Se a extensa filmografia brasileira do século XXI sobre a ditadura — de "Zuzu Angel" (2006) ao oscarizado "Ainda Estou Aqui" — mergulhou nos traumas dos "Anos de Chumbo" e da resistência, “O Agente Secreto” (2025) ousa trilhar um caminho distinto. Em vez do choque da tortura física, Kleber Mendonça Filho (“Bacurau”, “Retratos Fantasmas”) nos apresenta o horror do "terror administrativo". Situado no ano de 1977, o filme captura com precisão cirúrgica o momento em que a violência do regime deixou os porões escuros para se instalar, sob a luz fria e burocrática, nas repartições públicas, transformando carimbos, papéis e arquivos de aço em institutos de identificação policiais em armas tão letais quanto um fuzil. “O Agente secreto” nos traz um alerta urgente: o Brasil é um país que enterrou seus mortos sem fazer a autópsia completa da história.
A filmografia brasileira desse século sobre a ditadura militar
brasileira é extensa. Zuzu Angel (2006 - A história da estilista que desafia o
regime militar para encontrar o corpo do filho, militante de esquerda
desaparecido) deu início a esse mergulho nos traumas desse período da história
brasileira: Torre das Donzelas (2018), Deslembro (2018), Marighella
(2019), O Pastor e o Guerrilheiro (2022), O Mensageiro (2023),
chegando ao premiado com o Oscar Ainda Estou Aqui (2025).
Mas O Agente Secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho (Aquarius,
Bacurau e Retratos Fantasmas) é uma produção que se distingue dessa lista
por capturar com uma precisão cirúrgica a transição da ditadura do período do “terror
espetacular” para o “terror administrativo”.
Talvez, o período em que ficou mais evidente a paradoxal construção
da nacionalidade brasileira: enquanto as narrativas políticas clássicas criam
um inimigo externo como estratégia para criar uma coesão interna num grupo,
comunidade ou nação, no caso brasileiro esse inimigo é INTERNO – a violência
diluída no cotidiano sob o terror não mais dos paus de arara ou tortura física;
mas da morte civil administrativa, isto é, como Estado pode "matar"
uma pessoa simplesmente apagando seus registros ou negando um passaporte. Até
chegar ao próprio desaparecimento físico.
De certa forma, Kleber Mendonça Filho tropicaliza o conceito da “banalidade
do mal” de Hanna Arendt (para descrever burocratas nazistas que apenas
"cumpriam ordens") – a banalidade do mal em repartições públicas e
como o filme retira o capuz dos torturadores do regime militar: do empresário
sulista ao consórcio de matadores de aluguel que anda pelas ruas e praias do
Recife de camisa social de tergal e óculos de grau.
Daí a ironia desconstrutivista do título do filme: o agente
secreto somos nós. O filme sugere que o verdadeiro "agente secreto" é
a própria sociedade vigiada, onde o porteiro, o vizinho e o burocrata do
Instituto de Identificação são peças de uma engrenagem que opera no silêncio.
O Agente Secreto não é um
filme sobre heróis da resistência armada, mas sobre a asfixia do cidadão comum
e a institucionalização do medo no chamado "ano do meio" da ditadura
(1977), quando o regime já não precisava gritar para ser aterrorizante; ele
apenas existia.
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O ano de 1977 foi o ano do “Pacote de Abril” e da “distensão lenta
e gradual” da ditadura militar. Mas Kleber Mendonça Filho ataca essa narrativa
de que a ditadura foi branda em seus anos finais. Ele mostra que a violência
mudou de forma: saiu dos porões e foi para a burocracia, para o corte de verbas
nas universidades e para a perseguição econômica.
O país viveu o chamado período da "distensão lenta, gradual e
segura" durante a ditadura militar, um momento em que a violência
explícita dos anos de chumbo começa a dar lugar a uma vigilância silenciosa e
burocrática.
Neste cenário, acompanhamos Marcelo (Wagner Moura), um professor
universitário de 40 anos que foge de São Paulo para o Recife, tentando escapar
de agentes do governo e de um passado político que o condenou à
clandestinidade. Chegando à capital pernambucana na semana do Carnaval, ele
busca duas coisas: refúgio no anonimato e a chance de reencontrar seu filho
pequeno.
Além dessa questão do título desconstrutivista do filme, Kléber
Mendonça Filho nos revela uma “ditadura periférica”. O filme descentraliza a
história. Ao focar no Recife, mostra como o regime operava fora do eixo Rio-SP.
A arquitetura do Recife, principalmente os prédios com cinemas de rua (tema
recorrente do diretor, desde Retratos Fantasmas) aqui funciona como uma espécie
de gaiola. Os prédios modernistas do Centro não são mais símbolos de progresso,
mas agora torres de vigilância.
Depois dos anos de chumbo da tortura e repressão, em 1977 o regime
militar buscava uma fachada de legalidade. Mas a violência não desapareceu; ela
foi institucionalizada e diluída no cotidiano. Esse é o grave tema de O Agente
Secreto.
