quinta-feira, janeiro 25, 2018

Morre Mark E. Smith, a Dialética Negativa do rock


Para muitos foi um compositor e vocalista que mudou tudo o que se pensava sobre palavras e linguagens. Capaz de produzir um efeito sísmico sobre o poder da música e as possibilidades do som, demonstrando que o rock poderia vir de algum lugar mais profundo e escuro. Muito além do entretenimento. Morreu aos 60 anos Mark E. Smith, líder do “The Fall”, banda que por 40 anos resistiu a todos os tipos de rótulos da indústria do entretenimento. Embora solidamente enraizado no punk das cidades industriais inglesas dos anos 1970, o prolífico compositor de 32 álbuns Mark E. Smith conseguiu produzir uma música atemporal, cujas composições referenciam nomes como Camus, Philip K. Dick, HP Lovercraft e Edgard Alan Poe, criando uma atmosfera de pesadelo sci-fi. Assim como B.B. King esteve para o blues, Mark Smith também esteve para o rock: criar na música aquilo que Theodor Adorno chamava de “dialética negativa” – a recusa de conciliação com esse mundo. Ao invés de síntese, criar o antagonismo radical: manter para sempre na música a memória da rudeza da vida nas notas atonais, nas composições obscuras e cheias de hipérboles ao estilo da escrita de Charles Bukowski.

“A humanidade está sempre duas doses abaixo do normal” 
(Humphrey Bogart)

Essa é uma postagem particularmente emotiva para esse humilde blogueiro que acompanhava há 30 anos a carreira dessa banda cuja música sempre foi, para mim, a trilha musical de muitos momentos.

Morreu aos 60 anos, nessa quarta-feira, em sua casa, o lendário vocalista e compositor da banda The Fall, Mark Smith. No ano passado foi forçado a cancelar uma série de shows devido a um bizarro problema de saúde que envolveu simultaneamente boca, garganta e vias respiratórias.

Seu último show foi no Queen Margareth Union, em Glasgow, onde cantou entrevado numa cadeira de rodas com o braço direito em uma tipoia. Em alguns dos últimos shows no ano passado, Mark Smith passou mal, terminando algumas apresentações cantando dos camarins, enquanto a banda permanecia no palco.

Para a grande mídia, era o estereótipo mais bem acabado do anti-herói cult: reputação temível, enigmático, irascível. Uma mistura de curiosidade, admiração e medo.

Mark Smith e "The Fall" na sua última formação

Um pesadelo para jornalistas


Mark Smith foi o único membro constante de uma banda que permaneceu em atividade por quatro décadas, enquanto passavam mais de 60 músicos. Entrevistá-lo era simplesmente um pesadelo para jornalistas e apresentadores, diante do senso de humor cáustico e sombrio do vocalista – veja uma pequena amostra disso clicando aqui, uma entrevista para a TV inglesa sobre a morte de John Peel, apresentador e o maior entusiasta da banda The Fall.  

Líder e dono da banda fundada em 1977, Mark Smith contratava e demitia músicos e técnicos numa velocidade espantosa. Um episódio emblemático, por exemplo, foi quando demitiu o técnico de som por ter pedido uma salada pelo telefone em meio a uma sessão de gravação.

Smith podia tanto ter um desempenho profissional de Frank Sinatra nos palcos, quanto produzir badernas épicas em shows, completamente bêbado quebrando peças do set da bateria, “cantando” (ou melhor, fazendo barulhos, estalos ou ruminando palavras) ou parando na delegacia de polícia depois de brigas com algum membro da banda.

Outro exemplo: faz parte das lendas, gravações ao vivo do The Fall na parte traseira de uma van em excesso de velocidade...

Em cadeiras de rodas nas últimas apresentações em 2017

Sua voz anasalada e o pesado sotaque de Manchester, arrastado e na maior parte do tempo incompreensível, conferiam uma sonoridade peculiar e única da banda no cenário do rock.

Mas Mark Smith não era um mero ogro que vivia visceralmente o lema punk “drink, fight and fuck!”. Era complexo, inteligente e um dos maiores letristas da história do rock. Suas referências estavam no escritor Camus (aliás, a inspiração para o nome da banda), Philip K. Dick, Edgard Alan Poe, HP Lovercraft entre outros, que conferiam a suas letras uma atmosfera de loucura sci-fi.

