Grande favorito
ao Oscar (provavelmente nas categorias Melhor Filme, Melhor Ator/Atriz, Melhor
Roteiro e Melhor Diretor, dentre outros) “Garota Exemplar” (Gone Girl, 2014) é um suspense de
aproximadamente duas horas e meia que tem a habilidade de mostrar a tênue linha
entre a normalidade e a face nebulosa das pessoas - a “Sombra” de que fala Jung.
"O Homem é o lobo do homem, em guerra de todos contra todos" (Thomas Hobbes)
Baseado no livro homônimo escrito por Gillian
Flynn, o filme trata da estória de Amy Dunne (Rosamund Pike), que na infância é
tratada pelos pais e por todos à sua volta com extrema excepcionalidade e que,
depois de casada, é obrigada a ter uma vida mediana e a morar no interior para
acompanhar o marido. Dunne desaparece no dia do seu quinto aniversário de
casamento, deixando o esposo Nick (Ben Affleck) em apuros. Neste ínterim, Nick torna-se
o principal suspeito do desaparecimento, e conta com a ajuda da irmã para tentar
provar sua inocência.
O diretor David Fincher (de Millennium – Os Homens Que Não Amavam as
Mulheres) transpôs para as telas, dentre outras coisas, o chamado “fruto
tardio do romantismo”, traduzido essencialmente como o que alguns intelectuais chamam
de “fracasso afetivo”, tema amplamente debatido pelos filósofos Luiz Felipe
Pondé (PUC-SP) e Daniel Omar Perez (Unicamp), e pelo pensador Michael Foley, só
para citar alguns. Neste processo, o amante é “incompleto e errante” e, no
fundo, procura “um encontro consigo mesmo sem ter a menor ideia do que procura
de si no outro” (PEREZ, 2014). No percurso, pode-se descobrir de forma dolorosa
que não é nada fácil (re)conhecer o outro (e, de quebra, a si mesmo).
No filme, Nick é o marido que vive à sombra
da esposa e que, enquanto tal, a complementa. Dunne, por sua vez, é a mulher
perturbada, apenas uma leve lembrança daquela pessoa que um dia teria projetado
tantas glórias. De comum entre os dois, no decorrer da trama (e do próprio
relacionamento), há apenas a apatia comum nas relações matrimoniais marcadas
pela falta de admiração mútua, e pela acomodação que beira ao ressentimento.
Tudo muda, no entanto, quando Dunne descobre que o marido – até então apático e
aparentemente inofensivo – a trai sistematicamente com uma mulher mais jovem. O
filme tem uma guinada quando a protagonista Dunne se apropria, dentre várias
leituras possíveis, de elementos da tragédia como alternativa para resignificar
sua existência e vingar-se do marido.
Para tanto, Amy Dunne conduz a vida num
enredo onde o real e o imaginário se confunde, e a catarse – objeto
preponderante na tragédia e elemento de “purificação e transformação” – é um
alvo insistentemente perseguido (mesmo que de forma inconsciente). A
protagonista encena a própria vida como forma de voltar a ser centro/referencial,
já que em dado momento o marido não mais orbita à sua volta. Neste movimento
há, também, traços de sobreposição da personagem feminina sobre a representação
do masculino (o que, obviamente, seria tema de novo artigo), tendo em vista que
para atuar diligentemente como “senhora da própria vida”, é necessário superar
o temor de encarar a solidão “do encontro consigo mesmo”, o que poucos
conseguem.
Em Garota
Exemplar há, assim, uma encenação dentro da encenação. Na estória, há o
personagem principal (a mulher outrora excepcional), cuja vida é complexa e
digna de ser contada a partir de uma linguagem laboriosa e/ou elevada e, por
fim, que resulta em arroubos de destruição ou instabilidade, algo próximo da
loucura. Há, portanto, uma possibilidade de destino infeliz para a
protagonista, situação que é subvertida no longa, tendo em vista que Amy
consegue impingir uma espécie de “castigo eterno” ao seu algoz (que é forçosamente
redimido pelas circunstâncias e que, então, volta a ser amante), numa dubiedade
típica dos bons suspenses.
Amy Dunne encarna a verdadeira protagonista
da tragédia ao rejeitar a possibilidade de sucumbir ao destino que
aparentemente lhe aguardava (o de ser abandonada pelo marido). Ela é alguém com
vontade, ciente de suas atitudes (atitudes estas altamente discutíveis no
âmbito da Ética, mas que demonstram uma tenacidade frente a um objetivo), que
não vê outra saída senão “aquela determinada pelos acontecimentos que vão se
descortinando frente ao protagonista”. No início do filme, esse arquétipo não
tem as pompas e o amplo significado emprestado pelos gregos. Trata-se apenas de
alguém fruto da instantaneidade e da visibilidade que lhe impingem (algo
semelhante à “sua majestade a criança”, de que fala Freud em Introdução ao
Narcisismo), que consegue se sustentar apenas pelo valor que lhe atribuem, e
não por seus feitos em si. Uma personagem, então, mais inclinada para a
definição do que seria um anti-herói ou “herói às avessas”. Lentamente esta
realidade ganha novos contornos e se altera, com cada ação milimetricamente
pensada (ou readaptada em decorrência das circunstâncias) por Amy.
