No meio do caminho entre o realismo documental e o sobrenatural, o filme “Bird People” (2014) do francês Pascale Ferran nos mostra os dilemas dos momentos da vida em que precisamos assumir riscos e dar saltos no vazio. Pessoas que transitam em espaços impessoais como aeroportos e hotéis e que tentam mascarar o isolamento por meio de tecnologias de comunicação como dispositivos móveis e computadores. Ferran nos mostra a contradição de como pessoas cercadas de interfaces de comunicação podem, ao mesmo tempo, sofrerem do mal da incomunicabilidade. Escondem o isolamento, mas sofrem os sintomas da claustrofobia e alienação. E sentem a necessidade de darem um salto nas suas vidas, assim como os pássaros e aviões.
Grande
parte das discussões em torno das tecnologias de comunicação baseiam-se em uma
confusão conceitual: tomam os termos “informação” e “comunicação” como
sinônimos. Ainda pensa-se a comunicação nos termos da chamada Teoria da
Informação – comunicação se trataria unicamente de levar um conteúdo de um emissor
para um receptor: comunicação seria pensada unicamente nos termos de uma
transmissão de mensagens.
Informação
trata-se de transmissão de dados - notícias, números, estatísticas, memorandos,
requerimentos etc. Seu caráter é meramente aditivo: acrescentar dados
supostamente desconhecidos para um receptor.
Ao contrário, a Comunicação não é mais um dado, mas Acontecimento:
algo que nos confrontou, transformou nossa maneira de ver o mundo. Não é mais
aditivo, é disruptivo. Quando ocorre a comunicação (quando nos deixamos abrir
para um acontecimento que nos cause dissonância ou contradição) nos
transformamos através da ruptura e a aceitação do risco do novo.
Mas, principalmente, Bird
People revela a contradição que vivemos na atual era das chamadas Novas
Tecnologias de Comunicação: os personagens do filme estão constantemente
conectados aos seus celulares, smartphones, computadores e dispositivos móveis
– trocam constantemente informações, mas há uma continua incomunicabilidade em
ambientes que, por isso, tornam-se claustrofóbicos como hotéis, saguões de
aeroportos, salas de reuniões e auto-estradas.
Todos de passagem, apressados, constantemente informados e
disponíveis online. Porém, incapazes de criarem formas de comunicação onde
expressem anseios, frustrações e desejos.
O filme
O filme apresenta dois dramas complementares dentro de uma
estrutura única. Rodado em Paris, Dubai e Estados Unidos, vemos personagens que
transitam em espaços impessoais que acentuam ainda mais o isolamento. As
janelas dos quartos do Hotel Hilton, situado em uma espécie de nowhere, uma região limítrofe ao
aeroporto Charles De Gaulle, deixam ver pássaros e aviões. São metáforas do
salto e do voo como uma saída para os protagonistas.
Depois de algumas reuniões de negócios e noites insones no quatro
do hotel jogando games de computador e trocando mensagens no smartphone, cresce
em Gary uma sensação claustrofóbica. Decide não tomar o voo de negócios para
Dubai e informa laconicamente para empresa que está abandonando tudo (trabalho,
família e filhos). Decide não voltar mais para os EUA.
O ponto alto da narrativa sobre a decisão de Gary é quando tem uma emocionalmente devastadora conversa com a esposa através do Whatsapp: há uma total
incomunicabilidade – o diálogo é pontilhado por longos silêncios, de repente
interrompido por agressões verbais e ofensas, sem nenhum dos lados conseguir
expressar através do programa on line seus dilemas íntimos.
Depois da desconstrução da vida de Gary, entra em cena da garota
sonhadora chamada Audrey, arrumadeira do próprio hotel em que Gary está
hospedado. Trabalha para pagar os estudos na universidade e está sempre de
passagem em ônibus ou atravessando os corredores e quartos do hotel. Ambiente
impessoais, sempre ouvindo música em seu smartphone e fechada em si mesma.
