terça-feira, outubro 28, 2025

A normalização da Guerra Fria 2.0 em 'Casa de Dinamite'



Quando Kathryn Bigelow venceu o Oscar de Melhor Direção por Guerra ao Terror (2008), tornou-se não apenas a primeira mulher a conquistar o prêmio, mas também a cineasta que melhor traduziu os dilemas morais e operacionais da máquina de guerra americana.  Para ingressar no campo propagandísticos da normalização ou justificação geopolíticas. Desde então, sua filmografia migrou dos filmes cult — com vampiros errantes, surfistas assaltantes e hackers sensoriais — para o coração do complexo militar-industrial hollywoodiano, onde o realismo técnico e o suspense geopolítico se entrelaçam. Na produção Netflix “Casa de Dinamite” (2025), Bigelow retorna ao campo que a consagrou: um míssil nuclear em rota para os EUA, 15 minutos para reagir, e uma cadeia de decisões que revela não apenas os inimigos externos, mas as rachaduras internas de um sistema de segurança à beira do colapso. Mais do que um filme-catástrofe, sua nova obra é um retrato tenso da “Guerra Fria 2.0” (saem terroristas islâmicos, entram mísseis nucleares) — e da própria diretora, que segue orbitando entre a crítica e a cumplicidade com os bastidores do poder.

 

Kathryn Bigelow, primeira mulher a ganhar o Oscar de Melhor Direção em 2010, é uma das diretoras mais influentes do cinema contemporâneo. Ela se notabilizou em filmes com narrativas sobre personagens “em estados emocionais exacerbados”.

Desde a sua faze cult: os vampiros cowboys errantes de Quando Chega a Escuridão (1987), borbulhando de sede de sangue; os viciados em adrenalina de Caçadores de Emoção (1991), financiando seus hábitos de surfe assaltando bancos sob as máscaras de Nixon e Reagan; ou os viciados em tecnologia negociando com clipes cerebrais no subestimado noir futurista, Strange Days (1995); em K-19 (2002), um submarino russo frágil é atingido por vazamentos de radiação e um motim.

Seu ponto de inflexão e a passagem para o mainstream (deixando de ser apenas a ex-esposa do diretor James Cameron) foi o filme Guerra ao Terror (2008), que não só lhe rendeu o Oscar como ganhou mais visibilidade tratar de temas militares e de segurança

Desde então ela manteve foco em narrativas ligadas a crises, operações encobertas e segurança nacional, incluindo obras que exploram caça a terroristas e decisões de Estado.

Em A Hora Mais Escura (2012), Bigelow foi acusada por críticos normalização ou justificação de práticas de segurança controversas da geopolítica da guerra ao terror, ao mesmo tempo em que narra a eficiência militar na caçada ao homem então mais procurado do mundo: Osama Bin Laden.

Desde então, a diretora passou a ocupar um lugar ambivalente entre arte e política pela relação muito próxima dos esforços propagandísticos em Hollywood para promover os interesses geopolíticos do governo norte-americano.

Principalmente pelas produções de alto orçamento sobre temas sensíveis que frequentemente dependem de acesso a consultoria militar, arquivos e fontes jornalísticas; esse acesso (para tornar os filmes mais realistas e tecnicamente precisos) pode condicionar retratos e enquadramentos, aproximando a obra de discursos oficiais em termos de verossimilhança operacional mesmo quando a intenção artística é crítica.

Como descreve o documentário Theaters of War (2022) do jornalista investigativo Tom Secker e do estudioso de mídia Robert Stahl: CIA, Pentágono e Ministério da Defesa dos EUA têm os “brinquedos” (aviões caça, porta-aviões etc.), soldados extras e locações de que Hollywood precisa para produzir seus filmes e garantir o sucesso de bilheteria pelo realismo – clique aqui.

Em troca, exige o “controle de qualidade” dos roteiros, tornando-se um secreto produtor-executivo. É sob o álibi do “realismo” que começa a intervenção do complexo militar em Hollywood. 

