terça-feira, outubro 12, 2021

Bolsonaro barrado no jogo e TSE faz limited hangout dos "disparos em massa"

Nietzsche temia pelo momento em que o ressentimento passaria a gerar valores, alcançando o perigoso nível da racionalização. E é justamente isso que as operações psicológicas conseguem: os traumas psíquicos nacionais da militarização e escravidão tornam-se uma matriz geradora de valores cujo recall é acionado pelas bombas semióticas: justiçamento, judicialização, meganhagem, cismogêneses identitárias e... anti-institucionalização. O não-acontecimento de Bolsonaro barrado no estádio por não ser vacinado e o seu vídeo nas redes sociais com estudada indignação mais uma vez se conectou com esse imaginário antissistema ou não institucionalidade. Ao mesmo tempo, STF e TSE, depois de muito tempo, descobriram as “milícias digitais”, “abusos de poder econômico” e os chamados “disparos em massa” – expressão sensacionalista para criar um “limited hangout”. Ao confundir massificação com viralização, oculta o mais perigoso: a metodologia “microtargeting”, cuja eficiência é o que difere da massificação na propaganda política clássica.

“Quase todo mundo subestimou Bolsonaro, julgando que ele fosse menor do que é. Por incrível que pareça ele é inteligente, e parte dos setores progressistas não consegue entender isso – como se ele fosse meramente tosco, um burro completo”, afirma o professor e pesquisador Sinval Araújo. 

Ao lado dos pesquisadores Fabio Peixoto Baldaia e Tiago Medeiros, faz parte da pesquisa “O Bolsonarismo e o Brasil Profundo: uma análise sobre a ascensão e permanência de um fenômeno sociocultural e político”. O estudo sobre o bolsonarismo começou em 2020 e é uma das pesquisas do Grupo de Pesquisa Laboratório de Estudos Brasil Profundo do Instituto Federal da Bahia (IFBA).

A pesquisa descreve como Bolsonaro conseguiu capturar o sentimento de anti-institucionalidade – “região invisível” na qual valores, crenças e a moral se constroem à margem das instituições ou do próprio Estado. Restando aos milhões de brasileiros, a família como estrutura de amparo e afeto.  Razão pela qual Bolsonaro conquista a imagem de “mito” ao defendê-la.

Para o estudo, pelo fato de a institucionalidade brasileira sempre ter sido excludente (todos os processos históricos foram conduzidos pela elite, como o golpe militar da proclamação da República, abolição da escravatura e o poder sempre concentrado em oligarquias), um conservadorismo difuso associado à não institucionalidade tornou-se a marca de uma “recriação da realidade” pelo Brasil profundo – um combo de ideias como “a lei não deixa a gente trabalhar” com militarismo, neopentecostalismo, reação a pautas identitárias, sobretudo LGBT etc.

Um dos interessantes resultados dessa pesquisa foi demonstrar como o bolsonarismo nunca foi mera replicação local do fenômeno do trumpismo ou das correntes ultraconservadoras do Hemisfério Norte. 

Como, por exemplo, a pauta antivacina: como os alertas de Bolsonaro tiveram pouca repercussão mesmo na sua base, não conseguindo dar origem a um movimento antivacinação como nos EUA - “A narrativa antivacina se descola do ‘Brasil Profundo’ porque é exótica para os brasileiros, que tomam vacina há décadas, vacinam os filhos etc.”, analisa Baldaia.



Em torno da pauta do combate às fake news, a grande mídia criou a realidade paralela do crescimento de um suposto movimento anti-vacina nos brasileiros. Na sua indefectível estratégia semiótica de “morde-assopra” do jornalismo corporativo, foi uma maneira de mitigar a questão maior: na verdade, o problema sempre foi a falta de vacinas e a inanição do governo.

Disso decorre que aqui no Brasil os “passaportes da vacina” ou formas de limitar acessos a eventos públicos mediante a comprovação de vacinação, análogos ao que ocorrem no Hemisfério Norte, ganham aqui um novo significado ideológico: caem como uma luva ao discurso anti-institucionalidade alt-right de Bolsonaro – mais uma vez, o chefe do executivo assume o papel “antissistema” ao querer denunciar o “autoritarismo” de governadores e prefeitos. 

