Para
muitos foi um compositor e vocalista que mudou tudo o que se pensava sobre
palavras e linguagens. Capaz de produzir um efeito sísmico sobre o poder da
música e as possibilidades do som, demonstrando que o rock poderia vir de algum
lugar mais profundo e escuro. Muito além do entretenimento. Morreu aos 60 anos
Mark E. Smith, líder do “The Fall”, banda que por 40 anos resistiu a todos os
tipos de rótulos da indústria do entretenimento. Embora solidamente enraizado
no punk das cidades industriais inglesas dos anos 1970, o prolífico compositor
de 32 álbuns Mark E. Smith conseguiu produzir uma música atemporal, cujas
composições referenciam nomes como Camus, Philip K. Dick, HP Lovercraft e
Edgard Alan Poe, criando uma atmosfera de pesadelo sci-fi. Assim como B.B. King
esteve para o blues, Mark Smith também esteve para o rock: criar na música
aquilo que Theodor Adorno chamava de “dialética negativa” – a recusa de conciliação com esse mundo. Ao invés
de síntese, criar o antagonismo radical: manter para sempre na música a memória
da rudeza da vida nas notas atonais, nas composições obscuras e cheias de
hipérboles ao estilo da escrita de Charles Bukowski.
“A
humanidade está sempre duas doses abaixo do normal”
(Humphrey Bogart)
Essa é
uma postagem particularmente emotiva para esse humilde blogueiro que
acompanhava há 30 anos a carreira dessa banda cuja música sempre foi, para
mim, a trilha musical de muitos momentos.
Morreu
aos 60 anos, nessa quarta-feira, em sua casa, o lendário vocalista e compositor
da banda The Fall, Mark Smith. No ano
passado foi forçado a cancelar uma série de shows devido a um bizarro problema
de saúde que envolveu simultaneamente boca, garganta e vias respiratórias.
Seu
último show foi no Queen Margareth Union, em Glasgow, onde cantou entrevado numa
cadeira de rodas com o braço direito em uma tipoia. Em alguns dos últimos shows
no ano passado, Mark Smith passou mal, terminando algumas apresentações
cantando dos camarins, enquanto a banda permanecia no palco.
Para a
grande mídia, era o estereótipo mais bem acabado do anti-herói cult: reputação
temível, enigmático, irascível. Uma mistura de curiosidade, admiração e medo.
Mark Smith e "The Fall" na sua última formação |
Um pesadelo para jornalistas
Mark
Smith foi o único membro constante de uma banda que permaneceu em atividade por
quatro décadas, enquanto passavam mais de 60 músicos. Entrevistá-lo era
simplesmente um pesadelo para jornalistas e apresentadores, diante do senso de
humor cáustico e sombrio do vocalista – veja uma pequena amostra disso clicando
aqui, uma
entrevista para a TV inglesa sobre a morte de John Peel, apresentador e o maior
entusiasta da banda The Fall.
Líder e
dono da banda fundada em 1977, Mark Smith contratava e demitia músicos e
técnicos numa velocidade espantosa. Um episódio emblemático, por exemplo, foi quando
demitiu o técnico de som por ter pedido uma salada pelo telefone em meio a uma
sessão de gravação.
Smith
podia tanto ter um desempenho profissional de Frank Sinatra nos palcos, quanto
produzir badernas épicas em shows, completamente bêbado quebrando peças do set
da bateria, “cantando” (ou melhor, fazendo barulhos, estalos ou ruminando
palavras) ou parando na delegacia de polícia depois de brigas com algum membro
da banda.
Outro exemplo: faz parte das lendas,
gravações ao vivo do The Fall na
parte traseira de uma van em excesso de velocidade...
Em cadeiras de rodas nas últimas apresentações em 2017 |
Sua voz anasalada e o pesado sotaque de
Manchester, arrastado e na maior parte do tempo incompreensível, conferiam uma
sonoridade peculiar e única da banda no cenário do rock.
Mas Mark Smith não era um mero ogro que
vivia visceralmente o lema punk “drink, fight and fuck!”. Era complexo,
inteligente e um dos maiores letristas da história do rock. Suas referências
estavam no escritor Camus (aliás, a inspiração para o nome da banda), Philip K.
Dick, Edgard Alan Poe, HP Lovercraft entre outros, que conferiam a suas letras
uma atmosfera de loucura sci-fi.