Até que Bigelow tentou sair dessa órbita com o filme Detroit (2017), sobre uma operação policial que inicia uma rebelião civil. Até envolve duas divisões aéreas do Exército americano. Mas a diretora narra um caso real de 1967 sobre um dos maiores tumultos da história dos EUA.

Mas com Casa de Dinamite (A House of Dynamite, 2025, disponível na Netflix), a diretora volta ao campo temático que lhe deu a notoriedade e, certamente, altos orçamentos contando com a assessoria de equipamentos, locações e extras do Estado Maior da Defesa dos EUA: em tempo real o filme acompanha com todo o realismo a reação da Casa Branca e salas de crise do Ministério da Defesa quando um míssil nuclear, com origem indeterminada, é detectado vindo do Pacífico, em ascensão até alcançar um voo suborbital e rumando para os EUA. Com alvo estimado para atingir alguma grande cidade norte-americana da região dos Grandes Lagos.



Um thriller com alta adrenalina figurando indivíduos especialistas e militares treinados para tomar decisões cruciais correndo contra o tempo – só restam pouco mais de 15 minutos para tentar interceptar o míssil e preparar uma resposta retaliatória.

E candidatos não faltam. Os suspeitos contumazes: Rússia, China e Coréia do Norte. A arma pode ser derrubada no ar? Seja possível ou não, os EUA retaliarão? Bigelow nos leva não apenas aos altos postos de comando, mas também aos silos de mísseis do centro dos Estados Unidos que são colocados em alerta. 

Casa de Dinamite é uma produção bastante sintonizada com fim da era da guerra ao terror (combate ao fundamentalismo islâmico como resultante do “choque de civilizações”, como justificavam os falcões americanos da guerra) e o início da “Guerra Fria 2.0” com a Guerra na Ucrânia e a tensão entre OTAN e Rússia.

“Ao final da Guerra Fria, as potencias globais chegaram ao consenso de que o mundo estaria melhor com menos armas nucleares. Essa era acabou”, narra uma tensa voz em off na abertura do filme.

De certa forma, o filme retorna à situação absurda de Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick: um erro e a paranoia faz o mundo entrar na soleira do apocalipse.

A certa altura, um dos especialistas afirma que todos acabaram construído uma casa cheia de dinamite: “as paredes estão prontas para explodir, mas insistimos em viver nela”.  Entre os inimigos externos de sempre oferecidos como candidatos a vilões, Casa de Dinamite sugere, entre as opções, um erro sistêmico de um complexo de segurança interna tão intrincado que se volta contra si mesmo.




O Filme

 O filme é dividido em três partes; ao final de cada parte, a linha do tempo retrocede para o início, sempre pelo ponto de vista do protagonista do segmento.

 Os personagens são variados, incluindo indivíduos especialistas em suas áreas, oficiais treinados para tomar decisões cruciais, jovens recrutas absortos pelas telas de monitoramento etc. Mas também vemos pessoas com famílias, vidas banais e preocupações cotidianas.

Uma figura do Departamento de Defesa que cuida de uma criança com febre. Uma chefe de sala de emergência que se vê diante de seu pior dia. Um especialista em uma base militar está desmoronando após uma briga telefônica com a namorada e logo se vê tendo que tentar derrubar um míssil possivelmente de origem norte-coreana (a cada segmento, surge um novo suspeito) antes que ele atinja Chicago.

E mais. Há um Secretário de Defesa cuja filha amada mora em Chicago. Finalmente, há o Presidente, que só aparece depois de uma hora de filme, pego de surpresa no meio de um evento de relações públicas em um jogo de basquete – ele é um ex-jogador. Lembrando George Bush, que recebeu a notícia dos atentados a Nova York no meio de uma visita a uma escola infantil.

Aliás, uma pequena curiosidade que chamou a atenção desse humilde blogueiro: uma estranha recorrência cinematográfica. Frequentemente são mostrados presidentes negros lidando com crises do “fim do mundo”: Impacto Profundo, O Quinto Elemento, Idiocracia, Invasão à Casa Branca, 2012, entre outros. Como se, quando finalmente um negro chega à presidência da maior potência do planeta, o mundo acaba...

