quinta-feira, novembro 09, 2023

'Asteroid City': a mitologia americana é artifício e simulação


Wes Anderson sempre foi um admirador do fascínio do diretor alemão Win Wenders pelo imaginário norte-americano dos desertos do oeste americano, freeways, lanchonetes e motéis de beira de estradas perdidos em paisagens áridas e selvagens. Mas, diferente do olhar europeu de Wenders em busca de uma ontologia ou essência por trás desse imaginário, Wes Anderson quer encontrar apenas a superfície, o artifício, a simulação e a hiper-realidade. “Asteroid City” (2023) é um vertiginoso desfile de uma constelação de personagens da mitologia americana em torno de três eventos fundadores no deserto de Nevada: a bomba atômica, o Caso Roswell e Las Vegas. Uma narrativa em abismo metalinguístico sobre o “Dia do Asteroide”, evento comemorativo de um evento astronômico em um vilarejo em 1955 (ano da morte de James Dean) num deserto em cores hiper-reais de um estúdio de TV.

O diretor alemão Win Wenders era fascinado pela paisagem e o imaginário americano dos desertos, freeways, motéis e postos de gasolina isolados tendo ao fundo os horizontes profundos e os contornos ângulos, rústicos e áridos. O nowhere e histórias de estrangeiros no seu próprio país estão lá em filmes como O Amigo Americano, Alice nas Cidades e Paris,Texas.

Wenders resgatou o imaginário desses cenários em ruínas no qual foi construída a narrativa americana, no teatro, literatura pulp fiction e o cinema.

Mas Wenders tem um olhar europeu. Sob o peso de milênios de história da filosofia do Velho Continente, o diretor alemão procurou nas imagens ao mesmo tempo indeléveis e superficiais (a vida fugidia e rápida das freeways, motorhomes, motéis e lanchonetes de beira de estradas) uma ontologia, uma essência que fixasse uma suposta natureza, distinta da cultura europeia. Quase toda a sua filmografia pertence a esse esforço hermenêutico de encontrar aquilo que é perene por trás das imagens irradiadas dos EUA para todo o planeta.

 O diretor norte-americano Wes Anderson é fã dessa interpretação que Wenders fez das paisagens do oeste americano (Califórnia, Nevada, Arizona etc.). O seu filme Asteroid City (2023) é um inventário de alusões de tudo aquilo que fascinou o diretor alemão: um pequeno vilarejo no meio do deserto situado num cruzamento de uma estrada perdida e uma linha férrea por onde se deslocam lentos trens de carga. 

Asteroid City é um desfile vertiginoso de alusões a Marlon Brando, James Dean (a história se passa em 1955, ano da morte do jovem ator), Marylin Monroe, Actor’s Studio, dramaturgia beatnik, explosões nucleares, experimentos científicos secretos militares, conspirações extraterrestres etc. Toda uma constelação de personagens e eventos que criaram a mitologia fundadora do pós-guerra que a indústria do entretenimento americana irradiaria para o mundo no esforço geopolítico da Guerra Fria.

A diferença em relação a Win Wenders é que Wes Anderson tem o olhar americano do artifício: uma metanarrativa lúdica em efeito de abismo: acompanhamos três filmes que parece um conter o outro, como fosse uma pequena boneca russa. Anderson não está interessado numa ontologia do imaginário americano: com os seus costumeiros metódicos enquadramentos com personagens e objetos simetricamente colocados, a câmera apenas se desloca lateralmente, num constante efeito metonímico.




Um deslocamento lateral contínuo de referências e alusões de arquétipos contemporâneos, num mundo propositalmente artificial, cenográfico, numa hipnotizante paleta de cores hiper-reais como fosse um gigantesco estúdio de TV.

Nos filmes de Wes Anderson costumeiramente o familiar e o estranho, o teatral e o cinematográfico interagem. Mas em Asteroid City, o diretor parece não só criar uma metalinguagem da sua própria filmografia como do próprio inventário dos arquétipos contemporâneos – como esses arquétipos são artifícios, isto é, não fundamentados em processos históricos ou culturais, mas criações artificiais da publicidade, Hollywood e a televisão.

Arquétipos que surgem no mítico deserto de Nevada, local em que a fictícia cidade do filme se encontra. Mítico porque foi o local de três eventos fundadores (permeados pela mistura ficção e realidade, fatos e conspirações) no qual se baseou a mitologia midiática moderna: as explosões nucleares (o filme Oppenheimer é o melhor exemplar desse evento mítico), Las Vegas (a primeira cidade pós-moderna fundada no jogo e na ilusão) e o Caso Roswell, evento inaugural do mito dos discos voadores, Área 51 e conspirações governamentais – alusão que Wes Anderson faz ao clássico Contatos Imediatos do Terceiro Grau.