A segunda metade do filme passamos inesperadamente do realismo
documental da primeira parte para elementos de fantasia e sobrenatural que não
podemos contar para não estragar o filme, mas o título do filme aponta para
esse acontecimento (comunicação) que transformará a vida de Aldrey, fazendo-a
mais um personagem da dar um salto no vazio.
Os voos da fantasia e o drama da incomunicabilidade chegam ao
ápice na sequência linda e poética sob a trilha da música Space Oddity do gnóstico pop David Bowie.
Viajantes dão o “salto de fé”
Aqui os conceitos de comunicação e gnose se confundem na medida em
que o filme transcorre, tornando a abordagem cada vez mais mística.
Fica cada vez mais evidente que o diretor Pascale Ferran bebeu na
fonte do arquétipo moderno do Viajante. Em postagem passada discutíamos que
desde o pós-guerra a cinematografia e a literatura moderna desenvolvem
basicamente três tipos de arquétipos que constituem as três formas pelas quais
a subjetividade contemporânea é formada – O Detetive, O Viajante e o
Estrangeiro. São arquétipos que expressariam como o homem vê a sua própria
condição na sociedade – sobre esse tema clique aqui.
Gary e Audrey são os típicos Viajantes: aqueles que vem do nada e
vão para lugar algum, sempre em lugares impessoais, de passagem (aeroportos
estações de trem, rodoviárias, metros etc.). Aparentemente estão bem assentados
em sua carreiras e profissões – Gary é um engenheiro do Vale do Silício bem
sucedido e Audrey é cheia de sonhos em trabalhar, estudar e vencer na vida.
Mas algo está errado. Há o crescimento de um sintoma surdo de mal
estar (a claustrofobia de Gary e a alienação de Audrey) que leva os
protagonistas a um acontecimento transformador: o salto de fé.
Gnose e o estado de suspensão
Assim como em filmes como Vidas
em Jogo (The Game, 1997) ou Vanilla Sky (2001), os protagonistas
literalmente dão saltos no vazio, como um salto de fé na ruptura e
transformação íntima.
Basilides, filósofo gnóstico do início da Era Cristã, acreditava
que a gnose (iluminação espiritual) viria através de uma estado alterado da
mente de suspensão: o silêncio, negação do pensamento, vazio, o grau zero de
sentido – estado que seria a terceira alternativa entre a ilusão e a realidade.
Esse estado de suspensão parece ser aquele que anseia O Viajante: saltar no
vazio como a expressão dessa necessidade do silêncio, deixar tudo para trás.
Por isso a fixação imagética do filme em aviões, voos, saltos e
pássaros. E a própria música Space Oddity
de Bowie no momento central do filme: sobre um astronauta que, suspenso no
espaço fora da sua nave, vê a Terra azul até perder contato ao passar pela Lua.
Sem querer fazer um spoiler, o leitor perceberá que o único
momento em que os protagonistas de fato conseguem estabelecer uma forma
autêntica de comunicação é no único momento em que eles não estão mais
conectados com nenhuma tecnologia de informação. Apertam as mãos e perguntam
seus nomes.
Parece que Pasacale Ferran quer nos dizer em Bird People que as tecnologias da informação não foram feitas para
os humanos, mas sim para coisas: dados, números e informações. Conectados a
essa tecnologias apenas aditivamos, acumulamos dados que nos envolvem e nos
apartam de acontecimentos que verdadeiramente poderiam nos transformar e causar
rupturas.
Ficha Técnica |
Título: Bird
People
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Diretor:
Pascale Ferran
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Roteiro:
Pascale ferran
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Elenco: Josh Charles,
Anais Demoustier, Roschdy Zem, Taklyt Vongdara
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Produção:
Archipel 35, France 2 Cinéma
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Distribuição:
IFC Films
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Ano: 2014
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País: França
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