Descer a serra para a Baixada Santista
(litoral de São Paulo) é uma curiosa experiência. Sair da cidade de São Paulo,
onde a Lei Cidade Limpa erradicou a poluição visual de outdoors e fachada
comerciais, e entrar na cidade de Santos é uma experiência impactante: o acúmulos de totens, outdoors, imensas placas de fachadas,
displays etc. Mas há algo de intrigante na cidade: não é apenas a poluição
visual por acúmulo e adição. Há um estranho fenômeno que poderíamos chamar de
“caos semiótico” – pet shop que se confunde com buffet infantil, igreja
evangélica que parece um depósito de galões de água mineral, uma casa de
colchões que lembra a fachada de uma casa noturna e escola que emula parque
temático. É a semiótica mimética por imitação, pastiche, estilização e
contaminações visuais.
Esse humilde blogueiro costuma passar as férias escolares na cidade
natal de Santos/SP. Sair de São Paulo, descer a serra e chegar na cidade do
litoral é uma experiência curiosa: na estrada já começamos a nos deparar com
outdoors, mídia publicitária que foi banida da cidade de São Paulo com a Lei
Cidade Limpa.
Outdoors com mensagens de conscientização e segurança no trânsito e
outros tantos de produtos e grifes.
Mas é quando chegamos em Santos que a experiência começa a ficar
impactante: lembramos do que era São Paulo antes da Lei Cidade Limpa – profusão
de fachadas, placas, totens publicitários, lambe-lambes nos muros mais
improváveis, cavaletes e displays. A arquitetura de antigas casas e sobrados em
estilo português ou dos velhos bangalôs de madeira do início da urbanização dos
bairros simplesmente desaparecem por trás de um emaranhado de placas e anúncios
de ofertas, liquidações e promoções.
Sem falar nos modernas torres
levantadas próximas à praia no melhor estilo Miami pelo seu mau gosto, pastiche
e a habitual truculência do poder – a sombra de alguns começam a se projetar
sobre a própria faixa de areia. E novas torres ainda estão surgindo, superando
o folclore dos prédios tortos da orla construídos nas décadas de 1950-60. Estes
sim, com homogeneidade arquitetônica, mas que sucumbiram ao solo arenoso da
região.
Em Santos só há consenso em relação a poluição visual nas épocas de
eleições contra o lixo eleitoral (cartazes, santinhos etc.). Mas quando fala-se
em outdoors e fachadas comerciais cria-se uma nervosa polêmica: “empresas vão
fechar”, “vai piorar os efeitos da crise econômica” – muitas empresas de
outdoor e comunicação visual migraram de São Paulo para a Baixada Santista.
Acredito que a poluição visual em Santos vai muito mais além do excesso
de placas, totens e displays amontoados. Há um fenômeno intrigante na poluição
visual santista que vem me incomodando nas visitas à cidades já há algum tempo.
Ao zapear os olhos pelas fachadas comerciais e residências, muitas vezes
confundia a natureza da casa: aqui, uma residência que parecia um
estabelecimento comercial; mais para frente, um pet shop cuja fachada parecia
com a de um buffet infantil; do outro lado da rua, uma loja de colchões que
mais parecia a entrada de uma casa noturna ou “balada”; e mais adiante, uma
casa de cultos evangélicos que se assemelhava
a um depósito de entrega de galões de água; e lá na Ponta da Praia, um
condomínio que emula um parque temático de Miami.
Os exemplos são inúmeros. Alguns deles analisaremos nessa postagem. O
que nos leva a acreditar que a poluição visual em Santos não é apenas aditiva,
pela acumulação e excesso. A poluição é também semiótica.
Os santistas parecem estar imersos em uma espécie de caos semiótico onde
os signos (cores, estilos, layouts, arquitetura etc.) perderam o lastro do
significado (o que cada signo representa na sua origem, a exemplo de cada
palavra em um dicionário) e deslizam livres onde um signo pode estar em qualquer lugar significando qualquer
coisa. O que resulta não mais em arquitetura, sinalização ou informação, mas em
cenografia caótica e ambígua.
Mas apesar do cenário ser caótico com signos deslizando aleatoriamente,
há uma recorrência ou um padrão: a semiótica mimética – há um mecanismo de
imitação (pet shop imita buffet infantil, uma casa de culto evangélico imita
signos de igrejas góticas etc.) que produz efeitos abomináveis como o pastiche,
o fake e a cenografia de parque temático. Vamos analisar alguns episódios.
