domingo, fevereiro 17, 2019

Deus e o Diabo querem nossas memórias e identidades em "Coração Satânico"


Em 1987 o filme “Coração Satânico” (Angel Heart) de Alan Parker (“Pink Floyd - The Wall” e “Fama”) alcançou o mesmo impacto de “O Sexto Sentido” de Shymalan: violentas viradas narrativas que comprovam como as nossas certezas em relação à realidade podem sumir em um instante. Porém, no thriller de horror “Coração Satânico” o problema fica mais complexo quando as próprias memórias e a identidade podem nos enganar. Um detetive particular é contratado para encontrar uma pessoa desaparecida. A investigação leva a um mergulho no obscuro mundo de religiões, magia negra e vodu. Mostrando que tanto Deus como o Diabo nos iludem ao criar a impressão de que nossos cultos e rituais nos mantém sob o controle do caos em que vivemos. Filme sugerido pelo nosso leitor infatigável Felipe Resende. 

“Eu sei quem eu sou!”, grita desesperado Harry Angel diante do espelho numa das sequências finais do filme. 
Doze anos antes do diretor M. Shyamalan deixar boquiaberto os espectadores com a virada narrativa final de O Sexto Sentido, Alan Parker causou idêntico impacto com o filme Coração Satânico (Angel Heart, 1987). 
O então boxeador convertido em ator e que depois voltou a ser boxeador Mickey Rourke tinha se tornado um sex symbol, depois do sucesso do filme anterior, o drama erótico 9 ½ Semanas de Amor – por exemplo, em São Paulo ficou 30 meses em cartaz no Cine Belas Artes.
Logo depois estrelou Coração Satânico, um thriller de horror que, visto apenas na superfície, parece mais uma produção de gênero que explora e condena os males provocados pela adoração do Mal – de um lado religiosos batistas; e do outro, adoradores do Diabo e praticantes de magia negra e vodu. E se esgueirando no meio dessa polaridade, um detetive particular chamado Harry Angel, à procura de um homem desaparecido sob às ordens de uma misteriosa figura que pretende cobrar uma dívida contratual.
  Mas essa é apenas a superfície de uma trama que tem a lógica incerta de um pesadelo – o esforço de um detetive em tentar ligar fragmentos que nunca se encaixam. Tudo parece soar como os inúmeros filmes de detetive. Porém, quanto mais avançamos através da narrativa avança, mais desconfiamos que Harry Angel está iniciando algum tipo de jornada espiritual interior.
Angel é uma espécie de Philip Marlowe (personagem de ficção idealizado pelo escritor Raymond Chandler para protagonizar uma série de histórias de detetive e interpretado no cinema por atores como Humphrey Bogart e Robert Mitchum).


Marlowe é o protótipo de todos os detetives do gênero filme noir – sempre está em busca do que se perdeu. Ele vive mergulhado na obscuridade. As investigações o levam para um mundo fragmentado e incompreensível povoado por gente cujos compromissos e motivações não são claros. Defronta-se sem cessar com o mundo da simulação. O mundo com suas conexões e eventos são falsos, fabulações conspiratórias de algum demiurgo. No caso de Coração Satânico, o próprio Diabo.
Mas o filme leva às últimas consequências a principal característica do detetive noir: embora ele tente manter a racionalidade, objetividade e imparcialidade da investigação, sempre ao final acaba descobrindo que ele próprio é uma peça do mistério que precisa ser solucionado. Sempre há algo que o arrasta para alguma coisa deixada solta em seu próprio passado.
Por isso a natureza gnóstica do detetive noir: o mundo não só é uma ilusão como a chave para desfazer essa ilusão está dentro do próprio protagonista. Mas aceitar isso não é nada fácil.

O Filme

Todos os eventos se passam em 1955, começando em Nova York. Harry Angel é um obscuro detetive particular duro na queda, familiarizado com a vida dura no Brooklyn. Ele recebe uma chamada para visitar algum tipo de culto de adoração ao Diabo no Harlem e que estranhamente parece funcionar no mesmo prédio onde também existe uma igreja evangélica – desde a primeira cena, Coração Satânico recorrentemente faz paralelos entre cultos satânicos e evangélicos, Diabo e Deus.
Um homem estranho quer falar com ele. O nome dele é Louis Cyphre (Robert De Niro) e quer que Angel procure uma pessoa desaparecida cujo codinome é Johnny Favorite – o crooner de uma banda que alcançou um relativo sucesso.  Cyphre alega que ele fugiu das obrigações de algum tipo de contrato.


