sábado, outubro 22, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Em meio a euforia da onda Punk e New Wave no mundo da Moda do começo dos anos 1980, turbinada pela heroína e cocaína, um pequeno disco voador pousa na cobertura de um prédio em Nova York. Aliens invisíveis estão em busca de uma substância única liberada pelo cérebro humano durante a euforia lisérgica. Mas descobriram que a mente humana também produz a mesma substância durante o orgasmo. Sexo torna-se mortal naquele pequeno mundo de artistas e modelos. Após cinco anos nos EUA, o russo Slava Tsukerman decidiu fazer um filme independente que explorasse a mitologia pop contemporânea sobre sexo, euforia, drogas e alienígenas do espaço sideral. É "Liquid Sky" (1982), um filme sobre exilados e estrangeiros, assim como ele. Um olhar sobre a condição humana contemporânea dominada pelo sentimento de desamparo e alienação em um mundo governado por novos Demiurgos: alienígenas e a indústria do entretenimento.
Um exilado soviético chega em Nova York na segunda metade
dos anos 1970 e encontra a uma incipiente cena punk e new wave abastecida com
drogas, androginia, euforia, fúria e sexo. Passados cinco anos imerso no estilo
de vida norte-americano, reúne um grupo de amigos e baixo orçamento para produzir
um filme cuja sinopse pode ser resumida dessa forma:
“Alienígenas invisíveis vêm a Terra num disco voador minúsculo em
busca de heroína. Pousam no topo de uma cobertura em Nova York, onde moram uma
traficante e sua amante andrógina, ninfomaníaca e bissexual, que também é
modelo. Os alienígenas logo descobrem os feromôneos criados no cérebro durante
o orgasmo e os preferem à heroína, e então os amantes da modelo ninfomaníaca
começam a desaparecer. Este cenário incrivelmente bizarro é observado por uma
mulher solitária que mora do outro lado da rua, um cientista alemão que está
seguindo tanto alienígenas quanto o igualmente andrógino modelo masculino
viciado em drogas.”
Esse é o cult,
pós-punk e mix de sci fi e new wave “Liquid Sky” (1982) do diretor Slava
Tsukerman (do recente filme "Perestroika" - 2009) que acabou se tornando um modelo tanto de linguagem como de produção
para o cinema independente. O que torna o filme interessante no bizarro enredo
é que o diretor é um documentarista (após sair da URSS filmou documentários em
Israel) e, ao mesmo tempo, um estrangeiro dentro da cultura norte-americana.
Revendo “Liquid Sky” percebemos um olhar etnográfico de Tsukerman, um mix de
ironia, humor negro, documentário e olhar de um estrangeiro que pretendia
dissecar o imaginário e os personagens que pareciam ser tão estrangeiros quanto
ele.
O que se percebe
na narrativa de “Liquid Sky” é que se trata de um filme sobre “estrangeiros”: alienígenas
de outros mundos, personagens deste mundo perdidos na noite como fossem replicantes
melancólicos e o próprio diretor, um soviético tentando compreender os EUA.
O argumento
do filme foi inspirado na mitologia pop americana, como afirmou Tsukerman: “Eu
inclui todas as lendas e mitos da época, que ainda estão por aí. Acho que é por
isso que o meu filme ainda funciona, como os mitos sobre sexo, drogas, euforia,
relações entre sexos e alienígenas do espaço sideral. Minha ideia era que eu
precisava uma trama que incorporasse de forma divertida toda essa mitologia, e
parece que é por isso que meu filme tenha sobrevivido a tanto tempo” (“Aliens,
Acid, Androgyny, Oh My! Interview with Liquid Sky’s Slava Tsukerman” disponível
em: http://www.openingceremony.us/entry.asp?pid=653) .
O Filme
Visualmente
brilhante e cativante, o filme é pontuado pelo ponto de vista da criatura
espacial com imagens com alto contraste em vermelho, roxo e verde, culminando
com uma explosão como fosse uma almôndega eletrônica. Aparentemente significa
que a criatura está tendo prazer intenso decorrente da absorção da heroína e,
depois, ao assassinar os parceiros sexuais da protagonista Margaret, extraindo
deles os feromôneos e a endorfina do orgasmo.
Toda a estória gira em torno da atriz Anne
Carlise que interpreta dois personagens: Margaret (interiorana de Connecticut
que abandonou os “EUA profundos” em busca de fama e sucesso na metrópole) e
Jimmy (um modelo masculino com um bigode penteado para trás e cabelo andrógino
ao estilo Andy Warhol). A aparência dessa dupla muda constantemente, como tudo
ao redor sempre cercado de detritos, garrafas de cerveja e iluminação neon.
Exilados e abduzidos
Em postagem
anterior (veja links abaixo) discutíamos que a mitologia contemporânea
promovida pela indústria do entretenimento está centralizada em três
personagens que expressariam a condição humana contemporânea: o detetive, o
viajante e o estrangeiro. Em síntese, as antigas novelas policias, “film noir”,
“western” e literatura “pulp fiction” criaram um mix imaginário que serviu de
base para toda uma espécie de “sub-zeitgeist” da cinematografia independente
que acabou alimentando roteiros e produções de muitas produções “mainstream”
(videoclipes e longas metragens).
