Quando Kathryn Bigelow venceu o Oscar de Melhor Direção por Guerra ao Terror (2008), tornou-se não apenas a primeira mulher a conquistar o prêmio, mas também a cineasta que melhor traduziu os dilemas morais e operacionais da máquina de guerra americana. Para ingressar no campo propagandísticos da normalização ou justificação geopolíticas. Desde então, sua filmografia migrou dos filmes cult — com vampiros errantes, surfistas assaltantes e hackers sensoriais — para o coração do complexo militar-industrial hollywoodiano, onde o realismo técnico e o suspense geopolítico se entrelaçam. Na produção Netflix “Casa de Dinamite” (2025), Bigelow retorna ao campo que a consagrou: um míssil nuclear em rota para os EUA, 15 minutos para reagir, e uma cadeia de decisões que revela não apenas os inimigos externos, mas as rachaduras internas de um sistema de segurança à beira do colapso. Mais do que um filme-catástrofe, sua nova obra é um retrato tenso da “Guerra Fria 2.0” (saem terroristas islâmicos, entram mísseis nucleares) — e da própria diretora, que segue orbitando entre a crítica e a cumplicidade com os bastidores do poder.
Kathryn Bigelow, primeira mulher a ganhar o Oscar de Melhor
Direção em 2010, é uma das diretoras mais influentes do cinema contemporâneo.
Ela se notabilizou em filmes com narrativas sobre personagens “em estados
emocionais exacerbados”.
Desde a sua faze cult: os vampiros cowboys errantes de Quando
Chega a Escuridão (1987), borbulhando de sede de sangue; os viciados em
adrenalina de Caçadores de Emoção (1991), financiando seus hábitos de
surfe assaltando bancos sob as máscaras de Nixon e Reagan; ou os viciados em
tecnologia negociando com clipes cerebrais no subestimado noir futurista, Strange
Days (1995); em K-19 (2002), um submarino russo frágil é atingido
por vazamentos de radiação e um motim.
Seu ponto de inflexão e a passagem para o mainstream (deixando de
ser apenas a ex-esposa do diretor James Cameron) foi o filme Guerra ao
Terror (2008), que não só lhe rendeu o Oscar como ganhou mais visibilidade tratar
de temas militares e de segurança
Desde então ela manteve foco em narrativas ligadas a crises,
operações encobertas e segurança nacional, incluindo obras que exploram caça a
terroristas e decisões de Estado.
Em A Hora Mais Escura (2012), Bigelow foi acusada por
críticos normalização ou justificação de práticas de segurança controversas da
geopolítica da guerra ao terror, ao mesmo tempo em que narra a eficiência militar
na caçada ao homem então mais procurado do mundo: Osama Bin Laden.
Desde então, a diretora passou a ocupar um lugar ambivalente entre
arte e política pela relação muito próxima dos esforços propagandísticos em Hollywood
para promover os interesses geopolíticos do governo norte-americano.
Principalmente pelas produções de alto orçamento sobre temas
sensíveis que frequentemente dependem de acesso a consultoria militar, arquivos
e fontes jornalísticas; esse acesso (para tornar os filmes mais realistas e
tecnicamente precisos) pode condicionar retratos e enquadramentos, aproximando
a obra de discursos oficiais em termos de verossimilhança operacional mesmo
quando a intenção artística é crítica.
Como descreve o documentário Theaters of War (2022) do
jornalista investigativo Tom Secker e do estudioso de mídia Robert Stahl: CIA,
Pentágono e Ministério da Defesa dos EUA têm os “brinquedos” (aviões caça,
porta-aviões etc.), soldados extras e locações de que Hollywood precisa para
produzir seus filmes e garantir o sucesso de bilheteria pelo realismo – clique aqui.
Em troca, exige o “controle de qualidade” dos roteiros,
tornando-se um secreto produtor-executivo. É sob o álibi do “realismo” que
começa a intervenção do complexo militar em Hollywood.
Até que Bigelow tentou sair dessa órbita com o filme Detroit
(2017), sobre uma operação policial que inicia uma rebelião civil. Até envolve duas
divisões aéreas do Exército americano. Mas a diretora narra um caso real de
1967 sobre um dos maiores tumultos da história dos EUA.
