quarta-feira, outubro 19, 2011

China proíbe "Viagem no Tempo": a experiência cinematográfica pode ser "perigosa"

Autoridades chinesas de mídia proíbem filmes com o tema "viagem no tempo" e exigem que produtores e escritores lançem "produções realistas da Revolução Chinesa". Falta aos chineses abandonar a truculência estalinista para compreender os sutis mecanismos hollywoodianos de controle onde se é capaz de oferecer uma grande liberdade temática, porém confinada pelas rígidas normas de forma e conteúdo. Mecanismos sutis que convergem para o mesmo objetivo das preocupadas autoridades chinesas: evitar que a experiência fílmica produza no espectador uma ruptura com o princípio de realidade.

No ano da comemoração do 90° aniversário do Partido Comunista da China, as autoridades de mídia do país resolveram proibir quaisquer filmes ou seriados que tenham como tema viagens no tempo. Em um país com a maior audiência de televisão do mundo e o mercado de cinema em franca expansão, a decisão foi justificada pelo “desrespeito histórico” que esse tema de ficção científica mostraria (leia notícia aqui).

Um dos maiores sucessos na China, o seriado "Jade Palace Lock Heart" (onde oa protagonista volta à época da China antiga onde encontra o amor e a felicidade - veja imagem acima) é avaliado pela Administração Estadual de Rádio, Filme e Televisão como uma representação da história “frívola e que não pode ser mais encorajado”. E transmitiu a seguinte mensagem para os produtores e escritores do país: “Sigam o espírito do Partido Comunista para celebrar o seu 90o aniversário. Todos os níveis devem se preparar para lançar reproduções realistas da Revolução Chinesa.” Em outras palavras, as autoridades cobram das produções audiovisuais e cinematográficas maior realismo, seja no campo ficcional ou documentário.

Em primeiro lugar, encontramos nessa notícia ecos do chamado realismo socialista de orientação comunista ortodoxa e de inspiração stalinista que dominou a arte e estética soviéticas onde as produções deveriam ser instrumentos de exaltação do regime ao representar de forma “realista” o heroísmo proletário. Por exemplo, diretores russos como Tarkovsky com temas metafísicos e espirituais dentro do gênero sci fi em filmes como “Solaris” (1972) e “Stalker” (1979) sofreram forte repressão do Estado, obrigando o diretor a sair da URSS em 1983.

Mas há algo a mais nessa proibição sobre “viagens no tempo” no cinema e audiovisual chineses. Acredito que a justificativa do “desrespeito histórico” é um mero pretexto para exercer um controle que há muito tempo Hollywood já fez ao enquadrar suas produções desde o final da fase dos filmes “slapstick”: a imposição da verossimilhança ou “realismo cinematográfico” na narrativa para impedir que a experiência cinematográfica possa produzir o “acontecimento comunicacional”, isto é, uma experiência que produza a transformação do espectador, a transcendência ou a possibilidade de ruptura psíquica com a rotina do dia-a-dia após sair do cinema.

Proibir “viagens no tempo” pode ser um instrumento pelo qual produtores e escritores evitem que o cinema produza uma experiência que possa ser perturbadora para a adaptação tranquila dos chineses aos seus papéis sociais, certamente marcado por uma rotina de trabalho massacrante em uma economia que mais cresce no mundo às custas da exploração, inclusive de trabalho infantil.

O Controle Estético de Hollywood

Cinema "Slapstick": o herói anárquico
sempre perseguido
pela Lei e ridicularizando autoridades
Em postagem anterior (veja links abaixo) discutíamos a guinada “realista” dada por Hollywood a partir da monopolização e industrialização do cinema na década de 1930. Após as primeiras décadas dominadas pela forma mais popular de cinema (o chamado “cinema slapstick”) com narrativas inverossímeis, dominadas por gags visuais e situações absurdas e surreais, os grandes estúdios enquadram esse tipo de cinema: primeiro, porque o novo público (as classes médias) preferiam narrativas “realistas”; e, segundo, o “slapstick” era anárquico, sempre caracterizando o protagonista como um proletário (Chaplin, Buster Keaton, Harold Loyd, Gordo e o Magro etc.) sempre perseguido pela Lei e e desafiando a ordem ao ridicularizar os policiais. Por isso era potencialmente perigoso político e ideologicamente ao sugerir para o grande público das classes subalternas que valia a pena lutar pelos seus sonhos.

O enquadramento ideológico dos grandes estúdios implicou na imposição e controle estético dos filmes em dois níveis, tanto da forma quanto do conteúdo. No plano da forma foi a imposição do modelo narrativo clássico: o realismo cinematográfico. A estrutura narrativa clássica constrói os seus pilares na busca pela ilusão de realidade. Encenação naturalista, mudanças invisíveis entre um corte e outro, continuidade de olhar e movimento, manutenção do eixo de 180 graus, sincronismo entre som e imagem.

