quinta-feira, novembro 13, 2025

A positividade tóxica da cultura da felicidade na série 'Pluribus'



Vivemos sob o peso de uma contradição moderna: o mundo parece à beira do colapso, mas somos implacavelmente ordenados a "ser felizes". Entre o apocalipse climático e o imperativo da cultura coaching, essa busca frenética pela positividade ameaça nos tornar indiferentes e acríticos. É exatamente essa distopia da "adaptação feliz" que a nova série da Apple TV+, “Pluribus” (2025-), explora, transformando a felicidade compulsória em uma aterrorizante invasão alienígena. Após duas décadas imerso na angústia moral de Breaking Bad e Better Call Saul, Vince Gilligan retorna à TV com “Pluribus”, uma série que troca o crime pela ficção científica. No entanto, o verdadeiro terror não vem de monstros, mas da própria felicidade — uma "mente colmeia" de origem alienígena que pacifica a humanidade. A série funciona como uma crítica afiada ao nosso zeitgeist de positividade tóxica, questionando o que realmente significa ser humano quando a dor e o conflito são erradicados.

Estamos cercados por duas mensagens contraditórias que acabam formando a nossa percepção do cotidiano: de um lado, a mídia nos informa diariamente que o mundo está à beira do abismo com ameaças ecológicas, apocalipse climático, perigo nuclear, violência etc.; e do outro um imperativo crescente de que devemos ser felizes, apesar de tudo.

Disso se depreende que o tipo de felicidade que está sendo incentivada é a da feliz adaptação: indivíduos suaves e embotados em sua capacidade crítica e de indignação.

“Quem? Eu me preocupar?”, esse era o lema da revista de humor cáustico chamada “Mad”, sempre dito por um personagem enigmático chamado Alfred Newman, sempre com um sorriso amarelo estampado no rosto. Era a paródia do imperativo da cultura da felicidade – um ethos reforçado por todo um arsenal médico-terapêutico-psicológico-farmacêutico para extirpar o mal que atormenta milhares de almas: a melancolia e a depressão.

O que a cultura da felicidade quer de nós é o exercício diário da indiferença, da racionalização e do esquecimento através de uma frenética cultura hiperativa do “pensar fora da caixinha” e “sair da zona de conforto” da cultura coaching. Só então, estaremos “felizes”.

Um zeitgeist que só se expandiu no século XXI pela revolução digital, redes sociais e hiperconectividade. Vivemos imersos em algoritmos que prometem nos "conectar" e receber a nossa carga de dopamina diária com likes e engajamentos sobre aquilo que postamos nas redes.

Saúde perfeita, transparência e diversidade trazidos pela conectividade global e tempo real.

Mas que, ironicamente, resulta num efeito contrário: os algoritmos frequentemente criam câmaras de eco solipsistas e bolhas ideológicas. O que seria a fusão total de cidadãos globais e cosmopolitas, transforma-se num paradoxal provincianismo digital.




Então imagine se alienígenas, de algum ponto do cosmos, estivessem nos observado há muito tempo. Talvez, consternados com o nosso eterno retorno histórico de guerras, conflitos, individualismo e polarizações, resolvessem dar uma ajudinha para nós para alcançarmos a “felicidade” perfeita: a fusão total, onde a individualidade é dissolvida em prol de um pensamento único e coletivo.

Se é a felicidade que buscamos de forma febril, então esses alienígenas nos dariam uma ajuda. Mas da pior maneira, na opinião de uma dissidente da felicidade, a única resistência no planeta a uma inusitada invasão alien.

Estamos falando da nova série da Apple TV+, Pluribus (2025-), criada por Vince Gilligan, o homem que passou as últimas duas décadas imerso no mundo angustiante de Breaking Bad, Better Call Saul e El Camino.

Talvez Gilligan esteja retornando às suas raízes de Arquivo X sobre um vírus de origem alienígena (um sinal de DNA vindo do espaço) que infecta a humanidade, criando uma "mente colmeia". Os infectados tornam-se pacíficos, cooperativos e perpetuamente felizes, erradicando guerras, conflitos e emoções negativas. A protagonista, Carol (interpretada por Rhea Seehorn), é uma das poucas imunes, que vê esse novo mundo "perfeito" como uma anulação da própria humanidade e luta para "salvar o mundo da felicidade".

O título “Pluribus” evoca um lema tradicional dos EUA (“E Pluribus unum”, “de muitos, um”) que simboliza a união das treze colônias originais em uma única nação. Cuja inclusão no Grande Selo dos Estados Unidos foi aprovada pelo Congresso em 1782.



Pois ironicamente os alienígenas realizam essa utopia representada em tantos simbolismos, da religião à política. Cuja busca desesperada da felicidade individualista, do pensamento positivo e da performance da vida perfeita (tão revelado nas selfies das redes sociais) foi o resultante da falência das utopias de comunhão das religiões e ideologias políticas.

Pelo menos nos episódios iniciais da série não fica claro se é algo a ver com algum tipo de invasão alien ao estilo do filme clássico Invasores de Corpos.

Ou se a humanidade está sendo sufocada pelo excesso de altruísmo de uma civilização extraterrestres que nos observou por muito tempo e ficou sensibilizada pela nossa busca frustrada da paz, felicidade e união.

E resolveu nos dar tudo isso de “presente”.

