Se no futebol brasileiro há o velho ditado de que, em tempos de crise na Seleção, basta chamar o Chile para levantar o moral, na política externa dos Estados Unidos sob governos republicanos parece haver uma máxima semelhante: quando a popularidade despenca, chama-se a América Latina. Com bravatas militares, ameaças de intervenção e o velho “big stick” de Roosevelt em punho, Donald Trump reedita a cartilha diversionista de seus antecessores — transformando crises internas em espetáculo geopolítico, enquanto jornalistas se perdem na encenação cinematográfica e o verdadeiro jogo de poder acontece nos bastidores. Enquanto os protestos “No Kings” nos EUA tentam salvar as aparências da “maior democracia do planeta” com o ardil semiótico de figurar Trump como um mero psicopata político que abduziu a “democracia”. E não um subproduto de um sistema eleitoral elitista.
No meio dos boleiros e comentaristas de futebol daquelas indefectíveis
mesas redondas de final de domingo há um provérbio irônico: “se a seleção
brasileira está em má fase, chama o Chile!”, para se referir ao histórico de
vitórias sobre aquela seleção como forma de levantar o moral dos jogadores do
time canarinho. E reverter a má fase.
Parece que também para os governos republicanos nos EUA há uma estratégia
diversionista parecida: se o governo está em má fase na opinião pública, chama
a América Latina! Ou em termos mais diretos: arrume uma invasão, uma guerra ou,
pelo menos, brade o “big stick” (o “grande porrete” de Roosevelt) para a América
Latina.
Por exemplo, em 1983, dias depois de uma explosão em uma instalação
militar americana no Líbano ter matado mais de 240 soldados americanos, o
presidente Ronald Reagan desfechou a “Operação Fúria Urgente” – Reagan ordenou
a invasão ilha de Granada alegando ameaça aos cidadãos americanos na nação
caribenha em função da tomada do poder por um governo supostamente comunista
apoiado por Cuba e União Soviética.
E agora, em meio a protestos que estão levando multidões às ruas contra
Trump, a política dos tarifaços começar a revelar a sua inutilidade com o aumento
da inflação dos EUA e o “pacto de paz costurado por Trump” em Gaza que já
começa a apresentar toda a fragilidade, o mandatário republicano coloca a
América Latina na mira: depois de bombardear barcos em águas internacionais, Trump
ameaça ordenar operações por terra contra narcotraficantes.
E já ordenou que o maior porta-aviões do mundo (o USS Gerald Ford) rume
em direção ao Caribe.
Até aqui o “Make America Great Again” se restringe apenas a repetir como
farsa as antigas “Doutrinas Monroe” (aquela que resume a AL ao quintal
geopolítico dos EUA) e o “Big Stick” de Roosevelt (“fale manso e carregue um
grande porrete”).
Para cada ordem, bravata ou medida presidencial assinada por Trump,
devemos sempre ter em mente a síntese do diversionismo na comunicação alt-right
feita por Steve Bannon: “Flood The Zone!”, inunde a mídia de acontecimentos e
notícias tão desconexas que deixe os jornalistas atordoados. Preocupados muitos
mais com o acessório do que com o essencial.
Donald Trump chegou à presidência combinando duas qualidades que adquiriu
em sua carreira: a habilidade adquirida no jogo duro do mercado imobiliário
novaiorquino de transformar crises em um balcão de negócios e o feeling
midiático conseguido na participação em filmes, anúncios de fast food e protagonista
do reality “O Aprendiz”. Se o mercado imobiliário o tornou rico, a televisão tornou-o
famoso.
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| Steve Bannon: "Flood The Zone!" |
Um exemplo dessa estratégia diversionista “Flood The Zone” são as
alegadas motivações políticas de Trump ao impor um tarifaço ao Brasil – STF,
anistia a Bolsonaro, o totalitarismo de Xandão etc. No final, a crise político-diplomática
revelou-se um balcão de negócios: colocar as terras raras brasileiras na mesa de
negociação.
Estratégia diversionista para manter jornalistas ocupados em falsos
debates. Enquanto o mais importante acontece em outra cena.
Ocupando o segundo lugar em reservas mundiais de terras raras (crucial
para as Big Techs que financiaram Trump), o Brasil entra como objeto da
preocupação geopolítica: a China domina o jogo com a tecnologia e
infraestrutura para agregar valor aos minérios raros. Para os EUA, é crucial que
o Brasil não lance mão da sua riqueza com o know how chinês.
Não porque os EUA queiram, eles mesmos, processar industrialmente os
metais – segundo o analista político Bertrand Arnaud, os Estados Unidos não têm
nem vão ter a menor condição de competir com a China. Além de faltar-lhes os
próprios recursos, faltam-lhes a tecnologia, a mão de obra qualificada, o
ecossistema propício, o volume de investimentos, as condições sócio-culturais…
Não só no momento, mas nas décadas vindouras. Portanto, tudo o que Trump faz é
blefar.
