Vivemos sob o peso de uma contradição moderna: o mundo parece à beira do colapso, mas somos implacavelmente ordenados a "ser felizes". Entre o apocalipse climático e o imperativo da cultura coaching, essa busca frenética pela positividade ameaça nos tornar indiferentes e acríticos. É exatamente essa distopia da "adaptação feliz" que a nova série da Apple TV+, “Pluribus” (2025-), explora, transformando a felicidade compulsória em uma aterrorizante invasão alienígena. Após duas décadas imerso na angústia moral de Breaking Bad e Better Call Saul, Vince Gilligan retorna à TV com “Pluribus”, uma série que troca o crime pela ficção científica. No entanto, o verdadeiro terror não vem de monstros, mas da própria felicidade — uma "mente colmeia" de origem alienígena que pacifica a humanidade. A série funciona como uma crítica afiada ao nosso zeitgeist de positividade tóxica, questionando o que realmente significa ser humano quando a dor e o conflito são erradicados.
Estamos cercados por duas mensagens contraditórias que acabam
formando a nossa percepção do cotidiano: de um lado, a mídia nos informa
diariamente que o mundo está à beira do abismo com ameaças ecológicas,
apocalipse climático, perigo nuclear, violência etc.; e do outro um imperativo
crescente de que devemos ser felizes, apesar de tudo.
Disso se depreende que o tipo de felicidade que está sendo
incentivada é a da feliz adaptação: indivíduos suaves e embotados em sua
capacidade crítica e de indignação.
“Quem? Eu me preocupar?”, esse era o lema da revista de humor
cáustico chamada “Mad”, sempre dito por um personagem enigmático chamado Alfred
Newman, sempre com um sorriso amarelo estampado no rosto. Era a paródia do
imperativo da cultura da felicidade – um ethos reforçado por todo um arsenal
médico-terapêutico-psicológico-farmacêutico para extirpar o mal que atormenta
milhares de almas: a melancolia e a depressão.
O que a cultura da felicidade quer de nós é o exercício diário da
indiferença, da racionalização e do esquecimento através de uma frenética
cultura hiperativa do “pensar fora da caixinha” e “sair da zona de conforto” da
cultura coaching. Só então, estaremos “felizes”.
Um zeitgeist que só se expandiu no século XXI pela revolução
digital, redes sociais e hiperconectividade. Vivemos imersos em algoritmos que
prometem nos "conectar" e receber a nossa carga de dopamina diária
com likes e engajamentos sobre aquilo que postamos nas redes.
Saúde perfeita, transparência e diversidade trazidos pela conectividade
global e tempo real.
Mas que, ironicamente, resulta num efeito contrário: os algoritmos
frequentemente criam câmaras de eco solipsistas e bolhas ideológicas. O que
seria a fusão total de cidadãos globais e cosmopolitas, transforma-se num
paradoxal provincianismo digital.
![]() |
Então imagine se alienígenas, de algum ponto do cosmos, estivessem
nos observado há muito tempo. Talvez, consternados com o nosso eterno retorno
histórico de guerras, conflitos, individualismo e polarizações, resolvessem dar
uma ajudinha para nós para alcançarmos a “felicidade” perfeita: a fusão total,
onde a individualidade é dissolvida em prol de um pensamento único e coletivo.
Se é a felicidade que buscamos de forma febril, então esses
alienígenas nos dariam uma ajuda. Mas da pior maneira, na opinião de uma
dissidente da felicidade, a única resistência no planeta a uma inusitada
invasão alien.
Estamos falando da nova série da Apple TV+, Pluribus
(2025-), criada por Vince Gilligan, o homem que passou as últimas duas décadas
imerso no mundo angustiante de Breaking Bad, Better Call Saul e El
Camino.
Talvez Gilligan esteja retornando às suas raízes de Arquivo X
sobre um vírus de origem alienígena (um sinal de DNA vindo do espaço) que infecta
a humanidade, criando uma "mente colmeia". Os infectados tornam-se
pacíficos, cooperativos e perpetuamente felizes, erradicando guerras, conflitos
e emoções negativas. A protagonista, Carol (interpretada por Rhea Seehorn), é
uma das poucas imunes, que vê esse novo mundo "perfeito" como uma
anulação da própria humanidade e luta para "salvar o mundo da
felicidade".
O título “Pluribus” evoca um lema tradicional dos EUA (“E Pluribus
unum”, “de muitos, um”) que simboliza a união das treze colônias originais em
uma única nação. Cuja inclusão no Grande Selo dos Estados Unidos foi aprovada
pelo Congresso em 1782.
![]() |
Pois ironicamente os alienígenas realizam essa utopia representada
em tantos simbolismos, da religião à política. Cuja busca desesperada da felicidade
individualista, do pensamento positivo e da performance da vida perfeita (tão
revelado nas selfies das redes sociais) foi o resultante da falência das
utopias de comunhão das religiões e ideologias políticas.
Pelo menos nos episódios iniciais da série não fica claro se é
algo a ver com algum tipo de invasão alien ao estilo do filme clássico
Invasores de Corpos.
Ou se a humanidade está sendo sufocada pelo excesso de altruísmo
de uma civilização extraterrestres que nos observou por muito tempo e ficou
sensibilizada pela nossa busca frustrada da paz, felicidade e união.
E resolveu nos dar tudo isso de “presente”.
A Série
Na nova série do criador de Breaking Bad, Vince
Gilligan , o gênero policial dá lugar a uma mistura desconcertante de
ficção científica e noir.
