sábado, outubro 04, 2025

A distopia de um processo seletivo parental em 'A Avaliação'

 


As mudanças climáticas e pandemia destruíram a maior parte do planeta. E tudo foi colocado na conta da explosão populacional. O que restou da sociedade foi completamente controlado. Principalmente a reprodução humana, sob o controle direto de um Estado totalitário que otimiza a vida, incluindo avaliações de paternidade. Em "A Avaliação" (Assessment, 2025, disponível na Prime Video) um casal bem-sucedido é examinado por uma avaliadora durante sete dias para determinar sua aptidão para ter filhos gerados em fetos artificiais. Uma espécie de “processo seletivo” que parece ter evoluído em algo análogo aos processos seletivos atuais: não se trata mais de avaliar a proficiência, mas as chamadas “competências emocionais” que parecem muito mais ocultar algum ardil ou objetivo secreto. De simples entrevistas, transformam-se em verdadeiro reality shows, com “pegadinhas” para arrancar algum tipo de reação emocional que se volte contra o candidato.

Já foi o tempo em que os processos seletivos corporativos se baseavam exclusivamente da proficiência profissional, conhecimentos acadêmicos e a experiência do saber-fazer do dia a dia. Era uma forma de o departamento de Recursos Humanos da empresa separar os sábios dos sabidos, e conseguir distinguir qual candidato efetivamente tinha o conhecimento profissional daquele que unicamente conseguia cativar as pessoas e improvisava quando era exigido profissionalmente.

Hoje os processos de avaliações cada vez mais se assemelham a reality shows: estão mais preocupados em habilidades comportamentais e emocionais (inteligência emocional, atitudes, “soft skills”, “fit cultural” etc.), imergindo os candidatos em desafios ou competições em equipes. Deixando a proficiência profissional e acadêmica em segundo lugar. Tanto porque, a Inteligência Artificial está absorvendo o saber-fazer, deixando aos “colaboradores” os aspectos comunicacionais e mercadológicos da empresa.

Deixando para os selecionadores a preocupação de conseguir distinguir entre as performances dos candidatos autênticas das encenadas – principalmente quando sabemos da existência de cursos ou tutoriais coachs motivacionais que dão dicas de como se dar bem em avaliações corporativas.

E se no futuro essa evolução dos processos seletivos deixarem o campo corporativo e se infiltrarem no campo parental e familiar? Por exemplo, criar processos seletivos para casais que se candidatem a serem pais de crianças geradas em fetos artificiais sob a tutela do Estado.

Esse é o tema do filme A Avaliação (The Assessment, 2025): decidir se você está pronto para ser pai ou mãe já é bastante difícil. Ter alguém decidindo por você é ainda mais difícil, especialmente quando essa pessoa é uma representante do Estado que te faz passar por todo tipo de situação sem precisar explicar o motivo.   

Essa é a premissa perturbadora desse drama distópico de ficção científica de Fleur Fortuné. O primeiro longa da diretora veterana de videoclipes. Que se reflete no filme: muito estilo e sinaliza e o uso confiante de enquadramento, textura e cor.  



É o futuro próximo. Algum tipo de desastre climático ocorreu, forçando as pessoas a recomeçarem de forma espartana, o que parece sombrio, mas é preferível à devastação do Velho Mundo – uma parte do planeta para onde foram despachados os críticos e rebeldes do Novo Mundo onde o controle populacional é uma política totalitária de Estado.

Parece que toda a catástrofe climática que ocorreu foi colocada na conta da chamada “bomba populacional”. E, desde então, o governo proíbe a reprodução pela forma tradicional: as crianças só podem ser geradas fora do útero em fetos artificiais.

Somente aqueles que mais colaboram com a sociedade (cientistas, engenheiros etc.) é permitido tornarem-se pais de crianças geradas a partir do próprio esperam e óvulo do casal. Porém, terão que enfrentar o derradeiro processo de avaliação: o governo autoritário tem um sistema de seleção de pais, que envolve uma avaliadora morando com os potenciais pais por uma semana para determinar se eles são aptos para a função.

Mia (Elizabeth Olsen) e Aaryan (Himesh Patel) são pessoas muito importantes: ele é um cientista que trabalha com IA e ela é uma bióloga vegetal que trabalha em novas fontes de energia orgânica. Eles estão confiantes de que sua avaliação será bem-sucedida.

O problema é que a avaliação vai muito além de qualquer coisa como, digamos, o procedimento de adoção dos velhos tempos; levará sete dias, durante os quais o avaliador viverá com o casal – dos questionários básicos sobre a consciência e habilidades parentais, a coisa evolui para dinâmicas cênicas, “pegadinhas”, etc. que faz a avaliação evoluir para outra coisa: um reality show? A avaliadora é também uma atriz? Por que as dinâmicas grupais parecem querer empurrar o casal candidato às discussões mútuas? O que afinal está sendo avaliado: a capacidade de amar e cuidar do futuro filho ou a vida conjugal?

Há algo profundamente irônico no filme: apesar de parecer que alguns casais realmente conseguem sucesso em suas candidaturas, se torna cada vez mais difícil imaginar uma criança existindo naquele mundo emocionalmente frio e desolado.


E quando o processo seletivo parental se torna cada vez mais errático ao longo da semana de avaliação, cada vez mais se revela que crianças são apenas ideias desejados, aspirações que existem para abafar memórias de relacionamentos agonizantes com seus próprios pais. E, também, para abafar memórias do que aconteceu com o planeta. 

