sexta-feira, novembro 21, 2025

O terror administrativo da ditadura militar em 'O Agente Secreto'



Se a extensa filmografia brasileira do século XXI sobre a ditadura — de "Zuzu Angel" (2006) ao oscarizado "Ainda Estou Aqui" — mergulhou nos traumas dos "Anos de Chumbo" e da resistência, “O Agente Secreto” (2025) ousa trilhar um caminho distinto. Em vez do choque da tortura física, Kleber Mendonça Filho (“Bacurau”, “Retratos Fantasmas”) nos apresenta o horror do "terror administrativo". Situado no ano de 1977, o filme captura com precisão cirúrgica o momento em que a violência do regime deixou os porões escuros para se instalar, sob a luz fria e burocrática, nas repartições públicas, transformando carimbos, papéis e arquivos de aço em institutos de identificação policiais em armas tão letais quanto um fuzil. “O Agente secreto” nos traz um alerta urgente: o Brasil é um país que enterrou seus mortos sem fazer a autópsia completa da história.

A filmografia brasileira desse século sobre a ditadura militar brasileira é extensa. Zuzu Angel (2006 - A história da estilista que desafia o regime militar para encontrar o corpo do filho, militante de esquerda desaparecido) deu início a esse mergulho nos traumas desse período da história brasileira: Torre das Donzelas (2018), Deslembro (2018), Marighella (2019), O Pastor e o Guerrilheiro (2022), O Mensageiro (2023), chegando ao premiado com o Oscar Ainda Estou Aqui (2025).  

Mas O Agente Secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho (Aquarius, Bacurau e Retratos Fantasmas) é uma produção que se distingue dessa lista por capturar com uma precisão cirúrgica a transição da ditadura do período do “terror espetacular” para o “terror administrativo”.

Talvez, o período em que ficou mais evidente a paradoxal construção da nacionalidade brasileira: enquanto as narrativas políticas clássicas criam um inimigo externo como estratégia para criar uma coesão interna num grupo, comunidade ou nação, no caso brasileiro esse inimigo é INTERNO – a violência diluída no cotidiano sob o terror não mais dos paus de arara ou tortura física; mas da morte civil administrativa, isto é, como Estado pode "matar" uma pessoa simplesmente apagando seus registros ou negando um passaporte. Até chegar ao próprio desaparecimento físico.

De certa forma, Kleber Mendonça Filho tropicaliza o conceito da “banalidade do mal” de Hanna Arendt (para descrever burocratas nazistas que apenas "cumpriam ordens") – a banalidade do mal em repartições públicas e como o filme retira o capuz dos torturadores do regime militar: do empresário sulista ao consórcio de matadores de aluguel que anda pelas ruas e praias do Recife de camisa social de tergal e óculos de grau.

Daí a ironia desconstrutivista do título do filme: o agente secreto somos nós. O filme sugere que o verdadeiro "agente secreto" é a própria sociedade vigiada, onde o porteiro, o vizinho e o burocrata do Instituto de Identificação são peças de uma engrenagem que opera no silêncio.

O Agente Secreto não é um filme sobre heróis da resistência armada, mas sobre a asfixia do cidadão comum e a institucionalização do medo no chamado "ano do meio" da ditadura (1977), quando o regime já não precisava gritar para ser aterrorizante; ele apenas existia.



O ano de 1977 foi o ano do “Pacote de Abril” e da “distensão lenta e gradual” da ditadura militar. Mas Kleber Mendonça Filho ataca essa narrativa de que a ditadura foi branda em seus anos finais. Ele mostra que a violência mudou de forma: saiu dos porões e foi para a burocracia, para o corte de verbas nas universidades e para a perseguição econômica.

O país viveu o chamado período da "distensão lenta, gradual e segura" durante a ditadura militar, um momento em que a violência explícita dos anos de chumbo começa a dar lugar a uma vigilância silenciosa e burocrática.

Neste cenário, acompanhamos Marcelo (Wagner Moura), um professor universitário de 40 anos que foge de São Paulo para o Recife, tentando escapar de agentes do governo e de um passado político que o condenou à clandestinidade. Chegando à capital pernambucana na semana do Carnaval, ele busca duas coisas: refúgio no anonimato e a chance de reencontrar seu filho pequeno.

Além dessa questão do título desconstrutivista do filme, Kléber Mendonça Filho nos revela uma “ditadura periférica”. O filme descentraliza a história. Ao focar no Recife, mostra como o regime operava fora do eixo Rio-SP. A arquitetura do Recife, principalmente os prédios com cinemas de rua (tema recorrente do diretor, desde Retratos Fantasmas) aqui funciona como uma espécie de gaiola. Os prédios modernistas do Centro não são mais símbolos de progresso, mas agora torres de vigilância.

Depois dos anos de chumbo da tortura e repressão, em 1977 o regime militar buscava uma fachada de legalidade. Mas a violência não desapareceu; ela foi institucionalizada e diluída no cotidiano. Esse é o grave tema de O Agente Secreto.

Embora fale do passado, o filme dialoga com o presente. O filme dialoga com o conceito moderno de Lawfare (o uso da lei como arma de guerra). Em 1977, a ditadura usava leis de segurança nacional e decretos-lei para justificar perseguições.