Repleta de inspirações óbvias, desde Invasores de Corpos
até expressões menos óbvias de Coherence, de James Ward Byrkit, a nova
série de Gilligan para a Apple TV+ começa com a autora best-seller Carol Sturka
( Rhea Seehorn ) lendo o último livro de sua série de sucesso para
uma plateia de fãs em uma livraria. Ela autografa e tira fotos, parecendo estar
realmente envolvida com tudo.
Mas, após a sessão de autógrafos, diz ao seu motorista que seu
trabalho é “uma porcaria sem sentido”.
Longe dos fãs e envolta na escuridão de um carro, ela parece
abatida, não como se odiasse os fãs com quem passou a noite, mas como se
odiasse a fachada de si mesma que teve que usar ao ler trechos de sua própria
obra para os fãs ávidos.
Enquanto isso, em algum lugar do mundo, uma cientista é mordida
por um rato em um laboratório. Enquanto desinfeta as mãos, seu corpo se contrai
violentamente e um sorriso infantil, porém estranho, toma conta de seu rosto.
![]() |
Então, o episódio volta a Carol e sua parceira Helen (Miriam Shor)
que param em um bar para tomar um drinque a caminho de casa após a turnê de
lançamento do livro. De repente, os corpos dos outros clientes se contraem da
mesma forma que a cientista da sequência anterior. Exceto Carol, que observa a
tudo aterrorizada.
À medida em que se aproxima de sua casa, observa incêndios tomando
conta de quarteirões da cidade. E um apagão massivo ocorre em todo o mundo, deixando
claro que algum tipo de surto está afetando os habitantes da Terra.
Mas, em vez de um típico vírus zumbi ou praga, Gilligan nos
oferece um tipo de surto surpreendentemente diferente: um vírus que faz todos
na Terra “felizes”.
Carol é uma escritora de meia-idade, best-seller de romances de
fantasia romântica, fantasticamente rica, adorada por centenas de milhares de
fãs – e tão furiosamente infeliz quanto só uma misantropa poderia ser nessas
condições. E Carol parece ser a única pessoa na América imune ao vírus. A
hilaridade certamente virá!
Para Carol, a utopia realizada é um pesadelo, agravado pelo fato
de sua esposa, Helen (Miriam Shor), não ter sobrevivido à infecção (uma entre
milhões no mundo todo tem esse letal efeito colateral, como se revela – uma das
desvantagens de levar a felicidade aos demais).
![]() |
A atenção de todos, dominados pela mentalidade de colmeia, se
volta para Carol: hordas sorridentes tentam atender a todas as suas
necessidades, trabalhando – apesar de seus apelos desesperados para que parem –
na busca por uma cura, por assim dizer, para sua imunidade e para integrá-la ao
grupo satisfeito.
"Só queremos ajudar, Carol", é o refrão cada vez mais
sinistro. "Não é uma invasão alienígena", garante o novo presidente,
que transmite pronunciamentos televisionados só para ela, diretamente da Casa
Branca.
Carol acaba conhecendo uma meia dúzia de pessoas do mundo inexplicavelmente
imunes à felicidade de colmeia trazida pelos aliens.
Um deles passa a desfrutar a vida com uma raridade mimada – ele solicita
dos prestativos alienígenas, nada mais nada menos, que o avião presidencial
Number One da Força Aérea dos EUA, repleto de mulheres, para rodar o mundo em
uma festa 24 horas por dia.
O restante apenas está ansioso em retornar para suas famílias, quando
descobriram que seus parentes ficaram felizes, pacíficos e prestativos.
Cineteratologia e os zumbis da felicidade
A trama é deliberadamente ambígua sobre se a nova ordem é boa ou
má. Para a "mente colmeia", é uma utopia. Para Carol, é um
apocalipse. O mundo está em paz, mas perdeu sua alma.
Pluribus transforma a busca da felicidade em
uma praga zumbi. A felicidade torna-se obrigatória e patológica. A
protagonista, descrita como "a pessoa mais infeliz do mundo",
torna-se a heroína precisamente por preservar seu direito de ser infeliz, de
sofrer e de sentir a gama completa de emoções humanas.
A série critica essa positividade tóxica. Ela sugere que uma humanidade desprovida de sua capacidade de sentir dor, luto ou raiva não é uma utopia, mas uma distopia vazia. A dor e o conflito são apresentados como componentes essenciais do livre-arbítrio e da própria definição de "ser humano".
Em termos da Cineteratologia (os estudos das diferentes
representações da monstruosidade e do Mal no cinema) Pluribus cria uma
interessante variação dentro da mitologia zumbi.
Se tradicionalmente o morto-vivo é um repositório de tudo aquilo
que a sociedade abomina e com a qual se aterroriza, ao contrário, a humanidade
transformada em zumbis da “mente colmeia” em Pluribus torna-se a realização
irônica de todas as utopias de paz e comunhão das ideologias políticas, seitas
e religiões.
Ficha Técnica |
|
Título: Pluribus
|
|
Criação: Vince
Gilligan |
|
Roteiro: Vince
Gilligan, Ariel Levine, Vera Blasi |
|
Elenco: Rhea Seehorn,
Mriam Shor, Peter Bergman |
|
Produção: High Bridge
Productions, Bristol Circle |
|
Distribuição: Apple
TV+ |
|
Ano: 2025 |
|
País: EUA |
quinta-feira, novembro 13, 2025
Wilson Roberto Vieira Ferreira





Posted in:

![Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira (2013-2016): Por que aquilo deu nisso? por [Wilson Roberto Vieira Ferreira]](https://m.media-amazon.com/images/I/41OVdKuGcML.jpg)




