também a esquerda ainda não
foi à luta: continua hipnotizada pelas deliberadas provocações do “coiso”,
sempre reagindo de forma reflexa, ajudando o trabalho da grande mídia de tirar
da cara do distinto público o endurecimento da luta de classes.
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