Foi-se o tempo em que víamos apresentadores de telejornais de paletó e
gravata escondendo bermudas e chinelos por trás da bancada. Hoje devem caminhar
pelo cenário apresentando infográficos em telões. Mas por que vemos jornalistas
e repórteres em um figurino preferencialmente corporativo? Por que o traje mais
informal assemelha-se ao de um funcionário de algum escritório saindo para um “happy
hour” ou em algum “day off” concedido pela empresa? Linguagem cênica para um melhor
rendimento televisual? Ou sintoma de outra coisa: a inveja criada pela diferença de classe
social entre jornalistas e seus entrevistados, o cimento psicológico do chamado
“jornalismo corporativo” posto em prática pela grande mídia.
“Quem se
interessou alguma vez pelos atuais problemas da semiologia, já não pode
continuar a fazer o nó da gravata, todas as manhãs diante do espelho, sem ficar
com a clara sensação de estar fazendo uma opção ideológica. Ou pelo menos de
lançar uma mensagem ou um carta aberta a todos os transeuntes que cruzarem com
ele no dia-a-dia”, afirmou certa vez o pesquisador italiano Umberto Eco.
Para Eco, o
vestuário age como uma gramática com palavras e regras prontas para comunicar
mensagens ou ideologias em certos contextos.
Partindo desse
tese semiológica, como podemos interpretar a atual tendência do figurino de
apresentadores e repórteres em telejornais? Eles, com paletós de boa confecção
com atenção aos ombros e lapelas bem acabados; cores escuras entre marinho,
preto e chumbo; ternos em estilo italiano, acinturado acompanhando a calça mais
acertada. E repórteres na rua com blazers escuros e calças chino caquis ou
calças de alfaiataria com camisas mais ajustadas ao corpo.
Elas, costumes
femininos de alfaiataria buscando um silhueta única, sem cortes entre saia/calça
e blusa. Como afirma o manual interno de figurino do Grupo RBS (Rede Brasil
Sul, afiliada à TV Globo) “afirmam melhor a presença da jornalista”.
Também segundo o
manual da RBS a modelagem do corpo da apresentadora através da indumentária é
uma peça de afirmação – “é a melhor peça das executivas de várias áreas”,
declara o manual.
O manual ainda ressalta
a importância da roupa para o jornalista: “ambientes de cerimônias exigem que o
profissional de televisão se mimetize para não tornar-se uma presença menor e
inoportuna”.
Imagem de credibilidade?
Definitivamente ficaram para trás tempos onde
apresentadores de telejornais escondiam suas bermudas por trás da bancada do
cenário, apresentando apenas o paletó e gravata da cintura para cima. Hoje
devem se levantar e caminhar pelo estúdio apresentando telões com infográficos.
Mais do que nunca a roupa é imprescindível para “apresentar uma boa imagem e
credibilidade à audiência”, como rezam os manuais internos dos telejornais.
Mas o que chama
atenção na retórica desses manuais é o tipo de vestuário cujo resultado podemos
assistir diariamente na TV: os jornalistas parecem trabalhar em um ambiente
corporativo, reforçado pelas imagens da redação ao fundo dividida em baias onde cada redator está contido em uma célula.
O ambiente asséptico com as apresentadoras
em salto alto, esguias em seus vestidos retos enquanto os apresentadores com
corte cuidadosamente curto desfilam com seus sapatos bicos finos e estreitos.
Estamos na
estética do “jornalismo corporativo” – a expressão não se limita mais a forma
padronizada e industrializada de produção de informações ou os interesses
econômicos e políticos dos grandes grupos de comunicação que contaminam o
enfoque da notícia. Mais do que isso, esse tipo de jornalismo em tudo tenta
equiparar o ethos e estética dos jornalistas ao escritório de uma grande
corporação.
Se no passado o
típico trabalho de um jornalista era de campo (ir às ruas para apurar as
informações) e como telespectadores percebíamos no rendimento televisual
apresentadores mal ajambrados e nitidamente incomodados em trajar paletó e
gravata (e que, por isso, dispensavam qualquer cuidado com o corte da moda),
hoje vemos apresentadores e repórteres confortáveis em seus look corporativos.
Parece que nasceram para aquilo. Mesmo fora dos estúdios e redações, quando
convidados a dar uma palestra ou um workshop qualquer, apresentam-se tal como
estivessem no estúdio ao vivo – paletó e gravata ou vestidos de forma
“informal” como se dirigissem a algum “happy hour” fora do escritório ou estivesses
em algum “day off” em plena sexta-feira.
