sexta-feira, outubro 17, 2025

O hotel como um microcosmo kafkiano e gnóstico em 'Mr. K'

 


Desde o Bates Motel do vilão Norman bates no filme "Psicose" de Hitchcock, os hotéis renderam uma longa filmografia do terror ao drama e humor negro – lugares misteriosos, decadentes, habitado por fantasmas, assassinos, golpistas etc. Isso porque os hotéis parecem espaços inerentemente estranhos: um lugar que podemos chamar de lar por um tempo limitado. Mas, mesmo assim, compartilhamos nossa experiência com pessoas que nunca conheceremos. “Mr. K” (2024, disponível na Apple TV), produção europeia dirigida por Talluah Hazekamp Schwab, dá continuidade a esse imaginário com uma interessante combinação entre referências literárias a Kafka e a antiga mitologia gnóstica. A jornada labiríntica e surreal de seu protagonista, um mágico aprisionado em um hotel bizarro e inescapável, serve como uma poderosa alegoria gnóstica. Através de sua atmosfera kafkiana e de seus temas de aprisionamento, busca por conhecimento e a natureza ilusória da realidade, o filme espelha os princípios fundamentais do Gnosticismo.


“Cada ser humano é um universo dentro de si, flutuando na escuridão eterna,
sem rumo, solitário... tão solitário. Ou talvez seja só eu.” (Sr. K)


Hotéis são inerentemente estranhos. São espaços em que a exposição pública e a vida privada estão muito próximas. Porque são domicílios temporários em um momento em que estamos a passeio ou a negócios. Um lugar que podemos chamar de lar por um tempo limitado, junto com amigos ou familiares. Mas, mesmo assim, compartilhamos nossa experiência com pessoas que nunca conheceremos.

Isso talvez explique por que vemos tantos filmes sobre hotéis misteriosos, decadentes, seja habitado por fantasmas, assassinos, pequenos escroques ou golpistas. Nesses lugares em que nunca conheceremos o outro, só podem despertar em nós estranheza e suspeita. Por fim, foi exatamente essa a origem da crônica policial e a literatura de mistérios com detetives e suspeitos.

Por mais que o marketing e a publicidade transformem resorts, hotéis, pousadas, flat-apart hotel etc. em extensões de nossas casas.

Mas e se os hotéis forem mesmo não só uma extensão das nossas casas, mas da própria existência? Um microcosmo não só da sociedade, mas inclusive do próprio tecido da realidade?

Essa é a proposta do filme Mr. K (2024), dirigido por Talluah Hazekamp Schwab, que não só faz essa analogia (a estrutura hoteleira como a própria estrutura burocrática da sociedade) como a aproxima de amálgama de referências literárias a Franz Kafka combinadas com uma poderosa alegoria da condição humana conforme imaginada pela antiga mitologia gnóstica.

Estrelado por Crispin Glover, transcende o mero suspense psicológico para se aprofundar em uma rica alegoria do simbolismo existencial e espiritual. A jornada labiríntica e surreal de seu protagonista, um mágico aprisionado em um hotel bizarro e inescapável, serve como uma poderosa alegoria gnóstica. Através de sua atmosfera kafkiana e de seus temas de aprisionamento, busca por conhecimento e a natureza ilusória da realidade, o filme espelha os princípios fundamentais do Gnosticismo.

Desde seu título até o argumento central, o longa-metragem constrói uma atmosfera de desorientação, angústia e absurdo que ecoa diretamente as obras mais emblemáticas do autor tcheco, como "O Processo" e "O Castelo". A jornada do protagonista Mr. K é uma descida a um labirinto burocrático e existencial do qual não há escapatória lógica, tornando o filme uma explícita manifestação do que se convencionou chamar de "kafkiano".




A referência mais imediata e intencional reside no próprio nome do protagonista, "Mr. K". Este é um aceno direto a Josef K., o personagem principal de "O Processo", e a K., o agrimensor de "O Castelo". Ambos os personagens de Kafka são indivíduos comuns subitamente confrontados por sistemas opacos, ilógicos e impenetráveis. Assim como os protagonistas de Kafka, Mr. K do filme é um homem arrancado de sua normalidade — um mágico viajante — e aprisionado em uma realidade com regras próprias e inescrutáveis.

 E o cenário de tudo isso é um hotel grandioso e decadente, que funciona como a materialização do castelo ou do tribunal kafkiano.

