quarta-feira, novembro 16, 2022

Depois do espaço, o capitalismo quer colonizar o tempo na série 'The Peripheral'


“Eu anexaria os planetas, se pudesse”, queixava-se o homem de negócios colonialista britânico Cecil Rhodes na década de 1930: o mundo já estava todo parcelado e colonizado. Portanto, onde o Capitalismo encontraria novos mundos para colonizar. A guerra sempre foi uma solução paliativa. Se os espaços de conquista acabaram, resta o Tempo. Se hoje a microinformática é a ferramenta para as negociações em tempo real do financismo global, a imaginação do escritor sci-fi William Gibson pensou na mecânica quântica como um novo salto: a colonização das realidades paralelas nas diversas linhas do tempo. A série Amazon Prime “The Peripheral” (2022-), baseada no romance de 2014 de William Gibson, traz para a ficção científica esse realismo capitalista. Uma jogadora de games em RV testa uma versão Beta de um novo jogo que na verdade transfere seus dados de consciência para um futuro alternativo na qual um Instituto de Pesquisas oferece uma solução político-econômica inédita: a colonização do Tempo.

 

Em 1936 o escritor e jornalista norte-americano Leo Huberman, na obra clássica “História da Riqueza do Homem”, profeticamente antevia como o Imperialismo levaria à guerra mundial – como Alemanha, Itália e Japão, à exemplo das outras potências capitalistas, estavam se armando para conquistar colônias e escoarem capital excedente e busca de novos mercados e mais-valia. Após o crash de 1929, o Capitalismo estava numa encruzilhada e somente a guerra era a alternativa viável para um novo salto econômico.

Porém, seria apenas um paliativo num planeta onde quase tudo já estava anexado e parcelado. Huberman citava uma fala do colonialista e empresário britânico Cecil Rhodes sobre uma secreta ambição:

“O mundo está quase todos parcelado, e o que resta dele está sendo dividido, conquistado, colonizado. Pense nas estrelas que vemos à noite, esses vastos mundos que jamais poderemos atingir. Eu anexaria os planetas, se pudesse; penso sempre nisso. Entristece-me vê-los tão claramente, e ao mesmo tempo tão distantes” – HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem, LTC, 2014 p. 204.

Rhodes não viveu a tempo de ver o aprimoramento da tecnologia dos foguetes na própria II Guerra Mundial, que levaria o homem à Lua numa corrida espacial impulsionada pela mesma ambição de Rhodes: levar o Capitalismo às estrelas.

E nem tempo para ler clássicos da literatura sci-fi que trouxe para o campo das especulações futuristas essa necessidade estrutural da expansão colonial do Capitalismo. Como, por exemplo, a obra “O Homem do Castelo Alto”, do escritor gnóstico Philip K. Dick, sobre uma realidade alternativa na qual os nazistas teriam ganhado a guerra. Não satisfeitos com um planeta quase totalmente ocupado (dividido com outra potência vitoriosa, o Japão), deram uma finalidade prática para a física quântica: invadir e conquistar outras realidades paralelas, principalmente aquelas em que o nazismo foi derrotado.

Mas se o espaço foi afinal totalmente conquistado pelo Capitalismo, principalmente através do advento da Globalização, restaria uma última dimensão para a colonização: o tempo. 



É dentro desse zeitgeist que o escritor William Gibson (o precursor do gênero noir cyberpunk na ficção científica) publica em 2014 o romance “The Peripheral” – uma intricada narrativa ambientada em futuros próximos de 2032 e 2070 que explora como é amplificada como um canal para conquistas, manipulação, guerras, atrocidades e, talvez, a salvação da espécie humana. Um romance que trabalha o tema da viagem no tempo num outro nível. Não mais como viagem física ou do espaço através do tempo, mas da consciência em mundos ou linhas d tempo alternativas quânticas. Mas, principalmente, a manipulação das linhas do tempo para objetivos de conquista. Colonização – aproximando-se da visão de Philip K. Dick em “O Homem do Castelo Alto”.

Surpreendentemente, embora William Gibson tenha inspirado fortemente filmes seminais de ficção científica como Matrix, nunca houve uma abundância de adaptações cinematográficas da sua obra.

A série Amazon Prime The Peripheral (2022-) chega para começar a corrigir essa deficiência com dois nomes de peso na produção executiva: Lisa Joy e Vicenzo Natali por trás da série de sucesso Westworld.

The Peripheral é uma série que joga com todos os ingredientes do ciberpunk clássico: viagens no tempo, simulações, avatares, robôs sem rosto, conspirações governamentais e missões secretas. A esses elementos clássicos acrescentam-se os atuais: realidade virtual, o universo dos games, realidade aumentada e pitadas de conceitos de mecânica quântica, como o “tunelamento quântico”.



Conceito importante, pois será através dele que um Instituto de Pesquisa, localizado numa Londres de 2090 tecnologicamente ressuscitada após um grande cataclisma ambiental e sanitário, empreende projetos de exploração de realidades alternativas (ou “tocos”, como são chamados) no tempo: transformá-los em cobaias para manipulação comportamental e engenharia social. Cujos objetivos obscuros resultam em conspirações políticas. 

Um mundo sofisticado e elegante, mas que vai repercutir numa pequena cidade do interior dos EUA, tornando um casal de irmãos de cuida de sua mãe em estado terminal parte vital de uma complicada trama mortal.