Esse é o pano de fundo para compreender o alcance de mais uma bomba semiótica detonada pela operação psicológica bolsonarista, dessa vez nas portas do estádio do Santos, a Vila Belmiro, nesse último domingo, no jogo Santos vs. Grêmio pelo Brasileirão.

Como sempre, a mídia progressista fez desprezo e desdém como se tudo não passasse de mais um gesto tresloucado de uma figura politicamente “isolada” e em desespero diante dos números das pesquisas que apontam o crescimento da sua desaprovação.


Foto: Evaristo Sá (AFP)


A bomba semiótica anti-institucionalidade

Aproveitando que estava passando o feriado prolongando na Baixada Santista, Bolsonaro aproveitou a oportunidade para criar um não-acontecimento – com a certeza de que a mídia, principalmente progressista, daria pernas a uma não-notícia. 

Sem avisar a diretoria do Santos, num rompante apareceu na entrada da Vila Belmiro. Como ele próprio sabia, teve a entrada barrada por não portar comprovante de vacinação: “Por que cartão, passaporte da vacina? Eu queria ver o jogo do Santos agora me falaram que tem que estar vacinado. Por que isso? Eu tenho mais anticorpos do que quem tomou a vacina”, protestou com um estudado tom de indignação.

Por que uma bomba semiótica? Como descrevemos em postagens anteriores, a bomba semiótica é um dispositivo cognitivo que conecta o imaginário com a narrativa midiática, cuja detonação (a repercussão midiática) funciona como uma espécie de recall, um lembrete ou reforço de algum elemento imaginário do Brasil Profundo. Elemento que ganha significado político.

Como viemos também discutindo em postagens anteriores, o imaginário ou psicoesfera coletiva nacional é marcado por duas feridas psíquicas seminais (a militarização e escravidão), recalcadas, esquecidas, nunca redimidas – apesar de aparentemente esquecidas pelo processo de urbanização e modernização, o recalcado sempre retorna. Na atualidade, através das operações psicológicas de guerra híbrida, cujas bombas semióticas são os dispositivos que resgatam aquilo que emerge dessas feridas: o ressentimento.

Nietzsche temia pelo momento em que o ressentimento passasse a gerar valores, alcançando o perigoso nível da racionalização. E é justamente isso que essas operações psicológicas conseguem: militarização e escravidão tornam-se uma matriz geradora de valores cujo recall é acionado pelas bombas semióticas: justiçamento, judicialização, meganhagem, cismogêneses identitárias e... anti-institucionalização.

blitzkrieg do chefe do executivo na porta do estádio da Vila Belmiro protestando contra o suposto autoritarismo do “calça apertada” governador João Doria Jr. é mais um gesto iconoclasta que conecta com esse ressentimento. 

Ressentimento cujas origens foram muito bem descritas pelo historiador José Murilo de Carvalho no livro “Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a república que não foi”: um país cuja República foi fundada através de um golpe militar e a escravatura abolida de cima para baixo por uma sanção imperial – enquanto o povo assistia a tudo “bestializado”. A Nação sem povo, cujas fissuras no relacionamento entre Estado, cidadão, sistema político e a própria atividade política tornam frágeis a Democracia e vulnerável a qualquer ataque externo (guerra híbrida) e interno (as PsyOps do partido militar).

Por isso, a estratégia bolsonarista é destruir tudo que tenha um ar de contrato social ou institucionalidade. 

Embora o movimento antivacina tenha pouca ressonância na sua base (a não ser no discurso das milícias digitais), o presidente é o Mito, por ser antilegalista, antissistema, anticontratualista, galvanizando a cidadania bestializada dos brasileiros.

A ação pensada e planejada do domingo em Santos ganhou sua mais-valia semiótica por conter as principais características de uma bomba semiótica: (a) Polissemia (cada lado do espectro político viu no “acontecimento” o que quis ver – da direita à esquerda, foi do heroísmo ao desespero); (b) Novidade (Bolsonaro, torcedor do Santos?); (c)Efemeridade (como uma flashmob, apareceu e rapidamente se foi); (d) Movimento (o presidente está sempre em movimento: do Guarujá vai a Peruíbe... para propositalmente receber uma multa por não querer usar máscara; vai para Santos e protesta por não conseguir ver uma partida de futebol...) (e) Imprevisibilidade: suas aparições parecem ser sempre randômicas).