Embora fale do passado, o filme dialoga com o presente. O filme
dialoga com o conceito moderno de Lawfare (o uso da lei como arma de
guerra). Em 1977, a ditadura usava leis de segurança nacional e decretos-lei
para justificar perseguições.
O filme mostra que a ditadura não acabou apenas com a anistia; ela deixou uma herança na forma como os dispositivos de segurança tratam o cidadão: primeiro como suspeita, até que se prove o contrário.
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Além do tema da "sujeira varrida para baixo do tapete", na
verdade arquivada em pastas. O filme sugere que o Brasil nunca abriu totalmente
essas pastas, permitindo que a lógica autoritária sobrevivesse nas estruturas
da polícia e do judiciário, mesmo na democracia.
Em outras palavras, o filme mostra como a questão militar e a ditadura foram
denegadas, como se a democracia pudesse ser construída sobre o esquecimento
coletivo.
O Filme
O Agente Secreto abre com uma
magistral sequência que entrega o que será o tema central do filme: o terror
burocrático como forma de colocar debaixo do tapete a sujeira varrida.
Marcelo para em um posto de gasolina empoeirado de beira de estrada para
abastecer o seu fusca. A primeira coisa que chama a atenção é um corpo que jaz no
chão, ao lado do posto, encoberto por placas de papelão. Indiferente, o
frentista fala que está tudo bem. Foi alguém que tentou roubar óleo com uma
peixeira na noite anterior e tomou uns tiros de um segurança.
O máximo que o frentista faz é afastar os cachorros que querem insistentemente farejar o corpo. E a polícia rodoviária, que também para no local, interessa-se
menos ainda pelo corpo. Está mais interessada em arrancar um suborno de Marcelo
para “ajudar na caixinha de Natal”.
Marcelo faz parte de um grupo de “refugiados” que tentam, com a
ajuda de advogados ativistas pelos direitos humanos, conseguir uma nova
identidade no Recife para sobreviver à “morte civil”.
O que caracteriza a estrutura narrativa escolhida por Kleber
Mendonça Filho é a incompletude e os saltos temporais que, a princípio, podem
causar estranheza ao espectador.
Saltos temporais que conduzem o espectador ao presente, onde duas
estagiárias de uma universidade examinam documentos em que emergem vítimas da
ditadura como Marcelo, nome falso utilizado por Armando. São fitas cassetes que
registraram depoimentos da época, inclusive do protagonista, mas também jornais
do período.
Passamos a primeira hora do filme montando os fragmentos
narrativos aparentemente aleatórios do diretor para chegarmos ao quadro maior proposto
pelo filme: a passagem do “terror espetacular” das torturas em porões para o “terror
administrativo” da anônima estrutura de delações onde a confiança é impossível.
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As pessoas que ajudam a caçar Marcelo não são monstros sádicos;
são o porteiro que anota os horários de entrada e saída, a vizinha que comenta
sobre movimentações estranhas, e o escrivão que repassa o endereço dele para o
consórcio de matadores.
A ditadura sai dos quartéis e entra nos condomínios. O filme
ilustra brilhantemente como o regime transformou cidadãos comuns em
"agentes secretos" não remunerados, criando uma sociedade de delação.
Visualmente, o filme abandona os porões escuros e sujos. A
fotografia aposta na luz fria, fluorescente, das repartições públicas e dos
prédios modernistas do Recife.
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É o horror à luz do dia sugerido por Kleber Mendonça Filho:
A violência burocrática acontece em salas limpas, com ar-condicionado (um luxo
na época) e pisos encerados. Esse contraste é perturbador: o ambiente sugere
civilidade e ordem, mas a finalidade é a eliminação de seres humanos.
Para reforçar esteticamente essa ideia, há um fetiche visual em O
Agente Secreto por arquivos de aço, gavetas deslizando e fichas
datilografadas. Esses objetos, aparentemente inofensivos, são apresentados como
as verdadeiras jaulas. Se o seu nome está na gaveta errada, sua vida acaba.
A escolha de situar o clímax no Instituto de Identificação da
Polícia Civil é a metáfora suprema. É o local onde o Estado diz quem você é.
Ao ser encurralado ali, Marcelo está lutando não apenas pela vida biológica,
mas pelo direito de ter um nome e uma história.
O Agente Secreto não oferece uma catarse redentora como em Ainda Estou Aqui. Pelo contrário, o filme termina com o filho de Marcelo já adulto, Fernando, negando em abrir os arquivos em uma pen drive sobre o pai dele.
Serve como um alerta: o Brasil é um país que enterrou seus mortos
sem fazer a autópsia completa da história.
Ficha Técnica |
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Título: O Agente
Secreto |
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Direção: Kleber
Mendonça Filho |
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Roteiro: Kleber
Mendonça Filho |
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Elenco: Wagner Moura,
Robson Andrade, Hermila Guedes, Rubens Santos, Licínio Januário |
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Produção: CinemaScópio
Produções, MK Productions |
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Distribuição: Vitrine
Filmes |
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Ano: 2025 |
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País: Brasil |
sexta-feira, novembro 21, 2025
Wilson Roberto Vieira Ferreira





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