Mas com Casa de Dinamite (A House of Dynamite, 2025,
disponível na Netflix), a diretora volta ao campo temático que lhe deu a
notoriedade e, certamente, altos orçamentos contando com a assessoria de
equipamentos, locações e extras do Estado Maior da Defesa dos EUA: em tempo
real o filme acompanha com todo o realismo a reação da Casa Branca e salas de
crise do Ministério da Defesa quando um míssil nuclear, com origem
indeterminada, é detectado vindo do Pacífico, em ascensão até alcançar um voo
suborbital e rumando para os EUA. Com alvo estimado para atingir alguma grande cidade
norte-americana da região dos Grandes Lagos.
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Um thriller com alta adrenalina figurando indivíduos especialistas
e militares treinados para tomar decisões cruciais correndo contra o tempo – só
restam pouco mais de 15 minutos para tentar interceptar o míssil e preparar uma
resposta retaliatória.
E candidatos não faltam. Os suspeitos contumazes: Rússia, China e
Coréia do Norte. A arma pode ser derrubada no ar? Seja possível ou não, os EUA
retaliarão? Bigelow nos leva não apenas aos altos postos de comando, mas também
aos silos de mísseis do centro dos Estados Unidos que são colocados em
alerta.
Casa de Dinamite é uma
produção bastante sintonizada com fim da era da guerra ao terror (combate ao
fundamentalismo islâmico como resultante do “choque de civilizações”, como
justificavam os falcões americanos da guerra) e o início da “Guerra Fria 2.0”
com a Guerra na Ucrânia e a tensão entre OTAN e Rússia.
“Ao final da Guerra Fria, as potencias globais chegaram ao
consenso de que o mundo estaria melhor com menos armas nucleares. Essa era
acabou”, narra uma tensa voz em off na abertura do filme.
De certa forma, o filme retorna à situação absurda de Dr.
Fantástico, de Stanley Kubrick: um erro e a paranoia faz o mundo entrar na
soleira do apocalipse.
A certa altura, um dos especialistas afirma que todos acabaram construído uma casa cheia de dinamite: “as paredes estão prontas para explodir, mas insistimos em viver nela”. Entre os inimigos externos de sempre oferecidos como candidatos a vilões, Casa de Dinamite sugere, entre as opções, um erro sistêmico de um complexo de segurança interna tão intrincado que se volta contra si mesmo.
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O Filme
O filme é dividido em três
partes; ao final de cada parte, a linha do tempo retrocede para o início,
sempre pelo ponto de vista do protagonista do segmento.
Os personagens são
variados, incluindo indivíduos especialistas em suas áreas, oficiais treinados
para tomar decisões cruciais, jovens recrutas absortos pelas telas de
monitoramento etc. Mas também vemos pessoas com famílias, vidas banais e
preocupações cotidianas.
Uma figura do Departamento de Defesa que cuida de uma criança com
febre. Uma chefe de sala de emergência que se vê diante de seu pior dia. Um
especialista em uma base militar está desmoronando após uma briga telefônica
com a namorada e logo se vê tendo que tentar derrubar um míssil possivelmente
de origem norte-coreana (a cada segmento, surge um novo suspeito) antes que ele
atinja Chicago.
E mais. Há um Secretário de Defesa cuja filha amada mora em
Chicago. Finalmente, há o Presidente, que só aparece depois de uma hora de
filme, pego de surpresa no meio de um evento de relações públicas em um jogo de
basquete – ele é um ex-jogador. Lembrando George Bush, que recebeu a notícia
dos atentados a Nova York no meio de uma visita a uma escola infantil.
Aliás, uma pequena curiosidade que chamou a atenção desse humilde
blogueiro: uma estranha recorrência cinematográfica. Frequentemente são
mostrados presidentes negros lidando com crises do “fim do mundo”: Impacto
Profundo, O Quinto Elemento, Idiocracia, Invasão à Casa Branca, 2012, entre
outros. Como se, quando finalmente um negro chega à presidência da maior
potência do planeta, o mundo acaba...