Igrejas visualmente contaminadas
As casas/igrejas de culto evangélico, protestante, neopentecostal ou de
seitas teologicamente não identificadas são um dos focos desse caos semiótico.
Por anos passava em frente dessa casa de cultos e imaginava ser um
estabelecimento de entrega de galões de água – “Fonte das Águas” associado ao
azul predominante na fachada me levaram ao engano (foto 1).
Foto 1 |
Depois passei a ouvir música, cantorias e discursos acalorados de um
pastor ao microfone e percebi, para minha surpresa, que era na verdade.
Ou essa outra casa de cultos: se passarmos distraídos pensamos ser um
buffet ou uma pequena casa de eventos com a fachada em fumê e mesas com
cadeiras de plástico juntas à porta (foto 2).
Foto 2 |
Nesse outro caso de um culto teologicamente não identificado, vemos uma
fachada que se confunde com um despachante, curso de línguas etc.: “ganhar”,
“consolidar”... lê-se na placa... não fosse a palavra “culto” não saberíamos do
que se trata (foto 3).
Foto 3 |
O acúmulo de casas/igrejas de cultos (nas avenidas principais do canal 4
ao 6 temos em média um desses estabelecimentos por quarteirão) leva a
inacreditáveis contaminações metonímicas – ou “piadas prontas” ou trocadilhos
involuntários.
Uma casa chamada “Projeto Família em Cristo” está na frente dos fundos
onde funciona o “Martinho Despachos” com um grafite que remete a estrada, autos
(despachos de papeladas de veículos). Mas a contaminação é imediata – o que
representa a estrada? Caminho para Cristo ou das papeladas a serem despachadas?
Sem falar na contaminação de “Cristo” com “Despacho” com efeitos
imprevisíveis... (foto 4).
Foto 4 |
A semiótica mimética está presente na imitação da arquitetura igreja
evangélica de um campanário (a torre que contem o sino em uma igreja). Recurso
de imitação para reforçar a alusão a uma igreja, já que sem esse campanário
fake a natureza do edifício não seria tão facilmente reconhecida (foto 5).
O efeito fake dessa semiótica mimética encontra-se nessa gigantesco
templo da Igreja Universal na avenida Ana Costa imitando vitrais góticos (muito
mal estilizados) e grandes colunas que nada sustentam e apenas decoram para dar
uma ar de “templo antigo e digno” – na verdade são construções pré-moldadas com
esqueleto de barras de aço e concreto armado (foto 6).
O mesmo podemos ver nesse templo Rosacruz na avenida Rodrigues Alves:
colunas que não possuem função nem arquitetônica e nem de engenharia – signos
para conferir um aspecto de “antiguidade” e “dignidade” (foto 6).
Bunker ou laboratório? Casa de Colchões ou balada?
Passando pela avenida Afonso Pena, nos deparamos com um laboratório de
análises clínicas... ou um bunker... ou uma dessas firmas de segurança privada
e de entrega de valores de onde saem carros-forte? (foto 7).
Também nessa loja de colchões, uma confusão de signos: vidros em fumê e
tons escuros contrastando com áreas amadeiradas lembram a entrada de alguma
casa noturna ou “balada”... só falta uma promoter ou um “leão de chácara” na
entrada! (foto 8).
Estética do desaparecimento
O pensador e urbanista francês Paul Virilio definia como “estética do
desaparecimento”, uma estética urbana resultante da aceleração da visão
motorizada: a arquitetura desaparece por trás de fachadas e mídias feitas para
visualização rápida de um olhar em travelling.
Por exemplo, uma oficina mecânica esconde-se por trás de um outdoor? Ou
uma imensa placa (“Centro Comercial”) esconde algum empreendimento não
identificável? Para aumentar a confusão semiótica, parasitariamente uma outra
placa nos “informa” a existência de uma escola à frente seguindo pela esquerda (foto 9).
Ou ainda a gigantesca placa de um comércio de carros usados possui
praticamente as mesmas dimensões de um outdoor vizinho que esconde um comércio
de tapeçaria. Um exemplo de como o caos semiótico santista inviabiliza a
própria função de informar: o outdoor confunde-se com uma placa de fachada
comercial, criando, mais uma vez, contaminação metonímica: onde termina o
outdoor e onde começa a placa de uma fachada comercial? (foto 10).
Mais semiótica mimética...