Johnny Favorite teria voltado da guerra com amnésia, praticamente um zumbi. E desapareceu, após uma estada em um hospital psiquiátrico em Manhattan. Harry Angel descobrirá que ele foi raptado do hospital por uma líder espiritual de uma seita diabólica, Margaret Kussemark (Charlotte Rampling), e seu pai rico Ethan (Socker Fontelieu).
O hospital psiquiátrico será o início da odisseia de Angel, passando por Coney Island e chegando a New Orleans, encontrando velhos e rabugentos músicos de blues, cartomantes, vodus, sacrifícios de galinhas, sangue de animais em rituais de possessão e seitas de adoração ao diabo em plena elite branca segregacionista em uma cidade negra.
A investigação passa a tomar aspectos inesperados e sombrios. Testemunhas que poderiam dar pistas sobre o paradeiro de Johnny são sistematicamente assassinadas no caminho de Harry e a polícia passa a querer incriminá-lo. Harry passa a desconfiar da sua própria sanidade já que as evidências parecem apontar para ele. 
Seu cliente começa a impacientar-se: Johnny tem um contrato firmado com ele, portanto, precisa ser rapidamente encontrado. A natureza desse contrato Louis não quer revelar, mas suspeita-se de algo sinistro.
Coração Satânico evita cair no maniqueísmo ao insistentemente mostrar em pé de igualdade o culto tanto a Deus quanto ao Diabo. A certa altura, Harry Angel demonstra a estranheza de cultos afros com tantos sacrifícios de animais: “Uma grande religião a de vocês...”, ironiza Angel para Epiphany (Lisa Bonet), uma garota “chevalier” – médium que é “cavalgada” por um espírito durante rituais vodu com a qual Angel terá um caso. “Grande é ter que crucificar uma pessoa...”, responde na lata Epiphany colocando o catolicismo num nível maior de crueldade.


O drama do Detetive – alerta de spoilers à frente

Mas o tema principal do tema do filme é a condição do Detetive – ao lado do Viajante e do Estrangeiro, são as três principais formas em torno da qual se estrutura a subjetividade contemporânea. Três arquétipos que situam a nossa condição humana nesse mundo.
O Detetive demonstra a nossa condição de paranoia num mundo que desconfiamos não ser autêntico e com o qual temos uma relação de estranhamento. Mas em Coração Satânico, o tema do Detetive adquire uma complexidade maior ao acrescentar os elementos da memória e identidade. 
O grito desesperado “Eu sei quem eu sou!” de Harry Angel parece ser uma alusão a “penso, logo existo” do filósofo René Descartes, pai do racionalismo. Essa é a miséria do Detetive num mundo de ilusões e simulações: ele tenta aplicar um método racional na investigação, tenta investigar a realidade com o distanciamento de um cientista. Ao invés do jaleco branco, usa chapéu e sobretudo, como se quisesse não se contaminar com a materialidade desse mundo que se desfaz em chuva e neblina.
Mas tudo que Angel encontra é o mesmo paradoxo do observador quântico: por mais que o Detetive pretenda a objetividade, mais a investigação torna ele parte do problema investigado, assim como na física quântica o observador altera aquilo que está sendo observado.


Coração Satânico é a narrativa da dissolução da identidade do Detetive ao descobrir que o próprio cliente, Cyphre, paga Harry Angel para que faça uma jornada interior e descubra os simulacros das suas memórias e identidade - de que afinal está à procura dele mesmo, após tentar fugir do contrato diabólica em sua existência anterior como cantor. 
O demônio veio cobrar a alma resultante de um pacto faustiano de um pobre diabo que tudo o que queria era uma carreira artística de sucesso.
Mas o importante no filme é que Alan Parker não desenvolve esse tema clássico de uma maneira maniqueísta. Tanto do lado dos brancos (os religiosos batistas), quanto dos negros (vodu e magia negra) há tentativas fracassadas de alguma forma negociar com o Demiurgo que comanda esse cosmos. Não há redenção ou salvação, mas apenas ilusão: achamos que conseguimos manipular forças espirituais e mágicas apenas com nossos rituais e cultos, para alcançarmos benesses ou ganhos. 
Quando, ao contrário, mais ainda amarramos as cordas que nos prendem a esse mundo.  


Ficha Técnica 


Título: Coração Satânico (Angel Heart)
Diretor: Alan Parker
Roteiro:  Alan Parker baseado em novela de William Hjortsberg
Elenco:  Mickey Rourke, Robert De Niro, Lisa Bonet, Charlotte Rampling, Stocker Fontelieu
Produção: Carolco International, Winkast Film Productions
Distribuição: TriStar Pictures
Ano: 1987
País: EUA

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