sábado, outubro 15, 2011

A Transparência do Mal em "Saló ou os 120 Dias de Sodoma" de Pasolini

Assistir ao filme “Saló ou os 120 Dias de Sodoma” (Salò o Le 120 Giornate di Sodoma, 1975) de Pasolini é uma experiência no mínimo incômoda, mesmo hoje quando a nossa sensibilidade diante do Mal se tornou apática com tanta exposição de sexo e violência na indústria do entretenimento. Por que 36 anos depois as cenas de “Saló” ainda nos causam repulsa e horror? Talvez porque tenham sido as cenas que melhor conseguiram expressar em uma narrativa fílmica a radicalidade do Mal exposta pela obra de Marquês de Sade – o Mal transparente, aquilo que não pode ser explicado ou deduzido, porque originado da própria Razão e dos seus instrumentos que deveriam impedi-lo de existir.

A primeira vez que assisti ao filme “Saló ou os 120 dias de Sodoma” de Pasolini foi dentro da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no extinto cine Paramount (hoje Teatro Abril) lá pela década 1980. Naquela noite, enquanto o filme era exibido, vi espectadores correndo para o banheiro com as mãos levadas à boca, aparentemente com ânsia de vômito; muitos simplesmente se levantando e indo embora e os demais com os rostos crispados de horror e repugnância (o meu, inclusive). Resultado: restaram ao final das quase duas horas de projeção eu e mais quatro espectadores.

Em meio a “snuff movies”, “slasher movies”, “pornôs hardcore”, “nazi-exploitation” etc. atuais que acabaram moldando uma sensibilidade mais fria e apática diante do Mal, Saló permanece um filme instigante, provocativo e chocante. Por que? Olhando em perspectiva o conteúdo das diversas cenas, encontramos até muitos cenas que se tornaram clichês presentes nos gêneros cinematográficos citados acima. Mas, mesmo assim, as sevícias, torturas e mutilações em “Saló” ainda horrorizam, mas de uma forma radical: certamente este filme de Pasolini foi o que melhor soube representar a radicalidade do Mal proposta pela obra de Marquês de Sade – a reversibilidade do Mal e o Inumano.

Isto é, o Mal que não pode ser racionalizado, explicado, deduzido, porque originado da própria Razão e dos seus instrumentos que deveriam impedi-lo de existir.

O filme segue fielmente a obra “Os 120 dias de Sodoma” de Marquês de Sade, associando a narrativa sadeana ao momento histórico da criação de uma nova república fascista na cidade setentrional de Saló em 1943 por Mussolini após sua deposição do governo do país com a invasão das tropas aliadas e a revolta popular.

Em Saló, quatro poderosos (o Duque, representando a nobreza; o Bispo, a Igreja; o Presidente, o Estado laico; o Magistrado, a corrupção e a parcialidade da Justiça) decidem juntar sua fortunas para realizar a maior orgia já concebida pela mente humana: em um castelo isolado é formado um grupo de 8 garotos, 8 garotas, 4 narradoras, 4 putas velhas, 8 garanhões, 4 criadas, 6 cozinheiras e as 4 filhas dos libertinos, casadas entre eles.

Os libertinos: A Igreja, o Estado, a Justiça 
e a Nobreza
Na entrada são recepcionados pelo Duque com um discurso ameaçador: “Suas criaturas fracas! Ralé, destinada ao nosso prazer. Não esperem aqui a liberdade garantida lá fora. Vocês aqui estão além de qualquer lei. Ninguém sabe que estão aqui. Pelo que importa ao mundo, já estão mortos.”


São lidas as regras implacáveis a serem seguidas por todos. Os transgressores terão seus nomes apontados em um caderninho para serem, ao final, punidos não apenas com a morte, mas com amputações e torturas inimagináveis. 


A narrativa divide-se em três ciclos: o Ciclo das Manias (uma das narradoras contará histórias relacionadas as estranhas manias que testemunhou em sua carreira de prostituta. Todos ouvem no salão, e qualquer um dos “amigos” pode retirar qualquer vítima, para se satisfazer nas alcovas); o Ciclo da Merda, (a Senhora Maggi conta histórias relativas a sexo envolvendo fezes, estimulando os libertinos a realizar o sonho do Presidente, e realizar um banquete de excrementos, onde toda a merda coletada das vítimas é preparada e servida no jantar; e o Ciclo do Sangue (a Senhora Castelli conta as histórias envolvendo morte e mutilação durante o sexo).


Sade na tradição dos gnósticos sombrios

Marquês de Sade se inscreve numa tradição de escritores e pensadores gnósticos trágicos como os maniqueus e cátaros ao acreditar que a natureza (ou Deus) é má e o cosmos por ser considerado como uma gigantesca câmara de torturas na qual o homem é prisioneiro. O Mal em Sade está inscrito na Natureza pelo seu caráter de reversibilidade e tal característica Sade percebeu nos primórdios da burguesia do racionalismo iluminista.

Sade pressentiu que por trás da harmonia científica que o Iluminismo pretendia atribuir à sociedade, estava presente no subterrâneo um movimento inverso: a violência, a frieza e a indiferença que o sistema conceitual da Razão produz ao liquidar o particular em nome do Universal. Na prática, a abstração da Razão esconde a indiferença frente à desigualdade e à luta de classes. O Universal somente pode ser realizado na vida cotidiana pela violência.