Cada vez mais suspeitamos que a Avaliação tem outro objetivo bem diferente, para além de avaliar a competência paterna.

O Filme

A Avaliação imagina um futuro em que tudo seria praticamente controlado pelo Estado. As mudanças climáticas destruíram a maior parte do mundo, e o que restou dele foi completamente controlado e protegido.

Os recursos naturais são limitados e, como resultado, a paternidade também estava sob a jurisdição do Estado – toda a culpa da devastação do planeta foi colocado na questão demográfica.

Somos apresentados a um casal amoroso, Mia e Aaryan, cuja contribuição para a construção do "novo mundo" foi significativa. Aaryan é um cientista que trabalha com IA, enquanto Mia é bióloga vegetal, e sua pesquisa se concentra em encontrar novas fontes de energia orgânica. O casal acredita estar naquele estágio do relacionamento em que estavam prontos para criar um filho juntos. Mas no "novo mundo", as mulheres não tinham permissão para conceber, e a única maneira de terem um filho era por meio de um processo conhecido como "Avaliação".

A casa minimalista onde vivem os cientistas casados ​​Mia e Aaryan brota do topo de uma colina em meio a um terreno acidentado e varrido pelo vento. E tudo e todos existem sob a proteção de uma cúpula transparente e ondulante, como se estivessem presos dentro de uma água-viva. 

 O trabalho deles é gratificante: ele cria animais de estimação virtuais realistas, já que os pets foram proibidos (ao que parece, houve algum tipo de pandemia, que varreu a humanidade, iniciada pelos animais de estimação), enquanto ela se concentra no desenvolvimento da vida vegetal. Uma voz onisciente, semelhante à da Alexa, atende a todas as suas necessidades.



E, no entanto, em meio à casa neutra e de bom gosto, com seus toques de cores vibrantes e janelas marcantes inspiradas em Mondrian, algo está faltando: uma criança. 

É aí que entra Alicia Vikander (Ex-Machina) como Virginia, a assessora que decidirá o destino deles dentro dos rígidos limites populacionais impostos pelo governo. Ela explica, com naturalidade, que precisa se mudar por uma semana e observar tudo sobre a vida deles — e isso significa tudo. Com seu coque justo e repartido ao meio e seu traje formal de professora, Virginia parece, a princípio, uma figura estoica e reservada.

É impossível para eles lerem a mente de Virginia quando ela lhes fez algumas perguntas que a ajudariam a entender se o casal era elegível para ser pai. Desde o primeiro dia, as vidas de Mia e Aaryan são perturbadas e invadida pela avaliadora. Quando ela reclama do quarto que lhe foi atribuído, o casal ofereceu-lhe o quarto de casal enquanto se espremem na cama de solteiro.

Mia fica horrorizada ao notar Virginia olha para ela e Aaryan fazendo amor. Ela afirma que os ver em meio à intimidade também fazia parte da avaliação.



Mas não para por aí. Virginia performa ser a filha do casal nas diversas idades, da infância à adolescência rebelde – dá chilique, à mesa brinca com a comida e joga nos pais, simulando os jogos infantis. Supostamente, ela está estudando as reações dos candidatos a pais: compreensão, paciência, criação de limites etc.

Na verdade, ela cria diferentes jogos mentais cada vez mais intrusivos.  Por mais que desejem um filho, suportar Virginia era um grande desafio para o casal. Mia inicialmente sentiu como se Virginia estivesse favorecendo Aaryan em detrimento dela. Virginia se faz passar por uma criança, e espera-se que o casal atenda a todas as suas exigências. Mia tem dificuldade em levar o ato a sério. Ela se perguntou se ceder às suas exigências seria a única solução, ou se talvez criar limites ajudaria a demonstrar suas habilidades parentais.

Mas há algum ardil secreto em Virginia, que escapa à compreensão do casal.

Mas o ponto alto de A Avaliação é o jantar improvisado que Virginia organiza para ver como o casal se comporta em situações sociais. Uma convidada, de língua afiada (ela tem 153 anos – graças ao desenvolvimento da bioengenharia) - torna essa festa deliciosamente constrangedora, simplesmente por contar a verdade sobre a paternidade quando todos os outros se esforçam para ser educados.  Principalmente o casal convidado que teve a paternidade recusada pela Avaliação.

Claro que aos poucos o espectador vai tirando suas próprias conclusões: uma catástrofe climática provocada pela explosão populacional; e depois uma sociedade constituída apenas por uma elite com grande longevidade pelos avanços da ciência; e um rígido controle da reprodução pelo Estado, assistido por avaliadores. Tudo parece querer desmotivar as pessoas a terem filhos.

Mas o vazio existencial em uma vida longa, inóspita e fria, trás o desejo de ter filhos para encher o vazio de propósitos.

Se a avaliação parental naquele futuro evoluiu como os atuais processos seletivos que simulam avaliar a proficiência profissional, quando na verdade avaliam apenas competências emocionais, então podemos imaginar que a Avaliação tem um outro objetivo. Para além da competência parental.


 

Ficha Técnica

 

Título: A Avaliação

Diretor: Fleur Fortune

Roteiro: Nell Garfath Cox, Dave Thomas, John Donnelly

Elenco: Alicia Vikander,Elizabeth Olsen, Himesh Patel

Produção: Number 9 Films, Augenschein Filmproduktion

Distribuição:  Amazon Prime Video

Ano: 2024

País: Reino Unido, Alemanha

 

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