Nessa mitologia
contemporânea é recorrente a percepção humana de estranhamento e alienação: ésobre
aquele protagonista que nunca se sente em casa em lugar algum. Procura sempre
esquecer o seu passado, sua história, o que é. Passa a maior parte do tempo em
silêncio, fechado no seu drama, tenso, crispado. Quieto observa o mundo cair em
pedaços. É como se a própria casa, o país e o mundo
fossem um lugar hostil e ele próprio fosse um exilado abandonado por Deus ou
como se o próprio Deus conspirasse contra ele.
O personagem
Margaret é a última palavra em passividade: quando não está mudando de roupa é
espancada, estuprada, abusada de várias formas ao longo da narrativa. É uma
exilada dentro de uma mitologia gnóstica que descreve o cosmos como um sistema
dominado por demiurgos que abusam do ser humano para extrair dele o que tem de
mais precioso: vitalidade, brilho, luz, inocência e bondade. De um lado os
alienígenas que abduzem humanos quando alcançam o orgasmo e, por outro, a
indústria do entretenimento e da moda que, em troca da juventude e
espontaneidade, oferece as ilusões das drogas e diversão fáceis.
Dentro dessa
mitologia contemporânea inspirada na antiga mitologia gnóstica, o mito de
aliens e discos-voadores é a atualização do arquétipo do Demiurgo e do Exílio.
Abusos, abduções e contatos imediatos do terceiro grau são narrativas
insistentes, eventos simbólicos que expressam como o ser humano enxerga sua
própria condição nesse mundo, tal como um exilado, capturado por forças
superiores que o exploram para lhe arrancar a alma, espírito ou energia. Filmes
como “Matrix” (1999) ou “Cidade das Sombras” (Dark City, 1998) e as lendas
urbanas de pessoas “chipadas” no interior de estranhas naves espaciais
confirmam essa subjetividade contemporânea.
Toda essa
condição de exílio e desamparo pode ser percebida nesse monólogo de Margareth
após mais um abuso ao ser obrigada a fazer sexo oral com Jimmy. Ele morre abduzido
pelos aliens após o orgasmo. Após se achar responsável por mais uma vítima,
Margaret desabafa:
“Margareth:
Você quer saber o que e quem sou? Sou uma matadora. Mato com a minha boceta. Você
pode escrever sobre isso... na Midnight Magazine ou na National Enquirer. Vai
ser a nova sensação. Você quer saber de onde eu sou? Sou de Connecticut, Mayflower
Stock. Me ensinaram que um príncipe viria... e que ele seria advogado e eu
teria filhos com ele. E nos finais de semana prepararíamos churrasco e todos os
outros príncipes e princesas viriam e eles diriam 'que delíca', 'que delicía'. Ou
... que saco! Me ensinaram... que eu deveria vir para New York e me tornar uma
modelo independente e que meu príncipe viria como um agente. E ele me
arranjaria um papel... e eu levaria a vida servindo atrás de um balcão... e eu
esperaria trinta, quarenta, cinquenta anos. E me ensinaram que para ser atriz eu
deveria estar na moda... e estar na moda é ser andrógina e não sou menos
andrógina que o próprio David Bowie. Me chamam de bonita e eu mato com a minha
boceta. Não é super fashion?”
Drogas e Euforia
“Liquid Sky” é
uma expressão para designar a heroína. Ao lado da cocaína, foram os
combustíveis da Disco Music, Punk, Pós-Punk e New Wave na virada dos 70s aos
80s. Drogas euforizantes, diferentes das lisérgicas da década anterior envoltas
pelo imaginário místico, religioso e espiritual: desde as conexões entre drogas
como a mescalina e a abertura da percepção humana para novas realidades como em
Adous Huxley (“As Portas da Percepção”) até as experiências transpessoais do
neurocientista Thimoty Leary com o LSD.
O filme “Liquid
Sky” documenta a cena das primeiras casas noturnas multimídias da história do
pop onde os efeitos tecnológicos luminosos e auditivos já dispensavam qualquer
droga lisérgica ou alucinógena. O aparato mutimidiático já fazia os indivíduos
imergirem numa simulação alucinatória, dispensando qualquer tipo de droga para
esse fim. O importante agora era manter-se “ligado” para dançar e interagir
noite a dentro numa festa que podia durar 24 horas.
A trilha musical
do filme, experimental e minimalista, (realizada com o primeiro sintetizador
digital, um aparato chamado Fairlight CMI) é nitidamente hipnótica (como muitas
tendências atuais do tecnopop), dentro do projeto multimídia das ambiências
produzirem efeitos lisérgicos. Cocaína e heroína eram as drogas euforizantes,
diferentes da geração atual das “smart drugs” onde o importante não é ficar
apenas “ligado” mas, também, “esperto” já que as interações tornam-se cada vez
mais tecnológicas (por meio de Ipods, blackberrys etc.) e onde as “baladas”
podem se virtualizar ou entrar em rede por meio do Facebook, por exemplo.
Em síntese, o
olhar estrangeiro de Slava Tsukerman transformou o filme “Liquid Sky” não
apenas numa espécie de documento etnográfico de uma época da cena pop, mas
também tornou-se Cult e atemporal por explorar uma mitologia contemporânea baseada
em um sub-zeitgeist gnóstico que expressa a condição humana como exilada e
dominada. Tsukerman descobriu no ocidente novos demiurgos: os aliens e a
indústria do entretenimento.
Ficha Técnica
Título: Liquid Sky
Diretor: Slava Tsukerman
Roteiro: Slava Tsukerman e Anne Carlisle
Elenco: Anne Carlisle, Paula Sheppard, Susan Doukas, Otto von Wernherr
Produção: Z Films Inc.
Distribuição: Brazil Home Video e Media Home Entertainment
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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