No âmbito da Psicologia, o comportamento de
Ammy se enquadraria perfeitamente numa espécie de “desvio de personalidade” ou
enfraquecimento da persona junguiana,
quando os papéis sociais perdem o sentido para o indivíduo, que passa a atuar
em comunhão com “aquelas tendências, desejos, memórias e experiências que são
rejeitadas por serem incompatíveis com a Persona
e contrárias aos padrões e ideais sociais”. Essa atitude pode se confundir com a
loucura, mas também flerta com a arte. Amy, então, em que pese o valor de suas ações,
transforma a sua vida, que é explicitamente trágica, numa espécie de obra de
arte, marcada pela originalidade e pelo deleite (no caso do filme, um deleite
mórbido) ocasionado pela força do impacto com que se impõe.
Tanto o filme quanto a protagonista, desta
forma, são verdadeiras obras primas. Causam um misto de admiração com espanto,
graça com repulsa, precisão com desconexão. Estas são características comuns
aos grandes artistas, como o espanhol Salvador Dalí.
Garota Exemplar é um
antagonista dos tempos de “relações líquidas”, como denunciam Pondé e Bauman,
onde a possibilidade de se romper os laços é ensejado como uma conquista
inalienável. Na personagem interpretada por Rosamund Pike, embora o “descarte”
da relação tenha sido inicialmente uma opção almejada, o ponto alto se dá na
perpetuação deste (relacionamento), cuja remissão e ressignificação das dores e
dos sofrimentos agem como uma espécie de “remédio amargo” e “correção perene”
(no caso do filme, para o marido Nick), justamente o oposto do que se espera
das atuais relações afetivas, onde a opção por “insistir para concertar ou para
evitar a ruptura” não é algo visto com bons olhos.
Em Garota
Exemplar a engenhosidade resultante de alguém que conduz a própria vida (a
qualquer custo, diga-se de passagem) é algo que pulsa, que salta aos olhos e
que lembra a “vontade de poder” nietzschiana. Novamente mostra, assim como na
arte, que observar estes movimentos pode resultar em contemplação. É algo que
vai “contra a corrente”, que é transgressor e que, portanto, pode provocar
insights e até mesmo gerar perspectivas estéticas. No entanto, na ficção ou não
realidade, ai daqueles que cruzam/desafiam os caminhos de personagens como Amy
Dunne. Nesta estrada, apenas uns poucos loucos/trágicos/heróis/artistas têm (e
merecem) passagem. Os demais que se arriscarem, como no caso de Nick, podem
“naufragar” nas próprias pretensões e, ao final, pagar um alto preço por isso.
REFERÊNCIAS
Garota
Exemplar: sinopse. Disponível em <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-217882
> - Acesso em 03/12/2014;
A Tragédia
(definição concisa). Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Trag%C3%A9dia
> - Acesso em 01/12/2014;
Por que Garota
Exemplar é um filme extraordinário. Disponível em <http://www.diariodocentrodomundo.com.br/por-que-garota-exemplar-e-um-filme-extraordinario/
> - Acesso em 01/12/2014;
PEREZ,
Daniel Omar. Amor e a procura de si.
Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, no 99,
de outubro/2014.
NIETZSCHE,
Friedrich. O Nascimento da Tragédia.
São Paulo: Companhia de Bolso, 2007;
COMTE-SPONVILLE,
André. Dicionário Filosófico. São
Paulo: WMF, 2011;
O Livro da
Filosofia (Vários
autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
MORA,
José Ferrater. Dicionário de Filosofia.
São Paulo: Martins Fontes, 2001;
A personalidade
para Jung.
Disponível em <https://www.psicologiamsn.com/2011/12/personalidade-para-jung.html > - Acesso em 30/11/2014;
HOBBES,
Thomas. Leviatã. São Paulo, SP:
Martin Claret, 2008.
Sonielson Luciano de Sousa é publicitário
(CEULP/ULBRA), pós-graduado em Educação (Docência Universitária), Comunicação e
Novas Tecnologias (Unitins), editor do jornal e site O GIRASSOL, graduando em
Filosofia (UCB-DF), colaborador do (En)Cena e do Portal Educação.
Ficha Técnica |
Título: Garota
Exemplar (Gone Girl)
|
Diretor:
David Fincher
|
Roteiro:
baseado no livro de Gillian Flynn
|
Elenco: Bem Affleck,
Rosamund Pike, Neil Patrick Harris, Tyler Perry, Carrie Coon, Kim Dickens,
Patrick Fugit
|
Produção:
20th Century Fox, Regency Enterprises
|
Distribuição:
Fox Filmes
|
Ano: 2014
|
País: EUA
|