sábado, janeiro 09, 2016

Por que jornalistas vestem roupas corporativas?


Foi-se o tempo em que víamos apresentadores de telejornais de paletó e gravata escondendo bermudas e chinelos por trás da bancada. Hoje devem caminhar pelo cenário apresentando infográficos em telões. Mas por que vemos jornalistas e repórteres em um figurino preferencialmente corporativo? Por que o traje mais informal assemelha-se ao de um funcionário de algum escritório saindo para um “happy hour” ou em algum “day off” concedido pela empresa? Linguagem cênica para um melhor rendimento televisual? Ou sintoma de outra coisa:  a inveja criada pela diferença de classe social entre jornalistas e seus entrevistados, o cimento psicológico do chamado “jornalismo corporativo” posto em prática pela grande mídia.

“Quem se interessou alguma vez pelos atuais problemas da semiologia, já não pode continuar a fazer o nó da gravata, todas as manhãs diante do espelho, sem ficar com a clara sensação de estar fazendo uma opção ideológica. Ou pelo menos de lançar uma mensagem ou um carta aberta a todos os transeuntes que cruzarem com ele no dia-a-dia”, afirmou certa vez o pesquisador italiano Umberto Eco.


Para Eco, o vestuário age como uma gramática com palavras e regras prontas para comunicar mensagens ou ideologias em certos contextos.

Partindo desse tese semiológica, como podemos interpretar a atual tendência do figurino de apresentadores e repórteres em telejornais? Eles, com paletós de boa confecção com atenção aos ombros e lapelas bem acabados; cores escuras entre marinho, preto e chumbo; ternos em estilo italiano, acinturado acompanhando a calça mais acertada. E repórteres na rua com blazers escuros e calças chino caquis ou calças de alfaiataria com camisas mais ajustadas ao corpo.


Elas, costumes femininos de alfaiataria buscando um silhueta única, sem cortes entre saia/calça e blusa. Como afirma o manual interno de figurino do Grupo RBS (Rede Brasil Sul, afiliada à TV Globo) “afirmam melhor a presença da jornalista”.

Também segundo o manual da RBS a modelagem do corpo da apresentadora através da indumentária é uma peça de afirmação – “é a melhor peça das executivas de várias áreas”, declara o manual.

O manual ainda ressalta a importância da roupa para o jornalista: “ambientes de cerimônias exigem que o profissional de televisão se mimetize para não tornar-se uma presença menor e inoportuna”.

Imagem de credibilidade?


 Definitivamente ficaram para trás tempos onde apresentadores de telejornais escondiam suas bermudas por trás da bancada do cenário, apresentando apenas o paletó e gravata da cintura para cima. Hoje devem se levantar e caminhar pelo estúdio apresentando telões com infográficos. Mais do que nunca a roupa é imprescindível para “apresentar uma boa imagem e credibilidade à audiência”, como rezam os manuais internos dos telejornais.

Mas o que chama atenção na retórica desses manuais é o tipo de vestuário cujo resultado podemos assistir diariamente na TV: os jornalistas parecem trabalhar em um ambiente corporativo, reforçado pelas imagens da redação ao fundo dividida em baias onde cada redator está contido em uma célula. 

O ambiente asséptico com as apresentadoras em salto alto, esguias em seus vestidos retos enquanto os apresentadores com corte cuidadosamente curto desfilam com seus sapatos bicos finos e estreitos.

Estamos na estética do “jornalismo corporativo” – a expressão não se limita mais a forma padronizada e industrializada de produção de informações ou os interesses econômicos e políticos dos grandes grupos de comunicação que contaminam o enfoque da notícia. Mais do que isso, esse tipo de jornalismo em tudo tenta equiparar o ethos e estética dos jornalistas ao escritório de uma grande corporação.


Se no passado o típico trabalho de um jornalista era de campo (ir às ruas para apurar as informações) e como telespectadores percebíamos no rendimento televisual apresentadores mal ajambrados e nitidamente incomodados em trajar paletó e gravata (e que, por isso, dispensavam qualquer cuidado com o corte da moda), hoje vemos apresentadores e repórteres confortáveis em seus look corporativos. 

