terça-feira, fevereiro 10, 2015

"Garota Exemplar" e a tragédia como delineadora da vida, por Sonielson de Sousa

Grande favorito ao Oscar (provavelmente nas categorias Melhor Filme, Melhor Ator/Atriz, Melhor Roteiro e Melhor Diretor, dentre outros) “Garota Exemplar” (Gone Girl, 2014) é um suspense de aproximadamente duas horas e meia que tem a habilidade de mostrar a tênue linha entre a normalidade e a face nebulosa das pessoas - a “Sombra” de que fala Jung.

"O Homem é o lobo do homem, em guerra de todos contra todos" (Thomas Hobbes)

Baseado no livro homônimo escrito por Gillian Flynn, o filme trata da estória de Amy Dunne (Rosamund Pike), que na infância é tratada pelos pais e por todos à sua volta com extrema excepcionalidade e que, depois de casada, é obrigada a ter uma vida mediana e a morar no interior para acompanhar o marido. Dunne desaparece no dia do seu quinto aniversário de casamento, deixando o esposo Nick (Ben Affleck) em apuros. Neste ínterim, Nick torna-se o principal suspeito do desaparecimento, e conta com a ajuda da irmã para tentar provar sua inocência.

O diretor David Fincher (de Millennium – Os Homens Que Não Amavam as Mulheres) transpôs para as telas, dentre outras coisas, o chamado “fruto tardio do romantismo”, traduzido essencialmente como o que alguns intelectuais chamam de “fracasso afetivo”, tema amplamente debatido pelos filósofos Luiz Felipe Pondé (PUC-SP) e Daniel Omar Perez (Unicamp), e pelo pensador Michael Foley, só para citar alguns. Neste processo, o amante é “incompleto e errante” e, no fundo, procura “um encontro consigo mesmo sem ter a menor ideia do que procura de si no outro” (PEREZ, 2014). No percurso, pode-se descobrir de forma dolorosa que não é nada fácil (re)conhecer o outro (e, de quebra, a si mesmo).



No filme, Nick é o marido que vive à sombra da esposa e que, enquanto tal, a complementa. Dunne, por sua vez, é a mulher perturbada, apenas uma leve lembrança daquela pessoa que um dia teria projetado tantas glórias. De comum entre os dois, no decorrer da trama (e do próprio relacionamento), há apenas a apatia comum nas relações matrimoniais marcadas pela falta de admiração mútua, e pela acomodação que beira ao ressentimento. Tudo muda, no entanto, quando Dunne descobre que o marido – até então apático e aparentemente inofensivo – a trai sistematicamente com uma mulher mais jovem. O filme tem uma guinada quando a protagonista Dunne se apropria, dentre várias leituras possíveis, de elementos da tragédia como alternativa para resignificar sua existência e vingar-se do marido.

Para tanto, Amy Dunne conduz a vida num enredo onde o real e o imaginário se confunde, e a catarse – objeto preponderante na tragédia e elemento de “purificação e transformação” – é um alvo insistentemente perseguido (mesmo que de forma inconsciente). A protagonista encena a própria vida como forma de voltar a ser centro/referencial, já que em dado momento o marido não mais orbita à sua volta. Neste movimento há, também, traços de sobreposição da personagem feminina sobre a representação do masculino (o que, obviamente, seria tema de novo artigo), tendo em vista que para atuar diligentemente como “senhora da própria vida”, é necessário superar o temor de encarar a solidão “do encontro consigo mesmo”, o que poucos conseguem.


Em Garota Exemplar há, assim, uma encenação dentro da encenação. Na estória, há o personagem principal (a mulher outrora excepcional), cuja vida é complexa e digna de ser contada a partir de uma linguagem laboriosa e/ou elevada e, por fim, que resulta em arroubos de destruição ou instabilidade, algo próximo da loucura. Há, portanto, uma possibilidade de destino infeliz para a protagonista, situação que é subvertida no longa, tendo em vista que Amy consegue impingir uma espécie de “castigo eterno” ao seu algoz (que é forçosamente redimido pelas circunstâncias e que, então, volta a ser amante), numa dubiedade típica dos bons suspenses.