O Filme

Abre em preto e branco em um apresentador de televisão sem nome (Bryan Cranston, severo e bigode) em um estúdio. Firmemente envolto pela proporção quadrada e falando na câmera, ele apresenta o programa da noite, um olhar "nos bastidores" sobre a criação de uma nova peça, "Asteroid City", que foi feita "expressamente para esta transmissão". Ele então apresenta o dramaturgo (Edward Norton), que se levanta de sua máquina de escrever para ficar em um palco nu e apresentar os personagens.

Dividida em atos, a primeira seção da peça começa com a chegada do recém-viúvo Augie Steenbeck, um fotógrafo de guerra interpretado, Jones Hall.  Augie, seu filho adolescente inteligente, Woodrow (Jake Ryan), e três filhas pequenas intercambiáveis estão visitando o evento anual da cidade: o “Dia do Asteroide”, um evento que comemora o dia (23 de setembro de 3007 a.C.!) quando um meteoro caiu nas proximidades, deixando uma cratera agora com vista para um observatório astronômico. Mais visitantes aparecem, incluindo um professor com um bando de crianças, alguns cowboys cantores e outros pais com adolescentes que, como Woodrow, são concorrentes em uma competição infanto-juvenil em torno de projetos científicos escolares para o Dia do Asteroide.

Juntamente com Scarlett Johansson, Schwartzman preenche o centro expressivo do filme com humor e tempo perfeito. Johansson tem papéis duplos e metalinguístico como ator e personagem. Ela é Midge Campbell na peça, uma estrela sensual de Hollywood que chega à cidade com sua filha e um guarda-costas. Midge e Augie se encontram na única lanchonete da cidadezinha e o relacionamento deles floresce enquanto eles estão em suas respectivas cabanas de aluguel. Lá, emoldurados por janelas, eles se abrem um para o outro, falando ao estilo screwball comedy rápida e performativa, que lentamente dá lugar a um sentimento profundo.



Ao longo dos atos vamos percebendo que três histórias estão sendo contadas e se interpenetram, em que personagens viram atores e vice-e-versa: a primeira é uma história colorida sobre uma convenção de astronomia nerd por volta de 1955; a segunda é uma peça de TV dos anos 1950 chamada “Asteroid City”; e, além disso, um olhar para os bastidores dessas duas histórias nos quais conhecemos um dramaturgo problemático (Edward Norton) que está escrevendo a peça acima mencionada.

Ah... e também temos um alienígena interpretado por Jeff Goldblum (quem mais poderia...) que surge na cidade para roubar o pequeno meteorito em exposição.

Tilda Swinton aparece como cientista de algum tipo de projeto militar comandado por um general (ecos de Oppenheimer), sob uma faixa que emula o lema trumpista: “Para tornar a América poderosa”. No horizonte, eventualmente vê-se um cogumelo nuclear, enquanto armas na cintura de cidadãos comuns são uma constante.



Por isso, Asteroid City é um microcosmo do imaginário norte-americano irradiado para o mundo desde o pós-guerra. 

O dramaturgo interpretado por Edward Norton é a peça-chave de toda essa metalinguagem, paródias e alusões em série: ele próprio é uma paródia de escritor da Actor’s Studio: ele está em busca de sentido ou propósito para a existência humana. Mas tudo que Wes Anderson nos entrega é ilusão, artifício, hiper-realidade e um exercício metalinguístico que parece um jogo de múltiplos espelhos se refletindo.

Por isso que a mitologia do deserto e sua constelação de simbolismos (o mito da fronteira, o faroeste, o pioneiro etc.) é o ponto de partida do imaginário norte-americano: o extraordinário vazio e seus amplos horizontes e pontos de escape que tanto fascinaram Win Wenders, foram como páginas em branco nas quais a indústria do entretenimento criou uma galeria de personagens e histórias baseadas na simulação, artifício e hiper-realidade.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Asteroid City

Diretor: Wes Anderson

Roteiro:  Wes Anderson, Roman Coppola

Elenco: Jason Schwartzman, Scarlet Johansson, Tom Hanks

Produção: Focus Features, American Empirical Pictures

Distribuição: Focus Features

Ano: 2023

País: EUA

 

   

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