Parece que nasceram para aquilo. Mesmo fora dos estúdios e redações, quando convidados a dar uma palestra ou um workshop qualquer, apresentam-se tal como estivessem no estúdio ao vivo – paletó e gravata ou vestidos de forma “informal” como se dirigissem a algum “happy hour” fora do escritório ou estivesses em algum “day off” em plena sexta-feira.

Na TV reproduzem inclusive os melancólicos estereótipos da cultura de escritórios e ambientes de trabalho modorrentos – “Ufa! Até que enfim é sexta-feira”; ou “Coragem! Hoje é segunda-feira!”.

A saga dos cães perdidos


No passado o Jornalismo era muito mais do que uma opção profissional: era existencial. A certeza de que ao fazer a escolha estaria “condenado” a viver à margem ou nos interstícios da sociedade pela própria condição de investigar e reportar muitas vezes aquilo que pessoas e instituições não querem pensar de si mesmas.

É sintomático como na história do cinema o jornalista está associado à personagem noir do detetive particular: investigação, aventura, independência, mas também falta de escrúpulo e arrogância. De qualquer forma, o jornalista não estava integrado pacificamente à sociedade – era um espécime arredio, desconfiado e crítico.

Ciro Marcondes Filho em seu livro A Saga dos Cães Perdidos (a metáfora do jornalista como um cão que perdeu o faro e se perdeu) aponta para a origem psicológica de todos os lapsos éticos da profissão e a crise da antiga caracterização do jornalista: a inveja criada pela diferença de classe social e a dos seus entrevistados, o que leva a ambição desenfreada e a busca rápida de enriquecimento.


O rápida transformação tecnológica na comunicação dividiu o Jornalismo em dois tipos de profissionais: aqueles que trabalham sentados (a maioria que limita-se ao tratamento de notícias de agências, releases e pesquisa na web) e os que trabalham em pé – a minoria que vai à campo investigar.

Concentrados nos monitores das suas baias nas redações que se transformaram em ambientes assépticos, hierarquizados e padronizados (tal como nos escritórios corporativos), jornalistas começaram a se ver como profissionais altamente especializados e capacitados ambicionando ascender em uma carreira potencialmente análoga a de gerentes, diretores, executivos ou CEOs de empresas.

Ambição e ingenuidade


Como destaca trechos do texto do manual de figurino da RBS mostrado acima, o jornalista deve se “mimetizar” para não se tornar uma presença “menor e inoportuna”. Mimetizar executivos que têm nas roupas “peças de afirmação”, assim como veem os executivos a si mesmos.

O chamado “Jornalismo corporativo” não se limita hoje apenas aos interesses políticos e econômicos dos grandes grupos que determinam a pauta das notícias diárias. A noção de jornalismo corporativo baixa nas redações onde encontram jornalistas que sentem-se como estivessem trabalhando em uma típica atmosfera corporativa, com toda a sua cultura e idiossincrasias – vestuário, hábitos, visão de mundo etc.


Um exemplo desse feliz encontro entre a ideologia dos patrões e a autoimagem dos jornalistas é quando em qualquer pauta sobre Economia acha-se natural entrevistar unicamente economistas de bancos e corretoras financeiras. O fascínio pela área financeira e seus personagens (no filme Wall Street temos a melhor tradução cinematográfica) reflete essa diferença de classes entre jornalistas e entrevistados.

É sintomático que na cinematografia atual o antigo perfil do jornalista esteja sendo substituído pelo de um profissional ambicioso e ingênuo. Como, por exemplo, nas personagens femininas seduzidas pelos poderosos e bem sucedidos - Kim Basinger, fotografa seduzida por Bruce Wayne em Batman (1989) a personagem Anastasia Steele, misto de estudante de literatura e jornalista, seduzida por um homem poderoso em 50 Tons de Cinza (2015) ou a repórter Zoe Barnes que vai para cama com o gênio maquiavélico da Casa Branca Frank Underwood na série Netflix House of Cards.

Se a observação de Umberto Eco que abre essa postagem estiver correta, o figurino corporativo que invade os telejornais atuais não é um mero cuidado cênico para jornalistas que hoje precisam caminhar através do estúdio. É o sintoma semiótico da autoimagem atual dos jornalistas, ávidos em ficarem parecidos com entrevistados poderosos e bem sucedidos.

E os patrões, a quem seus empregados chamam também de “jornalistas”, agradecem.

Postagens Relacionadas











Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review