Uma produção prolífica e enigmática


A narrativa das músicas (uma produção prolífica com 32 álbuns ao longo da carreira) é fragmentada, sombria e enigmática, ironizando a indústria do entretenimento (“Hip Priest!”), a indústria farmacêutica que torna donas de casa de todo mundo felizes em casamentos opressivos (“Rowche Rumble” – trocadilho para o laboratório suíço Roche), buscando sombrias conspirações políticas nas mazelas do cotidiano (“Who Makes The Nazis”), a necessidade de beber um jarro de café para se tornar estranho, irritado e andar no fio da navalha para só, então, enxergar aquilo que está por trás das surpresas da vida (“Totally Wired”), o preço pago na vida conjugal em consequência de ser explorado  por trabalhos em turnos (“Shiftwork”), ou como as rápidas mudanças do cenário político afetam a sua vida – ou como “colocam pílulas amarelas no seu gin Gordon” em meio a “nuvens de canabis subsidiadas pelo Estado” e “cães pretos que estão a sua volta” (“Backdrop”).

 O que notabilizou Mark Smith e The Fall é a permanência através das mudanças. A espiral talvez fosse o símbolo que melhor representaria o compositor – por ser uma forma logarítmica, cresce de modo terminal sem modificar a forma total. É o ícone da temporalidade e permanência na mudança.

O que impressiona é que Smith influenciou tantas bandas como Sonic Youth, Pavement, Gorillaz, Blur entre outras do rock alternativo e britpop com uma musicalidade que nunca abandonou as raízes proletária das docas de Manchester e o impacto que um show da banda punk Sex Pistols provocou no jovem Mark Smith em 1976.

Mark E. Smith: famoso pelo seu senso de humor cortante

A Dialética Negativa de Mark Smith


Diferente das bandas que buscam uma sonoridade globalizada (composições limpas de qualquer acento regional ou local) para alçar voos nos mercados internacional, The Fall sempre manteve a mesma sonoridade e a mordida agressiva das letras.

Em essência, Mark Smith e sua banda The Fall esteve para o rock, assim como B.B. King esteve para o blues – ambos são representantes na música daquilo que o pensador Theodor Adorno chamava de “Dialética Negativa”.

Mark Smith cresceu em uma família de classe operária em Salford. Seu primeiro emprego foi em um frigorífico e, em seguida, nas docas de Manchester. Nos intervalos de almoço, escrevia suas músicas, até ser fortemente impactado pelos Sex Pistols e decidir formar sua própria banda.

Desde os álbuns seminais Witch Trails e Dragnet de 1979, a música e a sonoridade crua, repetitiva e hipnótica têm a marca das origens pobres, proletárias, de uma classe social frágil às rápidas mudanças políticas e econômicas. Assim como o blues com sua “polaridade vital” (de um lado, dor, raiva e indignação; e do outro alegria e esperança de um mundo diferente), o rock do The Fall fazia questão de resistir a todas as mudanças estéticas e musicais – punk, new wave, sintpop, britpop, grunge etc.

No sentido da filosofia da música de Adorno, era como se Mark Smith quisesse transcender e buscar um locus eterno em um mundo de aparências e ilusões de mudanças rápidas – mudanças que apenas mascaram a permanência da estrutura comercial da indústria de entretenimento.


Polaridade vital


Talvez por isso ele fosse tão irascível e às vezes violento com seus colegas de banda: mantinha todos sob suas rédeas para evitar que os novos e jovens integrantes contaminassem a musicalidade do The Fall com modismos passageiros.

Ou também a sua postura sempre arredia e introvertida, apesar de anos de turnês em diversas países (no Brasil esteve em 1989 em um show no Canecão, Rio de Janeiro) – dizia que “em todas as cidades que vou, eu nunca na verdade as visito. Podem ter os lugares mais bonitos do mundo, mas normalmente vou apenas até o bar mais próximo. Eu preciso de umas poucas horas para mim...”.

Essa “polaridade vital” (alegria/tristeza, dor/redenção) contem, como dizia Adorno, em sua essência uma dialética negativa que recusa a conciliação com esse mundo – ao invés de síntese dialética, a antinomia e o antagonismo radical: manter para sempre na música a memória da rudeza da vida nas notas atonais, nas composições obscuras e cheias de hipérboles ao estilo da escrita de Charles Bukowski.

Por isso, a extraordinária atemporalidade que Mark Smith conferiu à música da banda The Fall: embora solidamente enraizada no punk rock das cidades industrias inglesas dos anos 1970, sua poética, estética e musicalidade nunca ficou datada. Ao contrário de grandes bandas como Nirvana, datada para sempre no grunge.

10 Músicas que definiram Mark Smith e The Fall


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