O míssil intercontinental surge como um tijolo que cai de um céu
azul – todo o sistema de defesa é pego de surpresa.
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É o caso da Capitã Olivia Walker, interpretada por uma Rebecca
Ferguson. Seu dia de trabalho começa como qualquer outro, com um beijo de
despedida no marido e no filho, chegando à Casa Branca e guardando o celular em
um armário seguro. Para depois entrar na Sala de Situação, um enclave
subterrâneo escuro repleto de telas que logo transmitirão cenas de um pesadelo.
Um míssil balístico intercontinental está indo direto para
Chicago, e aqueles que trabalham nos bastidores precisam descobrir quem o
lançou e como responder a ele, com o destino do mundo oscilando à beira de um
precipício.
O roteiro está repleto de siglas impenetráveis e termos técnicos
que podemos presumir com segurança serem verdadeiros.
O filme divide em três perspectivas entrelaçadas, cada uma
terminando com os momentos finais antes do impacto (ou não, já que sempre há a
chance de o míssil apresentar defeito), com o capítulo seguinte reiniciando o
início da crise e adotando os pontos de vista do que pareciam ser personagens
secundários.
O presidente acaba sendo interpretado por um afável Idris Elba,
ausente das ligações iniciais sobre a crise por estar jogando basquete com um
time feminino em um evento de relações públicas.
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Sua caracterização certamente parece uma ressaca da era Obama. Ele
nos oferece o terceiro segmento final mais irônico. O presidente é acompanhado
por um militar de poucas palavras e com olhar sinistro, acompanhado de uma
maleta. Ele parece saber da crise, mas nada diz ao presidente que ruma
confiante para o evento. "Ele é meu terceiro [presidente] e todos são
narcisistas cronicamente atrasados. Pelo menos este lê jornal.", confessa para
uma recepcionista da Casa Branca.
Depois que o presidente é informado da crise, o oficial saca da
maleta algo que parece um cardápio de restaurante com as opções de retaliação
nuclear – simplesmente o presidente tem poucos minutos para decidir a escala da
conflagração nuclear global.
Casa de Dinamite é uma
evidente peça de propaganda hollywoodiana sobre os novos tempos na geopolítica dos
EUA: sai o terrorista fundamentalista islâmico que quer se autoexplodir
imaginando um céu com mulheres virgens; entra a Guerra Fria 2.0 com mísseis
intercontinentais nucleares que podem surgir do nada dentro de uma ciberguerra capaz
de cegar satélites de vigilância.
Claro que o complexo militar americano (CIA, Pentágono, Ministério
da Defesa) quer tornar isso menos evidente. Por isso, as notícias de que
supostamente o exército dos EUA estaria fazendo críticas ao filme sobre um
suposto “irrealismo”:
Analistas militares independentes ouvidos pela rádio NPR disseram que "Casa de dinamite" incorpora exageros típicos de Hollywood. Segundo eles, é altamente improvável que um ataque nuclear do tipo acontecesse em um dia calmo e de forma inesperada. Matthew Bunn, da Escola Kennedy de Harvard, disse que um evento desse tipo só ocorreria dentro de um contexto de escalada de tensões ou guerra entre potências, e não de forma isolada. Clique aqui.
Mas, como coloca o documentário Theaters of War, não há
almoço grátis: qual o interesse do complexo militar em gentilmente dispor a
Hollywood assessoria, extras, cenários e locações militares reais para
filmagem?
Certamente, CIA, Pentágono e Ministério da Defesa (agora alterado
para “da Guerra”, por Trump) não estão pensando no progresso da chamada “sétima
arte”.
Ficha Técnica |
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Título: Casa de
Dinamite |
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Diretor: Kathryn
Bigelow |
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Roteiro: Noah
Oppenheim |
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Elenco: Idris Elba,
Rebecca Ferguson, Gabriel Basso |
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Produção: First Light
Productions, Netflix |
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Distribuição: Netflix |
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Ano: 2025 |
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País: EUA |
terça-feira, outubro 28, 2025
Wilson Roberto Vieira Ferreira





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