Uma produção prolífica e enigmática
A narrativa das músicas (uma produção
prolífica com 32 álbuns ao longo da carreira) é fragmentada, sombria e
enigmática, ironizando a indústria do entretenimento (“Hip Priest!”), a
indústria farmacêutica que torna donas de casa de todo mundo felizes em
casamentos opressivos (“Rowche Rumble” – trocadilho para o laboratório suíço Roche),
buscando sombrias conspirações políticas nas mazelas do cotidiano (“Who Makes
The Nazis”), a necessidade de beber um jarro de café para se tornar estranho,
irritado e andar no fio da navalha para só, então, enxergar aquilo que está por
trás das surpresas da vida (“Totally Wired”), o preço pago na vida conjugal em
consequência de ser explorado por trabalhos
em turnos (“Shiftwork”), ou como as rápidas mudanças do cenário político afetam
a sua vida – ou como “colocam pílulas amarelas no seu gin Gordon” em meio a
“nuvens de canabis subsidiadas pelo Estado” e “cães pretos que estão a sua
volta” (“Backdrop”).
O
que notabilizou Mark Smith e The Fall
é a permanência através das mudanças. A espiral talvez fosse o símbolo que
melhor representaria o compositor – por ser uma forma logarítmica, cresce de
modo terminal sem modificar a forma total. É o ícone da temporalidade e
permanência na mudança.
O que impressiona é que Smith influenciou
tantas bandas como Sonic Youth, Pavement,
Gorillaz, Blur entre outras do rock alternativo e britpop com uma
musicalidade que nunca abandonou as raízes proletária das docas de Manchester e
o impacto que um show da banda punk Sex Pistols provocou no jovem Mark Smith em
1976.
Mark E. Smith: famoso pelo seu senso de humor cortante |
A Dialética Negativa de Mark Smith
Diferente das bandas que buscam uma
sonoridade globalizada (composições limpas de qualquer acento regional ou
local) para alçar voos nos mercados internacional, The Fall sempre manteve a mesma sonoridade e a mordida agressiva
das letras.
Em essência, Mark Smith e sua banda The Fall esteve para o rock, assim como
B.B. King esteve para o blues – ambos são representantes na música daquilo que
o pensador Theodor Adorno chamava de “Dialética Negativa”.
Mark Smith cresceu em uma família de
classe operária em Salford. Seu primeiro emprego foi em um frigorífico e, em
seguida, nas docas de Manchester. Nos intervalos de almoço, escrevia suas
músicas, até ser fortemente impactado pelos Sex
Pistols e decidir formar sua própria banda.
Desde os álbuns seminais Witch Trails e Dragnet de 1979, a música e a sonoridade crua, repetitiva e
hipnótica têm a marca das origens pobres, proletárias, de uma classe social
frágil às rápidas mudanças políticas e econômicas. Assim como o blues com sua
“polaridade vital” (de um lado, dor, raiva e indignação; e do outro alegria e
esperança de um mundo diferente), o rock do The
Fall fazia questão de resistir a todas as mudanças estéticas e musicais –
punk, new wave, sintpop, britpop, grunge etc.
No sentido da filosofia da música de
Adorno, era como se Mark Smith quisesse transcender e buscar um locus eterno em um mundo de aparências e
ilusões de mudanças rápidas – mudanças que apenas mascaram a permanência da
estrutura comercial da indústria de entretenimento.
Polaridade vital
Talvez por isso ele fosse tão irascível e
às vezes violento com seus colegas de banda: mantinha todos sob suas rédeas
para evitar que os novos e jovens integrantes contaminassem a musicalidade do The Fall com modismos passageiros.
Ou também a sua postura sempre arredia e
introvertida, apesar de anos de turnês em diversas países (no Brasil esteve em
1989 em um show no Canecão, Rio de Janeiro) – dizia que “em todas as cidades
que vou, eu nunca na verdade as visito. Podem ter os lugares mais bonitos do
mundo, mas normalmente vou apenas até o bar mais próximo. Eu preciso de umas
poucas horas para mim...”.
Essa “polaridade vital” (alegria/tristeza, dor/redenção) contem, como
dizia Adorno, em sua essência uma dialética negativa que recusa a conciliação
com esse mundo – ao invés de síntese dialética, a antinomia e o antagonismo
radical: manter para sempre na música a memória da rudeza da vida nas notas
atonais, nas composições obscuras e cheias de hipérboles ao estilo da escrita
de Charles Bukowski.
Por isso, a extraordinária atemporalidade
que Mark Smith conferiu à música da banda The
Fall: embora solidamente enraizada no punk rock das cidades industrias
inglesas dos anos 1970, sua poética, estética e musicalidade nunca ficou
datada. Ao contrário de grandes bandas como Nirvana, datada para sempre no grunge.
10 Músicas que definiram Mark Smith e The Fall
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