Amy Dunne encarna a verdadeira protagonista da tragédia ao rejeitar a possibilidade de sucumbir ao destino que aparentemente lhe aguardava (o de ser abandonada pelo marido). Ela é alguém com vontade, ciente de suas atitudes (atitudes estas altamente discutíveis no âmbito da Ética, mas que demonstram uma tenacidade frente a um objetivo), que não vê outra saída senão “aquela determinada pelos acontecimentos que vão se descortinando frente ao protagonista”. No início do filme, esse arquétipo não tem as pompas e o amplo significado emprestado pelos gregos. Trata-se apenas de alguém fruto da instantaneidade e da visibilidade que lhe impingem (algo semelhante à “sua majestade a criança”, de que fala Freud em Introdução ao Narcisismo), que consegue se sustentar apenas pelo valor que lhe atribuem, e não por seus feitos em si. Uma personagem, então, mais inclinada para a definição do que seria um anti-herói ou “herói às avessas”. Lentamente esta realidade ganha novos contornos e se altera, com cada ação milimetricamente pensada (ou readaptada em decorrência das circunstâncias) por Amy.


No âmbito da Psicologia, o comportamento de Ammy se enquadraria perfeitamente numa espécie de “desvio de personalidade” ou enfraquecimento da persona junguiana, quando os papéis sociais perdem o sentido para o indivíduo, que passa a atuar em comunhão com “aquelas tendências, desejos, memórias e experiências que são rejeitadas por serem incompatíveis com a Persona e contrárias aos padrões e ideais sociais”. Essa atitude pode se confundir com a loucura, mas também flerta com a arte. Amy, então, em que pese o valor de suas ações, transforma a sua vida, que é explicitamente trágica, numa espécie de obra de arte, marcada pela originalidade e pelo deleite (no caso do filme, um deleite mórbido) ocasionado pela força do impacto com que se impõe.

Tanto o filme quanto a protagonista, desta forma, são verdadeiras obras primas. Causam um misto de admiração com espanto, graça com repulsa, precisão com desconexão. Estas são características comuns aos grandes artistas, como o espanhol Salvador Dalí.


Garota Exemplar é um antagonista dos tempos de “relações líquidas”, como denunciam Pondé e Bauman, onde a possibilidade de se romper os laços é ensejado como uma conquista inalienável. Na personagem interpretada por Rosamund Pike, embora o “descarte” da relação tenha sido inicialmente uma opção almejada, o ponto alto se dá na perpetuação deste (relacionamento), cuja remissão e ressignificação das dores e dos sofrimentos agem como uma espécie de “remédio amargo” e “correção perene” (no caso do filme, para o marido Nick), justamente o oposto do que se espera das atuais relações afetivas, onde a opção por “insistir para concertar ou para evitar a ruptura” não é algo visto com bons olhos.

Em Garota Exemplar a engenhosidade resultante de alguém que conduz a própria vida (a qualquer custo, diga-se de passagem) é algo que pulsa, que salta aos olhos e que lembra a “vontade de poder” nietzschiana. Novamente mostra, assim como na arte, que observar estes movimentos pode resultar em contemplação. É algo que vai “contra a corrente”, que é transgressor e que, portanto, pode provocar insights e até mesmo gerar perspectivas estéticas. No entanto, na ficção ou não realidade, ai daqueles que cruzam/desafiam os caminhos de personagens como Amy Dunne. Nesta estrada, apenas uns poucos loucos/trágicos/heróis/artistas têm (e merecem) passagem. Os demais que se arriscarem, como no caso de Nick, podem “naufragar” nas próprias pretensões e, ao final, pagar um alto preço por isso.


REFERÊNCIAS

Garota Exemplar: sinopse. Disponível em <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-217882 > - Acesso em 03/12/2014;
A Tragédia (definição concisa). Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Trag%C3%A9dia > - Acesso em 01/12/2014;
Por que Garota Exemplar é um filme extraordinário. Disponível em <http://www.diariodocentrodomundo.com.br/por-que-garota-exemplar-e-um-filme-extraordinario/ > - Acesso em 01/12/2014;
PEREZ, Daniel Omar. Amor e a procura de si. Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, no 99, de outubro/2014.
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007;
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;
O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
A personalidade para Jung. Disponível em <https://www.psicologiamsn.com/2011/12/personalidade-para-jung.html > - Acesso em 30/11/2014;

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, SP: Martin Claret, 2008.

Sonielson Luciano de Sousa é publicitário (CEULP/ULBRA), pós-graduado em Educação (Docência Universitária), Comunicação e Novas Tecnologias (Unitins), editor do jornal e site O GIRASSOL, graduando em Filosofia (UCB-DF), colaborador do (En)Cena e do Portal Educação.



Ficha Técnica

Título: Garota Exemplar (Gone Girl)
Diretor: David Fincher
Roteiro: baseado no livro de Gillian Flynn
Elenco: Bem Affleck, Rosamund Pike, Neil Patrick Harris, Tyler Perry, Carrie Coon, Kim Dickens, Patrick Fugit
Produção: 20th Century Fox, Regency Enterprises
Distribuição: Fox Filmes
Ano: 2014
País: EUA

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