Assim como em Kafka, o filme Mr. K transforma o labiríntico hotel em um microcosmo da própria condição humana gnóstica: As tentativas de Mr. K de encontrar a saída são frustradas por corredores que se reconfiguram, portas que não levam a lugar nenhum e uma arquitetura que desafia a razão. Essa estrutura labiríntica e em constante mutação simboliza a natureza da burocracia e das estruturas de poder na obra de Kafka: um sistema projetado não para servir, mas para confundir, desgastar e subjugar o indivíduo.

Mr. K materializa essa prisão cósmica em um enorme hotel em decadente estilo vitoriano. O protagonista, o mágico Sr. K, chega como um hóspede transitório, mas logo descobre que as saídas são ilusórias e os corredores se reconfiguram, prendendo-o em um pesadelo sem fim. O hotel, com suas regras arbitrárias e habitantes passivos que aceitam sua condição como normal, representa o mundo material gnóstico – um sistema opressivo e sem sentido que mantém as almas cativas. Os funcionários do hotel, com sua autoridade inexplicável e sua manutenção do status quo, podem ser vistos como os Arcontes, os servos do Demiurgo que governam e guardam a prisão terrena.

Mr. K é uma produção europeia (Noruega, Bélgica e Países Baixos). O que é uma coisa notável em termos de produção de filmes gnósticos. Isso porque tradicionalmente diretores e produtores europeus preferem desenvolver temáticas em torno daquilo que poderíamos chamar de “demasiado humano”: narrativas que versam sobre impasses éticos, morais ou dúvidas existenciais sobre “o sentido da vida”; e as discussões em torno da natureza humana.



Ao contrário, os filmes gnósticos se desviam das discussões sobre a natureza humana para se concentrar no absurdo da realidade como um constructo artificial para aprisionar o protagonista – que, no final, representa a própria condição existencial humana.

Por isso, os filmes gnósticos europeus são produções menos numerosas. Podemos enumerar algumas, como O Homem Que Incomoda (Noruega, 2012), Cosmodrama (França, 2015), Matar a Dios (Espanha, 2017), a série alemã Dark (2017-2020) entre outros.

Se bem que nos últimos anos vêm crescendo a produção de argumentos gnósticos na cinematografia europeia. Talvez, pelo recrudescimento da Guerra Fria 2.0 da OTAN contra a Rússia com a guerra na Ucrânia.

O Filme

“Cada ser humano é um universo dentro de si, flutuando na escuridão eterna, sem rumo, solitário... tão solitário. Ou talvez seja só eu.”

Rapidamente descobrimos que estas são as palavras de um mágico viajante, o "Sr. K " (Crispin Glover). Ele realiza números de mágica vintage em clubes antiquados, lotados de clientes ocupados demais com suas refeições e conversas para prestar atenção à sua maravilhosa arte.

Depois de arrumar suas malas surradas, ele deixa aquele café sombrio e se encontra em frente a uma decadente propriedade vitoriana – um enorme e velho hotel decadente. Sr .K imagina ser um local para descansar a cabeça por uma noite. Ele tem um show em um evento agendado para a manhã do dia seguinte.

Uma vez lá dentro, vemos que este outrora grandioso hotel agora nada mais é do que uma elegância desbotada.

Uma brusca gerente permanece inexpressiva na Recepção, enquanto seus olhos, um deles de vidro, inspecionam o mágico com desconfiança. Ela o conduz rapidamente por uma escada em espiral até seu quarto. As paredes são todas verde-escuras e o papel de parede desbotado, descascando bastante.

Pode-se imaginar que este seja um estabelecimento irmão do decadente Hotel Earle, do filme Barton Fink dos irmãos Coen. Quando ele encontra pessoas escondidas dentro de seu quarto, elas saem sem dizer uma palavra e ele as dispensa com um dar de ombros confuso. Ruídos estranhos emanam das paredes enquanto ele mergulha em um sono inquieto.



No dia seguinte, vestido com seu terno preto impecável, ele arruma sua triste bagagem e sai para fechar sua conta na Recepção. No entanto, o que antes parecia um simples corredor, agora é um labirinto de corredores sem fim. Crianças sujas correm de um lado para o outro, passando rapidamente entre as portas antes de roubarem sua bagagem. Uma banda de metais, daquelas em estilo circense, que parece sair diretamente das paredes, marcha sem parar pelos corredores, empurrando-o cada vez mais para dentro deste mundo caótico.

Por fim, ele encontra duas senhoras idosas, vestidas com vestidos combinando de cetim azul-bebê e renda. As mulheres alegam ser francesas, mas curiosamente têm sotaque britânico. Elas dizem que não saem há anos porque têm tudo o que precisam ali mesmo.

