O filme
japonês “After Life” (Wandafuru Raifu, 1998), de Hirokazu Koreeda, é um ponto
fora da curva das representações do pós-vida no cinema. O filme combina duas
representações que sempre se opuseram: de um lado, a representação do céu como
uma organização hierárquica com porteiros, anjos e tribunais; e do outro o céu
solipsista, como projeção dos nossos sonhos, memórias e desejos. Um grupo de
recém-falecidos chega a um velho prédio, no qual são recebidos por funcionários
que explicam que morreram. Os funcionários são roteiristas e produtores de
cinema. A missão: escolher uma memória a partir da vida de cada um. Para ser
roteirizada e transformada em um filme que reconstitua a cena mais feliz que
cada um levará para toda a Eternidade. Enquanto todo o restante da vida será
esquecido. Uma fábula sobre o tempo, morte e memória. Mas também suscita uma
reflexão sobre um tipo de memória criada a partir dos simulacros da imagem.
“Todos estão tentando
chegar no bar/ O nome do bar é chamado Céu/ a banda do Céu toca minha música
favorita/ O Céu é o lugar onde nada acontece/ Quando esse beijo terminar/ ele
irá começar de novo/ E não será nada diferente/ Será exatamente o mesmo/ É
difícil imaginar que nada mais / Possa ser tão excitante, possa ser tão
divertido”. (“Heaven”, Talking Heads)
Como
nenhum cineasta jamais morreu e voltou do outro lado com imagens do além, as
representações da vida pós-morte no cinema revelam muito mais as transformações
da vida terrena do que de alguma existência extra-corpórea.
O tema
da existência de vida pós-morte passou a interessar o cinema na II Guerra Mundial pelo impacto
cultural de milhares de soldados mortos nos campos de batalha. Filmes mostrando
soldados chegando ao céu para serem recompensados pelo sacrifício e esforço,
além dos temas derivados (fantasmas e o sobrenatural) criaram uma lista imensa
de filmes nesse período: Beyond
Christmas (1940), A Guy
Named Joe (1943), A Matter
of Life and Death (Stairway to
Heaven 1946). Mesmo nos filmes onde a guerra não é o tema como Here Comes Mr. Jordan (1941), Heaven Can Wait (1943), Cabin in the Sky (1943), Angel on My Shoulder (1946), The Ghost and Mrs. Muir (1947),
and Sunset Boulevard (1949).
Nas três
décadas posteriores acompanhamos o decréscimo de filmes sobre o tema – com o
crescimento da sociedade de consumo, comédias, hedonismo e sci-fis dominaram a
pauta temática do cinema.
Com a
proximidade do final de século vemos um novo boom de filmes sobre o tema da
vida após a morte e, com a virada, só se intensificou: Amor Além da Vida (1998), O Sexto Sentido (1999), American Beauty (1999),What
Lies Beneath (2000), Dogma
(1999), Gladiator (2000), Final Destination (2000), Um Olhar do Paraíso (2009), Enter the Void (2009), The Discovery (2017) etc.
O medo pela
virada do milênio (“Bug do Milênio”, profecias sobre fim do mundo), a
insegurança pela guerra ao terrorismo e catástrofes ambientais seriam fatores que
impactariam a cultura como defende a pesquisadora Amanda Shapiro em sua tese “You Only Live Twice: The Representation of the
Afterlife in Film” (Miami University, 2011).
Anjos e solipsismo
No cinema há duas representações básicas sobre a vida pós-morte: a
representação do céu com nuvens, anjos tocando harpas, ao lado de um sistema
organizado, hierarquizado e burocrático com porteiros, tribunais etc. Ou o
“céu” solipsista, representação que domina desde o filme Amor Além da Vida:
diversos céus pessoais criados por projeções psicológicas a partir de seus
sonhos, memórias e desejos.
Mas o filme japonês After Life
(Wandafuru Raifu, 1998), de Hirokazu
Koreeda (um diretor que repetidas vezes explora temas como o tempo, a memória e
a morte), embora se situe na segunda onda do interesse da vida pós-morte pelo
cinema, é um ponto fora da curva: é uma curiosa combinação das duas
representações dos “céus”: a clássica e a solipsista. Talvez um reflexo da
própria sociedade japonesa, capaz de combinar a alta tecnologia e sociedade de
consumo do capitalismo avançado com práticas culturais feudais e imemoriais - assista ao filme abaixo com legendas em espanhol.
Koreeda aborda o tema de uma maneira pungente, delicada e
comovente: após a morte o que mais nós
prezamos da vida que passou? Depois de uma vida inteira de esforços pela
carreira, dinheiro e o sucesso, se fossemos forçados a escolher apenas uma
única memória que sintetizasse a nossa vida e levasse essa lembrança para toda
eternidade, qual momento ou cena da vida escolheríamos?
Para After Life, certamente
escolheríamos pequenas lembranças ligadas a aromas, texturas, sons, sussurros,
confissões amorosas, afagos, olhares e outras qualidades sensoriais fugidias,
que passam batidas pela nossa consciência e são esquecidas em nossa corrida por
conquistas materiais. Mas, embora esquecidas, foram importantes na estruturação
de quem nós somos: personalidade, caráter e, principalmente, capacidade de
empatia e amor.
