Os algoritmos das plataformas de filmes em streaming acabaram se tornando os verdadeiros curadores que pautam a produção cultural. Mais do que isso, acabam transformado os roteiros fílmicos em autênticas colagens de sequências, argumentos e clichês que acompanham os padrões das escolhas dos usuários. "Maligno" (Malignant, 2021) é um exemplo flagrante onde tudo é misturado em alta velocidade, com plot twists a cada 15 minutos – a receita de terror pronta para ser servida aos espectadores. Por outro lado, essa bricolagem algorítmica deixa mais explícito o "zeitgeist" de onde os ingredientes dessa receita são retirados. Um exemplo é a forma como o Mal e a monstruosidade são representados em “Maligno”: não mais de forma xenomórfica e informe, mas agora como monstruosidade parasitária. Novidade cineteratológica que reflete a nova reconfiguração do Capitalismo atual.
As plataformas de filmes em streaming não surgiram por motivos altruístas como, por exemplo, democratizar a produção cinematográfica dando visibilidade a filmes independentes. Seu principal objetivo: tornar-se a ferramenta mais eficaz no ajuste entre a oferta e a demanda dos produtos culturais.
Para os estúdios cinematográficos mainstreaming isso sempre foi um problema: dependiam de sessões de testes, focus groups, pesquisas qualitativas de mercado, observações em loco das reações dos espectadores nas premiers etc. Porém, plataformas como Netflix ou Amazon Prime descobriram uma forma automatizada de fazer esse ajuste baseada em microtargetings: o poder dos algoritmos.
Esses algoritmos baseiam-se no esquema learn machine – aprendem errando a partir da identificação de padrões das escolhas dos espectadores. Por isso, as páginas iniciais são diferentes para cada usuário. E os roteiros dos filmes cada vez mais orientados por esses algoritmos, o que muitas vezes resultam em produções que parecem muitos mais pastiches de argumentos ou sequências de filmes de gênero bem-sucedidos do passado.
Um caso que salta aos olhos é o do filme Maligno (Malignant, 2021), sempre presente nas listas de “você também pode gostar...”: parece algo montado por uma máquina de algoritmos muito bem lubrificada.
Pegue um hospital de aparência assustadora ao lado de um sinistro despenhadeiro, uma casa mal-assombrada, três médicos sinistros fazendo experiências eticamente duvidosas com atmosfera frankensteiniana, uma mulher grávida sofrendo relação abusiva com o marido e dois detetives engraçados para dar o alívio cômico. Tempere tudo com pulos de susto, eletrodomésticos que ligam sozinhos, uma reviravolta poderosa e, o mais importante, assassinatos sangrentos no melhor estilo slash movie. Misture tudo em alta velocidade por alguns minutos e voilà! Seu filme de terror está pronto para servir aos usuários da plataforma de streaming.
Mas, pelo menos, os algoritmos ainda não dirigem os filmes. James Wan (Invocação do Mal) dirige esse seu retorno ao gênero terror depois dos filmes de ação Velozes e Furiosos 7 e Aquaman. O problema de Maligno é que os algoritmos influenciam de forma tão pesada que ficamos incertos quanto ao tom do filme, principalmente pelo início que parece uma paródia de terror dos anos 80-90: cientistas e médicos em um laboratório sombrio sendo atacados e assassinados por um experimento que consegue escapar. Os supostos médicos carecem de toda a seriedade, típica dos "cientistas secretos" e acabam massacrados de uma maneira espetacularmente slasher.
Por outro lado, esse ajuste fino entre oferta e demanda pode tornar mais explícito o zeitgeist do momento em que o produto cultural foi exibido. Em outras palavras, pode se apresentar como um sismógrafo mais sensível às transformações culturais rápidas numa conjuntura social ou econômica. Paradoxalmente, seria quando os algoritmos podem se transformar em simbolismos do espírito de época.
Principalmente no campo da Cineteratologia: a disciplina que estuda as mudanças das representações dos monstros em particular (e do Mal em geral) no cinema como expressão da sensibilidade ou o espírito do tempo de cada momento histórico.
O Filme
Após o massacre inicial dos cientistas frankensteinianos, os médicos sobreviventes recuperam o controle do seu paciente Gabriel (Ray Chase) e entregam a linha de diálogo, diretamente para a câmera, que marcará o restante da narrativa: “é hora de eliminar o câncer!” – claro, não sem antes Gabriel jurar “matar todos eles”.
Alguns frames depois encontramos a protagonista Madison (Annabelle Wallis), uma mulher grávida em um relacionamento abusivo e que teme ter outro aborto espontâneo. Após uma discussão conjugal, seu marido Derek (Jake Abel) a ataca, jogando-a contra a parede e fazendo-a sangrar pela nuca.
As coisas ficam ainda mais assustadoras quando somos surpreendidos por uma entidade cabeluda e contorcida que ataca o jovem casal - quebra o pescoço de Derek e joga Madison novamente no ar.
E a partir daqui, as coisas são praticamente como você espera: investigação policial, assassinatos, um susto atrás de outro, mais sustos, mais investigação policial e mais assassinatos.
Quando Madison acorda no hospital, descobre que perdeu seu bebê para também reencontrar com sua irmã mais nova, Sydney (Maddie Hasson), uma atriz em dificuldades no início de carreira e que resolve cuidar dela a partir de agora.
Madison vai para casa e tenta voltar à vida normal, apenas para começar a ter pesadelos acordada nos quais encontra-se paralisada enquanto observa a mesma sinistra entidade que a atacou anteriormente matar uma série de pessoas misteriosas. Esses assassinatos, no entanto, não estão ocorrendo apenas em sua imaginação; acontecem no mundo real. Madison procura o Departamento de Polícia para encontrar Kekoa Shaw, um sensível detetive de homicídios (George Young), e sua parceira com um indefectível pirulito e sempre dizendo "você deve estar brincando comigo com essa merda", Regina Moss (Michole Briana White).