Isto sim, na verdade os EUA querem é apenas manter o Brasil de mão
amarradas ao impor a cessão das terras raras como moeda de troca do recuo na
imposição das tarifas e sanções. Sem falar na regulamentação das Big Techs e
dos data centers em território brasileiro.
É sincrônico que a escalada das ameaças ao “narco-terrorismo” da América
Latina aconteça às vésperas do encontro com Lula às margens da cúpula na
Malásia. É o modus operandi trumpista: gerar crises para criar mais
dificuldades no balcão de negócios. E oferecer facilidades.
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| USS Gerald R. Ford: "Big Stick" para AL, mas com estilo... |
Enquanto isso, os estressados jornalistas ficam discutindo o tamanho do
porta-aviões USS Gerald Ford, quantos aviões, destroyers e helicópteros
transporta e quanto soldados cabem... Ficam hipnotizados com toda
prestidigitação cinematográfica. Enquanto calmamente Trump faz negócios.
E em discussões inúteis em canais fechados de notícia, com os informantes
de pauta de sempre, interpretando o Direito Internacional para responder à
questão se os bombardeios letais a barcos no Pacífico e Caribe, que seriam
usados para tráfico de drogas, são legais ou não.
“No Kings”: como salvar as aparências do sistema
A grande mídia brasileira sempre tentou salvar as aparências da América, repetindo
o clichê de que a Democracia americana é “a maior do mundo”, “modelo” etc.
Quando são obrigados a ter que explicar ao distinto público um sistema
que inclui o Colégio Eleitoral, onde a eleição presidencial não é decidida
apenas pelo voto popular nacional, em que cada estado tem suas próprias regras
para as prévias eleitorais a ênfase em "estados-pêndulo" e a
possibilidade de um candidato vencer no voto popular e perder a eleição por
falta de votos no Colégio Eleitoral, desconversam e falam que é um sistema “complexo”.
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Os protestos contra Trump nos EUA, que estão levando milhares de pessoas
às ruas em cidades como Washington, Chicago, Miami, Nova York e Los Angeles, denominados
“No Kings” (Sem Reis), também tentam salvar um sistema eleitoral que Trump e a
extrema-direita sabem ser frágil e baseado unicamente num velho pacto
federativo que desde os séculos XVIII-XIX afunilou o poder em proprietários de
terras e escravos.
Trump e a extrema-direita sabem que o sistema eleitoral dos EUA sempre
elegeu presidentes com baixo comparecimento de eleitores (o voto não é
obrigatório e o sistema é propositalmente desestimulante) e, por isso mesmo,
esses “fios soltos” do sistema nunca ficavam expostos à mídia. Com a estratégia
de polarização transformando o debate político em pleito plebiscitário, Trump
atingiu em cheio o sistema, numa tática deliberada de criar descrença e caos.
O nome “No Kings”, o brand name para turbinar os protestos e virar
verbete na Wikipedia (uma das receitas para se fazer uma RPH - Revolução
Popular Híbrida - dentro da Guerra Híbrida) quer mais do que protestar contra o
Governo. Mas, principalmente, salvar as aparências de um sistema eleitoral
elitista que a extrema direita soube muitos bem explorar suas lacunas.
Pelo manifesto “No Kings”, Donald Trump agiria de forma autoritária, como
um rei. "O presidente acha que seu governo é absoluto", diz a página
na internet dedicada aos atos.
"Mas na América não temos reis e não recuaremos diante do caos, da
corrupção e da crueldade", completa o texto.
Cínico, Trump faz chacota de tudo e ironiza: “Eu não sou rei, fui eleito!”.
Corroborando com o discurso paranoico e conspiratório do mandatário
americano (ele necessita criar um inimigo interno) a mídia informa que os
protestos foram organizados por uma “coalizão de esquerda”.
Na verdade, o movimento é organizado pelo Indivisible Project (iniciado
em 2016 como reação ao governo Trump) cujo financiamento vem através da ActBlue,
Comitê de Ação Política (PAC) e plataforma de arrecadação de fundos do Partido
Democrata.
Ou seja, a estratégia semiótica de promoção dos protestos (associar Trump
a um “Rei” ou ao clichê de uma personalidade despótica que pretende abduzir a
democracia americana) pretende menos denunciar um governo ditatorial e corrupto
e muito mais salvar as aparências da “maior Democracia do mundo livre” –
faixas, cartazes e slogans se limitam a tipificar Trump como algum tipo de
excrescência ou psicopatia política.
E não como a consequência oportunista de um sistema político-eleitoral
intrinsicamente elitista.
sábado, outubro 25, 2025
Wilson Roberto Vieira Ferreira




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