Por fim, ele tropeça na cozinha, onde involuntariamente se torna um operário de linha. Lá, ele faz amizade com um homem chamado Anto, cuja única ambição na vida é um dia se tornar um misturador de ovos na cozinha.

Sem nem tentar, o Sr. K rapidamente sobe na hierarquia da cozinha, perdendo seu amigo ao longo do caminho.

Por fim, é claro, tudo desmorona quando ele descobre o segredo oculto do hotel e tenta desesperadamente convencer primeiro o chef principal, depois os funcionários da cozinha e, por fim, todos os outros hóspedes presos a trabalharem juntos para encontrar uma saída. À medida que a insanidade da situação se intensifica, o Sr. K fica cada vez mais desesperado, isolado e desconfiado daqueles ao seu redor.

A angústia de Mr. K é alimentada pela lógica absurda que rege o hotel e seus habitantes. Os funcionários e os outros hóspedes agem com uma passividade desconcertante, aceitando sua condição como perfeitamente normal. Eles seguem rituais sem sentido e respondem às tentativas desesperadas de fuga de Mr. K com indiferença ou com respostas burocráticas que apenas aprofundam seu aprisionamento.

Há algum tipo de autoridade invisível e onipresente, cujas leis são arbitrárias e cuja culpa de quem pense em se rebelar é presumida, mas nunca explicada.



A ironia gnóstica

O filme guarda uma ironia curiosa: enquanto o Sr. K estava no mundo “real” fazendo seus números de ilusionismo, ninguém da plateia prestava a atenção nele. Estavam mais interessados com seus afazeres do mundo real: a comida, a bebida, as conversas etc.

Quando o protagonista é capturado por aquele hotel-prisão, temos a situação inversa: ele tenta denunciar a ilusão (a situação absurda em que todos naturalizam no cotidiano) tentando mostrar a realidade, a saída. Mas ninguém lhe dá atenção.

Sua profissão de mágico, um manipulador da realidade e do controle, torna-se ironicamente inútil dentro de um sistema que ele não consegue nem começar a compreender. Ele deixa de ser um artista para se tornar apenas mais uma peça na engrenagem inexplicável do hotel, uma jornada de anulação pessoal que reflete a desumanização do indivíduo perante sistemas totalizantes.

Além das referências literárias a Kafka, os principais tropos do Gnosticismo estão em Mr. K. O Sr. K, como protagonista, encarna a figura do buscador da gnosis. Sua profissão como mágico é particularmente simbólica. A magia, em seu cerne, é a arte de manipular a realidade e revelar o que está oculto. No entanto, dentro do hotel, sua mágica é ineficaz, uma metáfora para a futilidade da tentativa de aplicar a lógica e o conhecimento do mundo exterior a uma realidade fundamentalmente falha. Sua busca incessante por uma saída, seu mapeamento obsessivo dos corredores em constante mudança, representa a busca da alma pela verdade em um mundo projetado para confundir e enganar.

Os outros hóspedes do hotel representam a maioria da humanidade na visão gnóstica: aqueles que estão "adormecidos", inconscientes de sua prisão. Eles se adaptaram às regras absurdas do hotel, encontrando conforto na rotina e na ignorância. A indiferença deles ao sofrimento do Sr. K e à sua busca pela liberdade destaca a dificuldade da jornada gnóstica, que muitas vezes é um caminho solitário.

O final do filme, embora aberto a interpretações, reforça a leitura gnóstica.

Sem revelar spoilers, a conclusão não oferece uma fuga fácil ou uma resolução convencional. Em vez disso, sugere uma transformação na percepção do Sr. K.

A verdadeira libertação, no pensamento gnóstico, não é necessariamente uma fuga física, mas uma transcendência espiritual, uma compreensão que liberta a alma da ignorância, mesmo que o corpo permaneça no mundo material. A jornada do Sr. K, portanto, pode culminar não em encontrar uma porta para o mundo exterior, mas em alcançar um estado de consciência que o eleva acima da lógica opressiva do hotel.


 

Ficha Técnica 

 

Título: Mr. K

Diretor: Tallulah Hazekamp Schwab

Roteiro:  Tallulah Hazekamp Schwab

Elenco:  Crispin Glover, Sunnyi Melles, Fionnula Flanagan

Produção: Lemming Film, The Film Kitchen

Distribuição: Doppelganger Releasing

Ano: 2024

País: Noruega, Bélgica, Países Baixos

 

 

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