O comércio é de “Gastronomia e Eventos”, mas a fachada toda em preto e
tons escuros com uma imagem estilizada dominante. Para um observador “em
travelling” a fachada confunde-se com uma cafeteria – estética dominante nas
cafeterias do bairro nobre do Gonzaga. A panela estilizada confunde-se com uma xícara de café (foto 11).
É um Pet Shop, um Buffet infantil ou uma escola infantil?
Outra faceta curiosa desse caos semiótico é como se assemelham as
fachadas desses negócios. Desenhos com o mesmo tipo de traço e estilo, a mesma
paleta de cores, a casa pintada com a cor da mesma paleta da placa de fachada.
Os temas são os mesmos: bichinhos, crianças e natureza fofinha. A semelhança de
layout e estética como esses temas são representados acaba criando essa curiosa
contaminação (foto 12).
Mas o ápice dessa semiótica mimética é o Colégio Presidente Kennedy/Walt
Disney. Deixando de lado as duvidosas conexões entre Walt Disney e a Pedagogia e Educação,
o visual é um estranho mix de colégio e parque temático da Disneylândia, com
direito a uma espécie de castelo da Bela Adormecida estilizado no interior do
complexo (foto 13).
A escola emula um parque temático, ou vice-e-versa?
Parques temáticos e pastiche
O caos semiótico santista produz ainda outros curiosos episódios. Como
um gigantesco polvo que escala a lateral de um imenso condomínio residencial na
Ponta da Praia. Parece que estamos diante de um filme de horror sci fi B dos
anos 1950... só que colorido (foto 14).
Um condomínio residencial na orla tem que reforçar sua característica
“litorânea”, assim como os pilares fake rosacruz tentam saturar a ideia do
“antigo”. Estamos no paraíso dos parques temáticos, onde tudo deve ser
saturado, exagerado.
Ou a livraria que, para reforçar a sua “internacionalidade”, constrói em
sua fachada um bizarro mini Big Ben de Londres (foto 15).
E no final, a colcha de retalhos do pastiche: uma loja de móveis
chama-se oriental mas o estilo da fachada, com seus telhados triangulares,
lembra alguma vila alemã, Alpes ou Campos de Jordão – essa cidade já é uma
estilização, cópia da cópia de cartões postais europeus (foto 16).
Ou a duas quadras da praia, ergue-se uma torre residencial com o
eloquente nome “La Grande Maison” com uma grande fachada em mármore branco,
duas gigantescas portas pesadas em madeira nobre escura num pastiche vitoriano,
art noveau, neoclássico e com mais
pilares fake – tudo a ver com uma Rua Alexandre Martins, a poucos metros da
praia. Pelo menos tenta amenizar a bizarrice com coqueiros ornamentais, para
dar um toque “praiano” (foto 17).
Pelos menos, do outro lado da rua há uma fonte do Rei Poseidon e seu
tridente ladeado por sereias, na entrada do Shopping Miramar – o shopping que
também emula um parque temático com uma “estátua” com gosto muito duvidoso.
Mais uma vez o pastiche: uma estátua artificialmente envelhecida ou desgastada
(a saturação icônica da “antiguidade”) com a base da fonte em design modernista “clean” (Foto 18).
Poluição visual ou caos semiótico?
Tramita na Câmara da cidade uma Lei Complementar do Executivo semelhante
à Lei Cidade Limpa de São Paulo. Mas, se for correta a hipótese de que a
poluição visual santista não meramente por adição ou excesso, mas pelo caos
semiótico, então uma simples regulamentação municipal não resolverá.
Há um fator cultural na cidade que deve ser confrontado: euforia com as
tecnologias de computação gráfica (provincianismo?) que acabaria criando uma
padronização estética – quem não se lembra nos anos 1990 com a euforia dos
efeitos do CorelDraw? O resultado era a padronização: tudo tinha cara de
CorelDraw!
Ou o caos semiótico é um fenômeno generalizado da sociedade das imagens
e, numa cidade como Santos, tudo ficaria mais explícito – por ser uma cidade
pequena e desprovida de “álibis” artísticos que racionalizariam esse caos
semiótico, tal como ocorre nas cidades maiores e culturalmente mais, por assim
dizer, "cosmopolitas".
De qualquer forma, um caos onde o signo perde a sua função informativa ou de sinalização, tornando supérflua todas as mídias visuais. E os comerciantes pagam por algo que não funciona: a transformação da arquitetura em cenografia.
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