O míssil intercontinental surge como um tijolo que cai de um céu azul – todo o sistema de defesa é pego de surpresa.



É o caso da Capitã Olivia Walker, interpretada por uma Rebecca Ferguson. Seu dia de trabalho começa como qualquer outro, com um beijo de despedida no marido e no filho, chegando à Casa Branca e guardando o celular em um armário seguro. Para depois entrar na Sala de Situação, um enclave subterrâneo escuro repleto de telas que logo transmitirão cenas de um pesadelo.

Um míssil balístico intercontinental está indo direto para Chicago, e aqueles que trabalham nos bastidores precisam descobrir quem o lançou e como responder a ele, com o destino do mundo oscilando à beira de um precipício.

O roteiro está repleto de siglas impenetráveis ​​e termos técnicos que podemos presumir com segurança serem verdadeiros.

O filme divide em três perspectivas entrelaçadas, cada uma terminando com os momentos finais antes do impacto (ou não, já que sempre há a chance de o míssil apresentar defeito), com o capítulo seguinte reiniciando o início da crise e adotando os pontos de vista do que pareciam ser personagens secundários.

O presidente acaba sendo interpretado por um afável Idris Elba, ausente das ligações iniciais sobre a crise por estar jogando basquete com um time feminino em um evento de relações públicas.




Sua caracterização certamente parece uma ressaca da era Obama. Ele nos oferece o terceiro segmento final mais irônico. O presidente é acompanhado por um militar de poucas palavras e com olhar sinistro, acompanhado de uma maleta. Ele parece saber da crise, mas nada diz ao presidente que ruma confiante para o evento. "Ele é meu terceiro [presidente] e todos são narcisistas cronicamente atrasados. Pelo menos este lê jornal.", confessa para uma recepcionista da Casa Branca.

Depois que o presidente é informado da crise, o oficial saca da maleta algo que parece um cardápio de restaurante com as opções de retaliação nuclear – simplesmente o presidente tem poucos minutos para decidir a escala da conflagração nuclear global.

 Casa de Dinamite é uma evidente peça de propaganda hollywoodiana sobre os novos tempos na geopolítica dos EUA: sai o terrorista fundamentalista islâmico que quer se autoexplodir imaginando um céu com mulheres virgens; entra a Guerra Fria 2.0 com mísseis intercontinentais nucleares que podem surgir do nada dentro de uma ciberguerra capaz de cegar satélites de vigilância.

Claro que o complexo militar americano (CIA, Pentágono, Ministério da Defesa) quer tornar isso menos evidente. Por isso, as notícias de que supostamente o exército dos EUA estaria fazendo críticas ao filme sobre um suposto “irrealismo”:

Analistas militares independentes ouvidos pela rádio NPR disseram que "Casa de dinamite" incorpora exageros típicos de Hollywood. Segundo eles, é altamente improvável que um ataque nuclear do tipo acontecesse em um dia calmo e de forma inesperada. Matthew Bunn, da Escola Kennedy de Harvard, disse que um evento desse tipo só ocorreria dentro de um contexto de escalada de tensões ou guerra entre potências, e não de forma isolada. Clique aqui.

Mas, como coloca o documentário Theaters of War, não há almoço grátis: qual o interesse do complexo militar em gentilmente dispor a Hollywood assessoria, extras, cenários e locações militares reais para filmagem?

Certamente, CIA, Pentágono e Ministério da Defesa (agora alterado para “da Guerra”, por Trump) não estão pensando no progresso da chamada “sétima arte”.


 

Ficha Técnica

Título:  Casa de Dinamite

Diretor: Kathryn Bigelow

Roteiro: Noah Oppenheim

Elenco: Idris Elba, Rebecca Ferguson, Gabriel Basso

Produção: First Light Productions, Netflix

Distribuição: Netflix

Ano: 2025

País: EUA

 

 

 

 

 

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