A primeira vez que assisti ao filme “Saló ou os 120 dias de
Sodoma” de Pasolini foi dentro da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
no extinto cine Paramount (hoje Teatro Abril) lá pela década 1980. Naquela
noite, enquanto o filme era exibido, vi espectadores correndo para o banheiro
com as mãos levadas à boca, aparentemente com ânsia de vômito; muitos
simplesmente se levantando e indo embora e os demais com os rostos crispados de
horror e repugnância (o meu, inclusive). Resultado: restaram ao final das quase
duas horas de projeção eu e mais quatro espectadores.
Em meio a “snuff movies”, “slasher movies”, “pornôs hardcore”,
“nazi-exploitation” etc. atuais que acabaram moldando uma sensibilidade mais
fria e apática diante do Mal, Saló permanece um filme instigante, provocativo e
chocante. Por que? Olhando em perspectiva o conteúdo das diversas cenas,
encontramos até muitos cenas que se tornaram clichês presentes nos gêneros
cinematográficos citados acima. Mas, mesmo assim, as sevícias, torturas e
mutilações em “Saló” ainda horrorizam, mas de uma forma radical: certamente
este filme de Pasolini foi o que melhor soube representar a radicalidade do Mal
proposta pela obra de Marquês de Sade – a reversibilidade do Mal e o Inumano.
Isto é, o Mal que não pode ser racionalizado, explicado,
deduzido, porque originado da própria Razão e dos seus instrumentos que
deveriam impedi-lo de existir.
O filme segue fielmente a obra “Os 120 dias de Sodoma” de
Marquês de Sade, associando a narrativa sadeana ao momento histórico da criação
de uma nova república fascista na cidade setentrional de Saló em 1943 por
Mussolini após sua deposição do governo do país com a invasão das tropas
aliadas e a revolta popular.
Em Saló, quatro poderosos (o Duque, representando a nobreza;
o Bispo, a Igreja; o Presidente, o Estado laico; o Magistrado, a corrupção e a
parcialidade da Justiça) decidem juntar sua fortunas para realizar a maior
orgia já concebida pela mente humana: em um castelo isolado é formado um grupo
de 8 garotos, 8 garotas, 4 narradoras, 4 putas velhas, 8 garanhões, 4 criadas,
6 cozinheiras e as 4 filhas dos libertinos, casadas entre eles.
Os libertinos: A Igreja, o Estado, a Justiça e a Nobreza |
São lidas as regras implacáveis a serem seguidas por todos. Os transgressores terão seus nomes apontados em um caderninho para serem, ao final, punidos não apenas com a morte, mas com amputações e torturas inimagináveis.
A narrativa divide-se em três ciclos: o Ciclo das Manias (uma das narradoras contará histórias relacionadas as estranhas manias que testemunhou em sua carreira de prostituta. Todos ouvem no salão, e qualquer um dos “amigos” pode retirar qualquer vítima, para se satisfazer nas alcovas); o Ciclo da Merda, (a Senhora Maggi conta histórias relativas a sexo envolvendo fezes, estimulando os libertinos a realizar o sonho do Presidente, e realizar um banquete de excrementos, onde toda a merda coletada das vítimas é preparada e servida no jantar; e o Ciclo do Sangue (a Senhora Castelli conta as histórias envolvendo morte e mutilação durante o sexo).
Sade na tradição dos gnósticos sombrios
Marquês de Sade
se inscreve numa tradição de escritores e pensadores gnósticos trágicos como os
maniqueus e cátaros ao acreditar que a natureza (ou Deus) é má e o cosmos por
ser considerado como uma gigantesca câmara de torturas na qual o homem é
prisioneiro. O Mal em Sade está inscrito na Natureza pelo seu caráter de
reversibilidade e tal característica Sade percebeu nos primórdios da burguesia
do racionalismo iluminista.
Sade pressentiu
que por trás da harmonia científica que o Iluminismo pretendia atribuir à
sociedade, estava presente no subterrâneo um movimento inverso: a violência, a
frieza e a indiferença que o sistema conceitual da Razão produz ao liquidar o
particular em nome do Universal. Na prática, a abstração da Razão esconde a
indiferença frente à desigualdade e à luta de classes. O Universal somente pode
ser realizado na vida cotidiana pela violência.
Marquês de Sade: na tradição dos escritores gnósticos sombrios |
Tal como
cientistas, os libertino não devem ser tomados pela paixão (“O Mal deve ser
praticado sem paixão”, filosofa a certa altura o Duque): são neutros,
melancólicos, apáticos, estoicos, muito longe de serem enlouquecidos, obcecados
ou selvagens. Levam os princípios morais e filosóficos da cultura burguesa às
últimas consequências, mostrando que podem ser revertidos no oposto: a
barbárie.