Cada cena é amarrada em si mesma e em função das cenas imediatamente anteriores e posteriores, em uma relação contínua de causa e consequência. Os ardis da montagem e da edição fazem com que o olhar do espectador se identifique com o olhar da câmera e do personagem, produzindo a ilusão realista de continuidade, a figura do sujeito-espectador e a identificação primária. O prazer cinematográfico, portanto, estaria associado a esse prazer escópico, voyuerístico, isto é, o prazer de um olhar que ser quer transcendental ou divino. Um prazer primário incorporado ao próprio dispositivo fílmico, de onde deriva todos os prazeres, não importando o gênero.

No plano do conteúdo foi a imposição de uma métrica ao roteiro onde temos uma sucessão de quebras da ordem e retornos à ordem: quebras do princípio de realidade para posterior retorno à ordem até que ao final as quebras de ordem política, moral, institucional etc. são solucionadas com a reconciliação moralista, para que o espectador retorne à sua rotina como se nada tivesse acontecido (e, talvez, até mais resignado).

A experiência fílmica: capaz de estimular
ideias, pensamentos, emoções que superem
os limites do Eu e da sociedade
Podemos lembrar de dois exemplos que marcam o início da aplicação desse clichê: nos musicais e no western. Em um musical vemos personagens em uma situação cotidiana quando, de repente, ouve-se a música. Todos quebram a ordem e começam a dançar, correr e pular até que a música chega ao final e todos retornam às suas marcações, como se nada tivesse acontecido.

No western temos a sequência clássica: cowboys em volta de uma fogueira em uma noite fria. Eles conversam sobre seus sonhos e projetos. O mais jovem deles fala dos seus desejos de mudar de vida, casar e ter filhos e cabeças de gado. Pode ter certeza, no próximo ataque dos índios esse jovem morrerá. Moral da estória: nem tudo que queremos podemos alcançar... e o espectador pode voltar resignado para a rotina de trabalho duro.

A experiência fílmica: o acontecimento comunicacional

Apesar desse controle estético que procura evitar experiências que incomodem a feliz adaptação do espectador ao cotidiano, o meio cinema tomado em si mesmo é potencialmente transcendente, isto é, capaz de estimular ideias, pensamentos, emoções que superem os limites do Eu e da sociedade.
“No particular caso do filme, temos um meio mergulhado na alquimia, mitologia, ilusão, magia e transcendência. Quando as primeiras audiências viram as imagens de um trem em alta velocidade projetada numa tela na frente deles, pularam das suas cadeiras e saíram do teatro gritando. Um mágico francês fez filmes onde pessoas desapareciam, tornavam-se transparentes e viajavam para a Lua. Como em um ritual religioso antigo entramos em um lugar escuro, em silêncio. À medida que sentamos diante do altar gigante, um grande feixe de luz na escuridão transforma a tela bidimensional diante de nós em um mundo tridimensional” (KAPLAN, Mark Allan. “The Medium is the Transpersonal” disponível em http://www.transpersonalcinema.com/publications/tpmedium.htm)
Como vimos numa trilogia de postagens sobre a experiência transcendente no cinema (veja links abaixo), o próprio dispositivo cinematográfico somado à edição e montagem tornam o cinema não uma mera “realidade real” projetada na tela, mas é capaz de tornar visível o invisível, expressar o inexprimível, criar uma experiência que, ao mesmo tempo, transforme o espectador e ponha em xeque o princípio de realidade em que vive.

É o acontecimento comunicacional, isto é, um momento que vai além da sinalização (os signos de reconhecimento de gênero tal como clichês e nomes famosos) e da informação (a seletividade do espectador depois do reconhecimento dos signos de sinalização). É o acontecimento que transcende o mero entretenimento, cria uma intersecção entre a jornada da nossa vida ordinária com a jornada do filme.

Certamente por trás da decisão arbitrária das autoridades de mídia chinesas em vetar filmes “sobre viagem no tempo” esconde-se o temor que tal tema possa incitar narrativas que propiciem mudanças na realidade temporal e espacial, desconstrução de realidades consensuais, relativização da realidade etc.

Porém, falta aos chineses abandonar a truculência stalinista pelo controle “soft” da indústria do entretenimento ocidental. Falta ainda conquistar o “know how” do sutil controle da estética e da linguagem que Hollywood desenvolveu historicamente com suas produções fílmicas que permite uma enorme liberdade temática, porém sempre enquadrada pelo realismo cinematográfico e o clichê narrativo da “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem”.

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