Na TV reproduzem
inclusive os melancólicos estereótipos da cultura de escritórios e ambientes de
trabalho modorrentos – “Ufa! Até que enfim é sexta-feira”; ou “Coragem! Hoje é
segunda-feira!”.
A saga dos cães perdidos
No passado o
Jornalismo era muito mais do que uma opção profissional: era existencial. A
certeza de que ao fazer a escolha estaria “condenado” a viver à margem ou nos
interstícios da sociedade pela própria condição de investigar e reportar muitas
vezes aquilo que pessoas e instituições não querem pensar de si mesmas.
É sintomático como
na história do cinema o jornalista está associado à personagem noir do detetive particular:
investigação, aventura, independência, mas também falta de escrúpulo e
arrogância. De qualquer forma, o jornalista não estava integrado pacificamente à sociedade –
era um espécime arredio, desconfiado e crítico.
Ciro Marcondes
Filho em seu livro A Saga dos Cães
Perdidos (a metáfora do jornalista como um cão que perdeu o faro e se
perdeu) aponta para a origem psicológica de todos os lapsos éticos da profissão
e a crise da antiga caracterização do jornalista: a inveja criada pela
diferença de classe social e a dos seus entrevistados, o que leva a ambição
desenfreada e a busca rápida de enriquecimento.
O rápida
transformação tecnológica na comunicação dividiu o Jornalismo em dois tipos de
profissionais: aqueles que trabalham sentados (a maioria que limita-se ao
tratamento de notícias de agências, releases e pesquisa na web) e os que
trabalham em pé – a minoria que vai à campo investigar.
Concentrados nos
monitores das suas baias nas redações que se transformaram em ambientes
assépticos, hierarquizados e padronizados (tal como nos escritórios
corporativos), jornalistas começaram a se ver como profissionais altamente
especializados e capacitados ambicionando ascender em uma carreira
potencialmente análoga a de gerentes, diretores, executivos ou CEOs de
empresas.
Ambição e ingenuidade
Como destaca
trechos do texto do manual de figurino da RBS mostrado acima, o jornalista deve
se “mimetizar” para não se tornar uma presença “menor e inoportuna”. Mimetizar
executivos que têm nas roupas “peças de afirmação”, assim como veem os
executivos a si mesmos.
O chamado
“Jornalismo corporativo” não se limita hoje apenas aos interesses políticos e
econômicos dos grandes grupos que determinam a pauta das notícias diárias. A
noção de jornalismo corporativo baixa nas redações onde encontram jornalistas
que sentem-se como estivessem trabalhando em uma típica atmosfera corporativa,
com toda a sua cultura e idiossincrasias – vestuário, hábitos, visão de mundo
etc.
Um exemplo desse feliz encontro entre a ideologia dos patrões e a
autoimagem dos jornalistas é quando em qualquer pauta sobre Economia acha-se
natural entrevistar unicamente economistas de bancos e corretoras financeiras.
O fascínio pela área financeira e seus personagens (no filme Wall Street temos a melhor tradução
cinematográfica) reflete essa diferença de classes entre jornalistas e
entrevistados.
É sintomático que na cinematografia atual o antigo perfil do jornalista
esteja sendo substituído pelo de um profissional ambicioso e ingênuo. Como, por
exemplo, nas personagens femininas seduzidas pelos poderosos e bem sucedidos - Kim Basinger, fotografa
seduzida por Bruce Wayne em Batman (1989) a personagem Anastasia Steele,
misto de estudante de literatura e jornalista, seduzida por um homem poderoso
em 50 Tons de Cinza (2015) ou a repórter Zoe Barnes que vai para cama
com o gênio maquiavélico da Casa Branca Frank Underwood na série Netflix House of Cards.
Se a observação de Umberto Eco que abre essa postagem estiver correta, o
figurino corporativo que invade os telejornais atuais não é um mero cuidado
cênico para jornalistas que hoje precisam caminhar através do estúdio. É o
sintoma semiótico da autoimagem atual dos jornalistas, ávidos em ficarem
parecidos com entrevistados poderosos e bem sucedidos.
E os patrões, a quem seus empregados chamam também de “jornalistas”,
agradecem.
Postagens Relacionadas |
|
|
|
|