O filme mostra que a ditadura não acabou apenas com a anistia; ela deixou uma herança na forma como os dispositivos de segurança tratam o cidadão: primeiro como suspeita, até que se prove o contrário.



Além do tema da "sujeira varrida para baixo do tapete", na verdade arquivada em pastas. O filme sugere que o Brasil nunca abriu totalmente essas pastas, permitindo que a lógica autoritária sobrevivesse nas estruturas da polícia e do judiciário, mesmo na democracia.

Em outras palavras, o filme mostra como a questão militar e a ditadura foram denegadas, como se a democracia pudesse ser construída sobre o esquecimento coletivo.

O Filme

O Agente Secreto abre com uma magistral sequência que entrega o que será o tema central do filme: o terror burocrático como forma de colocar debaixo do tapete a sujeira varrida.

Marcelo para em um posto de gasolina empoeirado de beira de estrada para abastecer o seu fusca. A primeira coisa que chama a atenção é um corpo que jaz no chão, ao lado do posto, encoberto por placas de papelão. Indiferente, o frentista fala que está tudo bem. Foi alguém que tentou roubar óleo com uma peixeira na noite anterior e tomou uns tiros de um segurança.

O máximo que o frentista faz é afastar os cachorros que querem insistentemente farejar o corpo. E a polícia rodoviária, que também para no local, interessa-se menos ainda pelo corpo. Está mais interessada em arrancar um suborno de Marcelo para “ajudar na caixinha de Natal”.

Marcelo faz parte de um grupo de “refugiados” que tentam, com a ajuda de advogados ativistas pelos direitos humanos, conseguir uma nova identidade no Recife para sobreviver à “morte civil”.

O que caracteriza a estrutura narrativa escolhida por Kleber Mendonça Filho é a incompletude e os saltos temporais que, a princípio, podem causar estranheza ao espectador. Saltos temporais que conduzem o espectador ao presente, onde duas estagiárias de uma universidade examinam documentos em que emergem vítimas da ditadura como Marcelo, nome falso utilizado por Armando. São fitas cassetes que registraram depoimentos da época, inclusive do protagonista, mas também jornais do período. 

Passamos a primeira hora do filme montando os fragmentos narrativos aparentemente aleatórios do diretor para chegarmos ao quadro maior proposto pelo filme: a passagem do “terror espetacular” das torturas em porões para o “terror administrativo” da anônima estrutura de delações onde a confiança é impossível.



As pessoas que ajudam a caçar Marcelo não são monstros sádicos; são o porteiro que anota os horários de entrada e saída, a vizinha que comenta sobre movimentações estranhas, e o escrivão que repassa o endereço dele para o consórcio de matadores.

A ditadura sai dos quartéis e entra nos condomínios. O filme ilustra brilhantemente como o regime transformou cidadãos comuns em "agentes secretos" não remunerados, criando uma sociedade de delação.

Visualmente, o filme abandona os porões escuros e sujos. A fotografia aposta na luz fria, fluorescente, das repartições públicas e dos prédios modernistas do Recife.



É o horror à luz do dia sugerido por Kleber Mendonça Filho: A violência burocrática acontece em salas limpas, com ar-condicionado (um luxo na época) e pisos encerados. Esse contraste é perturbador: o ambiente sugere civilidade e ordem, mas a finalidade é a eliminação de seres humanos.

Para reforçar esteticamente essa ideia, há um fetiche visual em O Agente Secreto por arquivos de aço, gavetas deslizando e fichas datilografadas. Esses objetos, aparentemente inofensivos, são apresentados como as verdadeiras jaulas. Se o seu nome está na gaveta errada, sua vida acaba.

A escolha de situar o clímax no Instituto de Identificação da Polícia Civil é a metáfora suprema. É o local onde o Estado diz quem você é. Ao ser encurralado ali, Marcelo está lutando não apenas pela vida biológica, mas pelo direito de ter um nome e uma história.

O Agente Secreto não oferece uma catarse redentora como em Ainda Estou Aqui. Pelo contrário, o filme termina com o filho de Marcelo já adulto, Fernando, negando em abrir os arquivos em uma pen drive sobre o pai dele.

Serve como um alerta: o Brasil é um país que enterrou seus mortos sem fazer a autópsia completa da história.


 


Ficha Técnica

Título:  O Agente Secreto

Direção: Kleber Mendonça Filho

Roteiro: Kleber Mendonça Filho

Elenco: Wagner Moura, Robson Andrade, Hermila Guedes, Rubens Santos, Licínio Januário

Produção: CinemaScópio Produções, MK Productions

Distribuição: Vitrine Filmes

Ano: 2025

País: Brasil

 

Postagens Relacionadas

 

Memórias em ruínas no filme 'Retratos Fantasmas'

 

 

Filme "Bacurau" perde no cabo de guerra forma versus conteúdo

 

 

'Ainda Estou Aqui' e a cordial luta de classes brasileira

 

 

 


O que tem a ver queda de aprovação do governo Lula com o hype do filme 'Ainda Estou Aqui'?

 

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review