A Série

Baseado no aclamado romance de William Gibson, acompanhamos a vida em uma pequena cidade rural da Carolina do Norte em 2032. É lá que reside a família Fisher. Os irmãos Flynne (Chloë Grace Moretz) e Burton (Jack Reynor) cuidam de sua mãe cega e com uma doença terminal com suas escassas fontes de renda. Ela trabalha em uma pequena loja de impressão 3D e ele é um veterano militar que joga games em VR por bitcoins ou para testar versões Beta. No entanto, Flynne é uma jogadora muito melhor e costuma usar o avatar do irmão para ganhar um pouco mais de dinheiro e comprar os caros remédios da mãe que não possui seguro médico. 



É neste cenário que surge para Burton a oportunidade de ganhar muito dinheiro testando uma versão Beta de um game em VR de uma desconhecida startup colombiana. Porém, será Flynne que assumirá o avatar de Burton. Ela chega numa Londres de 2090, guiada por uma voz que funciona como um tutorial. Um jogo ao estilo James Bond: uma missão secreta que envolve sedução, sequestro, assassinatos e uma invasão furtiva em algum tipo de complexo científico. Um jogo altamente realista e com crescentes impactos cognitivos e neurológicos, toda vez que a jogadora retorna ao mundo real.

Aos poucos vamos descobrindo, junto com Flynne, que tudo aquilo não é um game de simulação: na verdade, os dados da sua consciência são transferidos para um “periférico” (um androide com perfeita aparência humana) no futuro: Londres de 2090, pouco habitado – a maioria dos seres humanos morreu num cataclisma que ironicamente chamam de “Jackpot” (prêmio): uma fatal combinação de pandemia com catástrofe ambiental.

Mais do que isso: a voz do suposto tutorial que a guiou na missão secreta é de Aelita West (Charlotte Riley), uma espécie de líder dissidente do Instituto de Pesquisa que pretende interferir nos experimentos de manipulação e colonização do tempo. 

Inadvertidamente, Aelita criou uma conexão com a linha do tempo de 2032, criando um potencial e ameaçador paradoxo temporal: a realidade espaço-tempo de 2032 criou o seu próprio “toco” ou linha do tempo independente. Por isso, Flynne e toda a sua família deverão ser eliminados – contatando a Dark Web de 2032, O Instituto contrata militares mercenários para executar o serviço. Ou seja, a sobrevivência de todos estará no talento de Flynne em lidar com seus inimigos e aliados no futuro.

E se movimentar numa sociedade extremamente classista governada por um tripé que certamente corresponderia à realização distópica do projeto do Estado Mínimo neoliberal: no governo totalitário, uma elite chamada de “cleptos”, auxiliada por draconiana polícia gerida por IA e executada por robôs chamada “Metro”, e o enigmático “Instituto de Pesquisa”.



Ao pretender manipular as linhas do tempo, o Instituto lembra o velho tema dos eus futuros tentando se livrar dos erros do passado por meio da tecnologia. Mas isso é uma mera aparência: na verdade, veem nos “tocos” mundos nos quais estão livres de todos as limitações éticas e morais do seu mundo de 2090 – por exemplo, a Indústria Farmacêutica poderia livremente dispor de cobaias humanas sem impedimentos legais ou morais. 

Hipo-utopia

Dessa forma, The Peripheral é mais um exemplo de ficção científica com o atual tom hipo-utópico (diferente da distopia clássica, imagina mundos futuros que são meras projeções hiperbólicas de tendências e mazelas já existentes no mundo atual).

Com a Globalização, ou seja, a conexão em tempo real de todas as praças financeiras, o Capitalismo aprendeu a colonizar o tempo.



Sabemos que o mercado financeiro global é uma verdadeira metafísica econômica. Se no passado a economia era uma questão de exploração do espaço (escravidão, renda da terra no Feudalismo, guerras colonialistas, imperialismo etc.), hoje o sistema financeiro explora o tempo. 

Tantos os juros como a velocidades das decisões de compra e venda é uma questão de tempo: juros tem a ver com a relação risco/tempo e atualmente grande parte das negociações no mercado financeiro estão nas mãos de sistemas de algoritmos de alta frequência - (Negociações de Alta Frequência – NAF) emitem automaticamente ordens de compras e vendas de ações em frações de segundos. Exploram as pequenas oscilações de um ou vários ativos, às vezes em milisegundos.  O computador executa e toma decisões de uma maneira mais rápida do que uma pessoa faria.

Na imaginação de William Gibson, o Capitalismo dá um novo e radical salto: se no mundo real a microinformática, telemática e nanotecnologia foram as tecnologias que surgiram na hora certa para explorar financeiramente o tempo nas transações simultâneas, em The Peripheral é a mecânica quântica a ferramenta para a conquista e colonização do tempo em uma nova escala: o domínio das linhas do tempo em realidades paralelas quânticas. 


 

Ficha Técnica

 

Título: The Periphral (série)

 

Diretor: Vicenzo Natali, Airick Riley

Roteiro: Scott Smith, Jamie Chan, Greg Plageman

Elenco:  Chlöe Grace Moretz, Gary Car, Jack Reynor, Charlotte Riley, JJ Field

Produção: Amazon Studios, Big Indie Pictures

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2022

País: EUA

 

 

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