Tudo pode parecer de um sentimentalismo piegas, mas o método narrativo
escolhido pelo diretor garante um distanciamento objetivo: uma combinação de
atores experientes e não profissionais cujos depoimentos são material confessional
legítimo, o que, em muitos momentos, dá ao filme uma atmosfera documental.
O Filme
Na primeira cena ouvimos um sino tocar. E também vemos apenas os perfis
de pessoas atravessando a soleira de uma porta larga, contra uma luz branca e
forte vinda de fora. Eles estão entrando num edifício comum cercado por árvores
e bambuzais em um lugar indeterminado. São recebidos por uma equipe de
funcionários que, de forma cortês, explicam que morreram e que estão agora em
uma espécie de estação provisória, antes de passarem para o próximo estágio das
suas experiências: a Eternidade.
O grupo de 22 pessoas recém-falecidas ficará ali por uma semana, com
prazos bem apertados: terão três dias para escolher uma memória feliz de toda a
sua vida. Uma memória que desejam salvar, para revivê-la por toda a eternidade.
Enquanto, todo o restante será esquecido.
Serão entrevistados por roteiristas que buscarão detalhar as cenas da
memória escolhida, mas principalmente aspectos sinestésicos: cores, som,
texturas, toque, músicas etc. Após essas entrevistas, os roteiristas terão
pouco tempo para elaborar cinematograficamente as cenas para serem passadas às
equipes de produção – em grandes estúdios, tentarão reconstruir filmicamente as
memórias com trucagens simples e criativas, típicas de uma produção de baixo
orçamento e sem efeitos especiais de pós-produção.
Todos os filmes deverão estar prontos no sábado, quando serão exibidos
em uma sala de projeção para o grupo de hóspedes temporários. E no dia seguinte
partirão para a Eternidade, com a memória cinematográfica do momento mais feliz
das suas vidas.
O desafio tanto de roteiristas como da produção é evidente: como
reconstituir através de imagens experiências tão sensoriais, exclusivas e
pessoais? Não se trata apenas de narrar, mas através das imagens reviver as
sensações sinestésicas e emoções. E tudo com baixo orçamento.
Aqueles
que não conseguirem escolher uma memória (mesmo com o auxílio de diversas
caixas de VHS com vídeos gravados da vida inteira) não poderão partir, e farão
parte da equipe de roteiristas e produção.
É o
que garantirá um dos momentos mais emocionantes de After Life: quando um jovem roteirista da equipe (há 50 anos está
ali, incapaz de escolher a sua memória-síntese) descobre uma conexão entre ele
e um idoso recém-chegado, capaz de alterar toda a sua percepção de vida – a
lembrança de um jovem amor de anos atrás. Ele morrera na II Guerra Mundial
deixando para trás a jovem que amava que mais tarde seria a esposa do
recém-chegado que estava ali agora, na sua frente.
Memória, Morte e Esquecimento
After Life é uma fábula sobre tempo, morte e memória. Além de ser uma carta de amor ao cinema como uma memória criada para manter, por toda
eternidade, a qualidade atemporal de um filme.
Mas também é sobre esquecimento. O diretor Koreeda figura o solipsismo do pós-vida típico da
segunda onda cinematográfica sobre a morte – o Além como uma dimensão de
natureza plástica e moldável segundo nossos sonhos e lembranças.
Mas o
interessante em After Life é que esse
solipsismo é um constructo: existe uma estrutura burocrática e hierárquica que
reconstrói as memórias, sonhos e fantasias dos recém-chegados. Reviver na
Eternidade sua memória mais feliz a partir de um simulacro de uma cena que se
perdeu no tempo.
O preço
desse prazer eterno é o esquecimento: todo o restante será apagado e uma única
cena será pinçada de todo o resto.
After Life permite essa leitura gnóstica pela ambiguidade através
da qual Koreeda trata o tema – por um lado é um emocionante e pungente mergulho
na natureza das memórias e como elas desafiam a morte e o tempo por meio
daquilo que é, paradoxalmente, mais corporal e sinestésico. Mas de outro, o
pós-vida como uma estrutura que, no além, repete a hierarquia e burocracia
terrenas e, como qualquer organização, cobra um preço: o prazer eterno e
solipsista na Eternidade em troca do esquecimento.
Morte
e esquecimento é aquilo que, para o Gnosticismo, nos prende a esse cosmos
material – através da reencarnação, somos condenados a recomeçar do zero, do
esquecimento, sob a ilusão do renascimento sob uma promessa de redenção que
nunca se concretiza. Porque esquecemos e não aprendemos.
A diferença,
é que After Life joga esse
esquecimento para a Eternidade. Para sempre ficarmos repetindo as sensações
mais felizes de uma vida que foi esquecida.
Ficha Técnica
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Título: After
Life
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Criador: Hirokazu
Koreeda
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Roteiro: Hirokazu
Koreeda
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Elenco: Arata Iura, Erika Oda, Susumu Terajima, Takashi
Naitô
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Produção: Engine Film, Sputnik Productions
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Distribuição: Artistic
License
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Ano: 1998
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País: Japão
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