Marquês de Sade: na tradição
dos escritores gnósticos sombrios
O livro “120 Dias de Sodoma”, escrito em 1785, parece um diário de uma demonstração tomada no sentido científico da experimentação: depois de páginas e páginas de detalhamento de cada ação e cada desejo satisfeito, os eventos se tornam previsíveis; o leitor é capaz de adivinhar a depravação que se seguirá em determinada estória, como se tudo fosse, desde o início, a demonstração contínua de princípios universais.

Tal como cientistas, os libertino não devem ser tomados pela paixão (“O Mal deve ser praticado sem paixão”, filosofa a certa altura o Duque): são neutros, melancólicos, apáticos, estoicos, muito longe de serem enlouquecidos, obcecados ou selvagens. Levam os princípios morais e filosóficos da cultura burguesa às últimas consequências, mostrando que podem ser revertidos no oposto: a barbárie.

“Os fascistas são os verdadeiros anarquistas”, afirma desafiadoramente um dos libertinos no filme. De fato, a ascensão do fascismo no século XX comprovou a sombria intuição de Marquês de Sade sobre as virtudes burguesas. Se como falava Balzac que “por trás de toda grande fortuna se oculta um grande crime”, da mesma maneira por trás de toda a racionalidade econômica (pleno emprego), cultural (Futurismo, por exemplo) e científica (todo o brilho científico da primeira guerra tecnologizada da História) ocultou-se o genocídio. O fascismo acabou desnudando a violência do Racionalismo, Iluminismo e Capitalismo de forma mais contundente do que todos os discursos críticos.

Submissão

Outra questão que atravessa não só o filme “Saló” quanto a própria obra de Marquês de Sade é o tema do Poder e da submissão, associados a uma psicologia tanto do libertino quanto da vítima. Sade os vê aprisionados dentro de um princípio universal que os anula mutuamente: o Poder.

Sobre a vítima Sade reserva uma ambiguidade entre a condição passiva de ser submetido à força do algoz mas também o fascínio pelo poder ao qual é subjugado. É importante compreendermos que Sade vai ter essa intuição no momento em que politicamente a França passava pela Revolução e todo o país era transformado pelos ideais iluministas da liberdade, igualdade e fraternidade. Parece que o grande tema político em Sade é esse: como é possível falar nesses valores democráticos se as massas ainda guardam dentro de si o fascínio por tudo aquilo que é poderoso e está acima de suas cabeça?

Como afirma Bataille a respeito da obra de Sade:
“O sistema de Marquês de Sade, com efeito, não é menos a realização que a crítica de um método que leva à eclosão do indivíduo integral acima da multidão fascinada” (BATAILLE, Georges. A Literatura e o Mal)
As massas são fascinadas pelo sujeito que delas fugiu para tornar-se um “indivíduo integral”, isto é, aquele que vive unicamente pelos seus próprios desejos e vontades. Em Sade está o triunfo da vontade individual (virtude burguesa) que se contrapõe à passividade e mediocridade do sujeito na multidão. Aqui Sade se aproxima da filosofia pessimista de Hobbes, Mandeville e Nietzsche, céticos em relação ao surgimento das massas no palco da História.

Se a democracia se funda na igualdade de todos dentro do princípio da realização das vontades individuais, para estes filósofos pessimistas a tolerância para com o próximo implica no próprio enfraquecimento da vontade individual – a submissão ao outro. Contra a suposta harmonia entre o indivíduo e a sociedade, tais filósofos propõem o instinto objetivado do indivíduo burguês, sua força natural destrutiva, inseparável da autodestruição. A Razão Pura como anti-razão que desaba sobre o mais fraco. Aqueles personagens exuberantes como o libertino sadiano, o cálculo frio do Príncipe de Maquiavel e o “super-homem” de Nietzsche são o contraponto da morte da vontade do indivíduo na massa.

Dessa maneira a realização da vontade individual somente se realiza através do Poder e da submissão imposta ao outro. Por isso, o poder do libertino é fascinante para a vítima. Um fascínio na sua própria destruição. E, do lado do libertino, o Poder somente pode ser autodestruição pela necessidade da interdição das paixões em nome da frieza do cálculo, do planejamento das atrocidades e do estoicismo exigido pelo princípio universal que as demonstrações repetitivas e ritualísticas das atrocidades têm que comprovar. É o Inumano: vítimas e algozes perdem suas humanidades porque são apenas partes que confirmam um princípio cósmico totalitário: o Poder e a submissão.

Como mostra a sequência final de “Saló” onde dois adolescentes, vítimas de perversões sexuais dos libertinos fascistas, terminam como colaboracionistas, com metralhadoras penduradas no ombro e dançando juntos ao lado de um gramofone, indiferentes, enquanto as vítimas apontadas no caderninho das transgressões são torturadas cruelmente no pátio em frente ao castelo.

Ficha Técnica

  • Título: Saló ou 120 Dias de Sodoma (Salò o Le 120 Giornate di Sodoma)
  • Diretor: Pier Paolo Pasolini
  • Roteiro: Pier Paolo Pasolini e Sergio Citti
  • Elenco: Paolo Bonacelli, Giorgio Cataldi, Umberto Quintavalle, Aldo Vallletti, Caterina Boratto
  • Produção: Produzioni Europee Associati (PEA) e Les Productions Artistes Associés
  • Distribuição: Primer Plano Film Group
  • Ano: 1975
  • País: Itália e França




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