“Os fascistas são
os verdadeiros anarquistas”, afirma desafiadoramente um dos libertinos no
filme. De fato, a ascensão do fascismo no século XX comprovou a sombria
intuição de Marquês de Sade sobre as virtudes burguesas. Se como falava Balzac
que “por trás de toda grande fortuna se oculta um grande crime”, da mesma
maneira por trás de toda a racionalidade econômica (pleno emprego), cultural
(Futurismo, por exemplo) e científica (todo o brilho científico da primeira
guerra tecnologizada da História) ocultou-se o genocídio. O fascismo acabou
desnudando a violência do Racionalismo, Iluminismo e Capitalismo de forma mais
contundente do que todos os discursos críticos.
Submissão
Outra questão que
atravessa não só o filme “Saló” quanto a própria obra de Marquês de Sade é o
tema do Poder e da submissão, associados a uma psicologia tanto do libertino quanto
da vítima. Sade os vê aprisionados dentro de um princípio universal que os
anula mutuamente: o Poder.
Sobre a vítima
Sade reserva uma ambiguidade entre a condição passiva de ser submetido à força
do algoz mas também o fascínio pelo poder ao qual é subjugado. É importante
compreendermos que Sade vai ter essa intuição no momento em que politicamente a
França passava pela Revolução e todo o país era transformado pelos ideais
iluministas da liberdade, igualdade e fraternidade. Parece que o grande tema político
em Sade é esse: como é possível falar nesses valores democráticos se as massas
ainda guardam dentro de si o fascínio por tudo aquilo que é poderoso e está
acima de suas cabeça?
Como afirma
Bataille a respeito da obra de Sade:
“O sistema de Marquês de Sade, com efeito, não é menos a realização que a crítica de um método que leva à eclosão do indivíduo integral acima da multidão fascinada” (BATAILLE, Georges. A Literatura e o Mal)
As massas são
fascinadas pelo sujeito que delas fugiu para tornar-se um “indivíduo integral”,
isto é, aquele que vive unicamente pelos seus próprios desejos e vontades. Em
Sade está o triunfo da vontade individual (virtude burguesa) que se contrapõe à
passividade e mediocridade do sujeito na multidão. Aqui Sade se aproxima da filosofia
pessimista de Hobbes, Mandeville e Nietzsche, céticos em relação ao surgimento
das massas no palco da História.
Se a democracia
se funda na igualdade de todos dentro do princípio da realização das vontades
individuais, para estes filósofos pessimistas a tolerância para com o próximo
implica no próprio enfraquecimento da vontade individual – a submissão ao
outro. Contra a suposta harmonia entre o indivíduo e a sociedade, tais
filósofos propõem o instinto objetivado do indivíduo burguês, sua força natural
destrutiva, inseparável da autodestruição. A Razão Pura como anti-razão que
desaba sobre o mais fraco. Aqueles personagens exuberantes como o libertino
sadiano, o cálculo frio do Príncipe de Maquiavel e o “super-homem” de Nietzsche
são o contraponto da morte da vontade do indivíduo na massa.
Dessa maneira a realização da vontade
individual somente se realiza através do Poder e da submissão imposta ao outro.
Por isso, o poder do libertino é fascinante para a vítima. Um fascínio na sua
própria destruição. E, do lado do libertino, o Poder somente pode ser
autodestruição pela necessidade da interdição das paixões em nome da frieza do
cálculo, do planejamento das atrocidades e do estoicismo exigido pelo princípio
universal que as demonstrações repetitivas e ritualísticas das atrocidades têm
que comprovar. É o Inumano: vítimas e algozes perdem suas humanidades porque
são apenas partes que confirmam um princípio cósmico totalitário: o Poder e a
submissão.
Como mostra a
sequência final de “Saló” onde dois adolescentes, vítimas de perversões sexuais
dos libertinos fascistas, terminam como colaboracionistas, com metralhadoras
penduradas no ombro e dançando juntos ao lado de um gramofone, indiferentes,
enquanto as vítimas apontadas no caderninho das transgressões são torturadas
cruelmente no pátio em frente ao castelo.
Ficha Técnica
- Título: Saló ou 120 Dias de Sodoma (Salò o Le 120 Giornate di Sodoma)
- Diretor: Pier Paolo Pasolini
- Roteiro: Pier Paolo Pasolini e Sergio Citti
- Elenco: Paolo Bonacelli, Giorgio Cataldi, Umberto Quintavalle, Aldo Vallletti, Caterina Boratto
- Produção: Produzioni Europee Associati (PEA) e Les Productions Artistes Associés
- Distribuição: Primer Plano Film Group
- Ano: 1975
- País: Itália e França
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