O limited hangout do TSE e STF

Quatro anos depois (ou mais...) as supremas cortes descobrem as milícias digitais e a tais dos “disparos em massa” no WhatsApp durante a campanha de 2018. Enquanto o ministro Alexandre de Moraes compartilha provas no inquérito das fake news e dos atos antidemocráticos, investigando ataques coordenados contra do Supremos e financiamento de ações contra a instituição. “Milícias digitais” e “gabinetes do ódio” que, na realidade, já atuavam nas operações psicológicas que levaram ao golpe de 2016.

Uau! As placas tectônicas estão se movendo! Chapa Bolsonaro/Mourão ameaçada de ser impugnada por “abuso econômico”!... Só que não.

Revelar a existência de um esquema bancado por empresários apoiadores de Bolsonaro, com uso fraudulento de nomes e CPFs de idosos para registrar chips de celular para garantir “disparos em massa” é um clássico exemplo da estratégia de Limited Hangout - quando não se pode mais sustentar uma história falsa, admite-se uma parte da verdade, ocultando os fatos-chave para desinformar o público.

O fato-chave que o Judiciário quer ocultar do distinto público é a estratégia perniciosa da viralização e o seu efeito de corrosão da democracia e da opinião pública. A expressão sensacionalista “disparo em massa” serve a esse propósito, ao fazer as pessoas confundirem viralização com o efeito banal da massificação proporcionado pelas mídias tradicionais de massa – cinema, TV, impressas etc.

São conceitos totalmente diferentes. Enquanto a massificação implica em panfletagem, doutrinação ou disparo de discursos de forma indiscriminada para a sociedade como um todo, a viralização significa modular o discurso para perfis específicos que, sabe-se, irão compartilhar o conteúdo para suas redes de relações pessoais e digitais. 

Falar em “disparos de massa” em ambientes digitais soa como algo retro: lembra o início do e-commerce no qual os disparos massivos e indiscriminados de material publicitário criaram a dor de cabeça dos spams – e-mails não solicitados.




Essa expressão “disparo em massa” parece querer reduzir a questão dos memes e fake news a simples spams. O que está muito longe do fenômeno da corrosão da opinião pública pela viralização nas redes sociais.

O estado da arte da aplicação da viralização como ferramenta política veio com a tecnologia algorítmica em Inteligência Artificial utilizado pela Cambridge Analytica e o fundo de hedge Renaissance Technologies do Robert Mercer - foram decisivos para a vitória de Donald Trump e Bolsonaro na aplicação dos algorítmicos probabilísticos da área financeira aplicada na mineração e análise de dados para comunicação política estratégica.

E isso nada tem a ver com “disparos em massa”. Enquanto a massificação lida com amplas segmentações por critérios demográficos e socioeconômicos (classe, gênero, escolaridade, renda etc.), a viralização minera Big Data por critérios psicométricos para procurar os perfis certos que certamente farão o trabalho dos operadores políticos: compartilharão conteúdos através das suas redes de influência.

A Cambridge Analytica usou a mesma metodologia de Michal Kosinski, da Universidade de Cambridge para, a partir do chamado “Big Five” na psicologia (o acrônimo OCEAN – abertura, perfeccionismo, extroversão, amabilidade e neuroticismo), classificar de forma relativamente precisa a personalidade de qualquer pessoa. Isso através de um app chamado MyPersonality.

Dessa metodologia OCEAN para o marketing político do microtargeting foi apenas um salto: a partir da avaliação da personalidade de cada perfil com base nos seus dados digitais, se poderia chegar ao cálculo probabilístico da opção ideológica, política e, o mais importante, a intenção de voto.

A expressão caricata “disparo em massa” (bem ao gosto do sensacionalismo jornalístico sempre em busca de manchetes de impacto) oculta essa metodologia microtargeting, cuja eficiência é justamente diferente da massificação na propaganda política clássica.

E muito mais danosa pois corrói a democracia nas suas bases: representatividade como expressão de um mínimo consenso.

Por isso a força propagandística do discurso anti-institucional e  antissistêmico do “Mito”, seja qual for.

 

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