A Série

Na nova série do criador de Breaking Bad, Vince Gilligan , o gênero policial dá lugar a uma mistura desconcertante de ficção científica e noir.

Repleta de inspirações óbvias, desde Invasores de Corpos até expressões menos óbvias de Coherence, de James Ward Byrkit, a nova série de Gilligan para a Apple TV+ começa com a autora best-seller Carol Sturka ( Rhea Seehorn ) lendo o último livro de sua série de sucesso para uma plateia de fãs em uma livraria. Ela autografa e tira fotos, parecendo estar realmente envolvida com tudo.

Mas, após a sessão de autógrafos, diz ao seu motorista que seu trabalho é “uma porcaria sem sentido”.

Longe dos fãs e envolta na escuridão de um carro, ela parece abatida, não como se odiasse os fãs com quem passou a noite, mas como se odiasse a fachada de si mesma que teve que usar ao ler trechos de sua própria obra para os fãs ávidos. 

Enquanto isso, em algum lugar do mundo, uma cientista é mordida por um rato em um laboratório. Enquanto desinfeta as mãos, seu corpo se contrai violentamente e um sorriso infantil, porém estranho, toma conta de seu rosto.



Então, o episódio volta a Carol e sua parceira Helen (Miriam Shor) que param em um bar para tomar um drinque a caminho de casa após a turnê de lançamento do livro. De repente, os corpos dos outros clientes se contraem da mesma forma que a cientista da sequência anterior. Exceto Carol, que observa a tudo aterrorizada.

À medida em que se aproxima de sua casa, observa incêndios tomando conta de quarteirões da cidade. E um apagão massivo ocorre em todo o mundo, deixando claro que algum tipo de surto está afetando os habitantes da Terra.

Mas, em vez de um típico vírus zumbi ou praga, Gilligan nos oferece um tipo de surto surpreendentemente diferente: um vírus que faz todos na Terra “felizes”.

Carol é uma escritora de meia-idade, best-seller de romances de fantasia romântica, fantasticamente rica, adorada por centenas de milhares de fãs – e tão furiosamente infeliz quanto só uma misantropa poderia ser nessas condições. E Carol parece ser a única pessoa na América imune ao vírus. A hilaridade certamente virá!

Para Carol, a utopia realizada é um pesadelo, agravado pelo fato de sua esposa, Helen (Miriam Shor), não ter sobrevivido à infecção (uma entre milhões no mundo todo tem esse letal efeito colateral, como se revela – uma das desvantagens de levar a felicidade aos demais).



A atenção de todos, dominados pela mentalidade de colmeia, se volta para Carol: hordas sorridentes tentam atender a todas as suas necessidades, trabalhando – apesar de seus apelos desesperados para que parem – na busca por uma cura, por assim dizer, para sua imunidade e para integrá-la ao grupo satisfeito.

"Só queremos ajudar, Carol", é o refrão cada vez mais sinistro. "Não é uma invasão alienígena", garante o novo presidente, que transmite pronunciamentos televisionados só para ela, diretamente da Casa Branca.

Carol acaba conhecendo uma meia dúzia de pessoas do mundo inexplicavelmente imunes à felicidade de colmeia trazida pelos aliens. 

Um deles passa a desfrutar a vida com uma raridade mimada – ele solicita dos prestativos alienígenas, nada mais nada menos, que o avião presidencial Number One da Força Aérea dos EUA, repleto de mulheres, para rodar o mundo em uma festa 24 horas por dia.

O restante apenas está ansioso em retornar para suas famílias, quando descobriram que seus parentes ficaram felizes, pacíficos e prestativos.

Cineteratologia e os zumbis da felicidade

A trama é deliberadamente ambígua sobre se a nova ordem é boa ou má. Para a "mente colmeia", é uma utopia. Para Carol, é um apocalipse. O mundo está em paz, mas perdeu sua alma.

Pluribus transforma a busca da felicidade em uma praga zumbi. A felicidade torna-se obrigatória e patológica. A protagonista, descrita como "a pessoa mais infeliz do mundo", torna-se a heroína precisamente por preservar seu direito de ser infeliz, de sofrer e de sentir a gama completa de emoções humanas.

A série critica essa positividade tóxica. Ela sugere que uma humanidade desprovida de sua capacidade de sentir dor, luto ou raiva não é uma utopia, mas uma distopia vazia. A dor e o conflito são apresentados como componentes essenciais do livre-arbítrio e da própria definição de "ser humano".

Em termos da Cineteratologia (os estudos das diferentes representações da monstruosidade e do Mal no cinema) Pluribus cria uma interessante variação dentro da mitologia zumbi.

Se tradicionalmente o morto-vivo é um repositório de tudo aquilo que a sociedade abomina e com a qual se aterroriza, ao contrário, a humanidade transformada em zumbis da “mente colmeia” em Pluribus torna-se a realização irônica de todas as utopias de paz e comunhão das ideologias políticas, seitas e religiões.


 

 

Ficha Técnica

Título:  Pluribus

Criação: Vince Gilligan

Roteiro: Vince Gilligan, Ariel Levine, Vera Blasi

Elenco: Rhea Seehorn, Mriam Shor, Peter Bergman

Produção: High Bridge Productions, Bristol Circle

Distribuição: Apple TV+

Ano: 2025

País: EUA

 

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