O espectador pode adivinhar os traços gerais para onde a narrativa vai, mas provavelmente não os detalhes - o roteiro certifica-se de lançar no ar pelo menos uma revelação dramática a cada 15 minutos ou mais, cada uma mais perplexa que a anterior.
No meio de tantos plot twists, muito sangue, assassinatos em série e sustos, o que se destaca mesmo é a monstruosidade original de Gabriel, uma figura parecida com uma marionete sombria.
O Mal parasitário – Alerta de spoilers à frente
Para a Cineteratologia (de “terato” – “monstuoridade”, “deformidade”), podemos definir a monstruosidade clássica a partir de um quadro de categorias de valores como: o disforme, o mau e o feio. Daí a origem etimológica da palavra “monstro” como aquilo que se mostra para além de uma norma (“monstrum”). São monstros antropomórficos ou quimeras, dotados de uma morfologia.
Ao contrário, os monstros contemporâneos, a partir dos zumbis, estão longe de adaptarem-se às categorias clássicas de valores, mas suspendem-nas, anulam-nas e neutralizam-nas. São os monstros caracterizados pelas instabilidades e metamorfoses. Poderíamos chamá-los de “monstros moles”.
Para começar os monstros pós-modernos não são disformes, mas informes: eles estão se despedaçando ou se deformando e precisam devorar o outro para se reconstituir; A Coisa (1982) de John Carpenter que assumia a forma humana de cada uma das vítimas na base polar na Antártida; ou no filme espanhol REC (2007) no qual o “zumbismo” tem origem viral, isto é, o vírus como modelo de informidade por excelência: ele assume a forma que quiser de acordo com o seu hospedeiro. Há uma suspensão morfológica.
Do ponto de visto ético os monstros atuais não são nem bons nem maus: se trata de predadores que, do ponto de vista da performance evolutiva, são fascinantes máquinas de sobrevivência. Como em Alien, no qual há uma neutralização ética.
Essa passagem do morfológico para o informe (monstros moles) neobarroco refletem a própria “liquefação” da Modernidade em catástrofes, estruturas dissipativas, teoria do caos e complexidades. Categorias que estão por trás dos movimentos da financeirização, globalização, especulação e as instabilidades sociais e políticas decorrentes de tudo isso.
A monstruosidade de Gabriel acrescenta uma novidade: a maldade parasitária. Gabriel é um “gêmeo parasitário” de Madison, compartilha o seu cérebro como uma espécie de apêndice da sua nuca, oportunamente encoberto pelo cabelo comprido – um feto de uma gestação de gêmeos malsucedida, que acabou sendo absorvido pelo corpo de Madison.
Desde então disputa o controle da mente da “irmã” – vingativo, pretende matar um a um, aqueles cientistas que tentaram “extirpar o câncer”, dominando mente/corpo de Madison.
À “informidade” pós-moderna, a representação do Mal em Maligno acrescenta a categoria do “parasitismo”.
A figura do parasita começa a ficar recorrente na cinematografia atual: desde a crítica social do premiado filme sul-coreano Parasita (2019), passando pela ficção científica russa Sputnik (2020) até chegarmos ao terror disfarçado de I See You (2020).
Pessoas que ocupam casa alheias sem seus moradores saberem (o fenômeno urbano do “phrogging”), monstros que pegam carona em cápsulas espaciais que retornam à Terra e empregados domésticos que parasitam secretamente a residência de seus patrões, são variações recentes ao tema do parasitismo.
Maligno cria a representação do Mal seguindo essa tendência: o gêmeo parasitário. Sua estética já não é mais xenomórfica ou neobarroca como os monstros moles. Agora acompanha a estética relativa às marionetes: movimentos fragmentários, quebrados, com um aspecto saltimbanco. Afinal, é assim que o parasita vê o corpo/casa/capsula espacial hospedeira: como uma marionete a ser manipulada.
Essas parasitas são como que excluídos da existência: seus destinos deveriam ser a eliminação, a extirpação pura e simples de um mundo em que não teriam lugar.
É o reflexo superestrutural da nova fase do Capitalismo, na sua exclusão mais radical: na modernidade líquida (Zygmunt Bauman) a concentração de riqueza criado pela financeirização chega a níveis tão extremos que a exclusão alcança o seu paroxismo – um largo contingente populacional que nem para ser explorado servirá. Terão que ser “extirpados” de alguma forma da economia. Ou do chamado “Grande Reset Global”, a nova reconfiguração do Capitalismo.
O parasita é aquele que teima em não ser definitivamente eliminado da existência. Ao contrário do “monstro mole”, eticamente neutralizado (não é nem bom nem mau, apenas um sobrevivente), a monstruosidade parasitária volta a ter um ativamento ético: ele é “mau” porque tenta controlar o corpo, a casa ou a vida do outro. Precisa que o hospedeiro esteja vivo para que “monstruosamente” assuma o controle do corpo e da mente do outro.
As colchas de retalhos algorítmicas em que se transformaram esses filmes de plataforma ganham uma inesperada transparência simbólica – podemos considerá-los uma verdadeira vitrine de colagens de elementos tirados diretamente do nosso zeitgeist.
Ficha Técnica |
Título: Maligno |
Diretor: James Wan |
Roteiro: James Wan, Ingrid Bisu, Akela Cooper |
Elenco: Annabelle Wallis, George Young, Michole Briana White, Jake Abel |
Produção: New Line Cinema, Starlight Culture Entertainment |
Distribuição: New Line Cinema |
Ano: 2021 |
País: EUA |