quinta-feira, maio 27, 2021

'When The Wind Blows': nada mudou do holocausto nuclear à pandemia global


O impacto cultural da animação “When The Wind Blows” (1986) foi esquecido por décadas. Mas o seu relançamento em DVD revela uma estranha sensação de que as coisas nada mudaram: a Guerra Fria e a ameaça do Holocausto Nuclear podem ter passado, mas foram apenas substituídos pelo medo do terrorismo e da escalada das pandemias – sejam virais ou digitais. Com músicas de Roger Waters e David Bowie, a animação é muito mais do que um libelo pacifista: mostra como a propaganda e a desinformação, aliados à nostalgia nacionalista, nos tornam cegos e motivados mesmo diante das políticas de extermínio. Num lugar remoto no interior da Inglaterra, um doce casal de velhinhos tenta sobreviver aos primeiros impactos de uma explosão nuclear. Com fleuma e patriotismo acreditam na propaganda governamental que parece ocultar algo de muito mais sinistro. Como se sabe, a primeira vítima da guerra é a verdade.

 

O cinema acompanhou, passo a passo, toda o medo e ansiedade que acompanhou a chamada Guerra Fria – a crescente tensão geopolítica entre EUA e União Soviética, sob constantes ameaças da espionagem, guerras no Terceiro Mundo nas quais cada potência tentava adiantar suas peças no xadrez mundial e, principalmente, o fantasma da conflagração final: Kremlin ou Casa Branca apertarem o botão vermelho e tudo acabar no holocausto nuclear, o posterior inverno nuclear e o fim da espécie humana sobre a face da Terra. Agora ocupada pelos únicos sobreviventes: ratos e baratas.

Desde o filme Five (1951), com sobreviventes cruzando os EUA até o litoral da Califórnia, passando pelos emblemáticos Dia do Fim do Mundo (1955), já apresentando monstros mutantes ameaçando sobreviventes, Dr. Fantástico (1964), de Kubrick, e o impactante Day After (1983), assistido na TV por mais de 100 milhões de espectadores, o holocausto nuclear estava cada vez mais próximo. Reflexo do recrudescimento da Guerra Fria.

O acidente nuclear de Chernobyl em 1986, e a posterior nuvem de radiação que avançou sobre a Europa, foi o terrível sinal de que as distopias estavam prontas para pular das telas para a realidade. 

Então, aparentemente do nada, o Muro de Berlim caiu e o bloco soviético desmoronou. Mas o medo e a ansiedade gerada pela desinformação (elementos da psicologia de massas sempre necessários para manter o status quo) continuaram: o perigo nuclear foi substituído pelo terrorismo e, no século XXI, a guerra ao terror. E agora, entramos em uma nova era do medo: a Biopolítica, com a pandemia viral e uma possível pandemia digital ou guerra cibernética – sobre isso, clique aqui.

Por isso a animação When The Wind Blows (1986), de Jimmy Murakami, continua muito atual, apesar do espírito da emergência nuclear de um momento em que o desastre de Chernobyl era um alerta de que o planeta estava à beira do Apocalipse.

Com músicas de David Bowie e Roger Waters (o que deu à produção a aura de um libelo pacifista) e com uma engenhosa técnica de animação misturando de forma lúdica pessoas e objetos em live action com a animação, When The Wind Blows é um típico humor negro que faz uma paródia da famosa fleuma e estoicismo britânicos:  a crença cega nas tradições (a obrigatoriedade da hora do chá até mesmo no fim do mundo) e a fé no governo, autoridades e instituições britânicas como um destino manifesto divino.



É um filme raivoso contra o nacionalismo nostálgico, baseado na propaganda política e desinformação. Mas principalmente como o cidadão médio acaba criando uma mitologia e um conto de fadas em torno da sua própria vida – de como a vida cotidiana seria completamente separada dos grandes acontecimentos do cenário político.  E como o governo supostamente faz de tudo para que o inimigo (no caso, os comunistas soviéticos) seja mantido longe do nosso estilo de vida. 

É um ataque violento a todas as formas de nacionalismo e patriotismo em todas as suas formas. Dessa maneira, um humor negro ainda hoje preciso no mundo pós-Trump e Brexit. Um mundo no qual a extrema direita ascende ao poder amparado pela ilusão de que um mundo onde eram facilmente distinguíveis mocinhos e bandidos pode voltar. Se é que um dia esse mundo existiu.




O Filme

James (John Mills) e Hilda Bloggs (Peggy Ashcroft) vivem seus anos dourados da aposentadoria em uma casa modesta e imaculadamente arrumada em uma parte remota de Sussex, Inglaterra. Um casal de classe média baixa, a representação do cidadão médio que é a espinha dorsal da nação, cuja fé no futuro não diminuiu desde que enfrentaram os bombardeios nazistas em 1940.

James passa seus dias fazendo pequenas manutenções e, de vez em quando, vai a Londres para ler os jornais na biblioteca pública. Ele gosta de se manter informado através de um pequeno rádio de pilha e, ocasionalmente, assistindo TV. É nostálgico de uma época em que Churchill e General Montegomery mantinham alto o moral da nação. E Stalin e Roosevelt eram os coadjuvantes confiáveis do grande império britânico.

Hilda mantém tudo limpo, lavado e passado. É uma boa vida – têm um ao outro e, não muito longe, o filho Ron casado e com um bebê.

Em um final de tarde, James retorna de Londres trazendo folhetos e brochuras do governo: pequenos manuais de técnicas de sobrevivência para os cidadãos se protegerem de um ataque nuclear. “Pode haver um ataque preventivo”, avisa James na hora do chá. “Oh não! Assim que acaba uma greve os agitadores começam outra!”, reclama Hilda.




Nessa atmosfera de absoluta normalidade, James explica que esse ataque será diferente. Um ataque nuclear. “Bem, então temos que estocar suprimentos”, responde tranquilamente Hilda. 

Então, James começa a seguir os protocolos dos manuais de sobrevivência: construir um “um abrigo nuclear interno”: uma espécie de pequena cobertura com portas colocadas em ângulo de 60 graus contra a parede, onde deverão permanecer por 14 dias após a explosão. Enquanto James preocupa-se em seguir à risca os inúmeros itens do manual, Hilda preocupa-se com a rotina: como ficarão as cortinas, o sofá e as almofadas após a explosão seguidas de bagunça e sujeira? – afinal, como receber os amigos despois, numa casa suja...

A atmosfera criada pela animação é estranha: para começar a contradição entre as imagens de dois doces velhinhos com um estilo de desenho agridoce e a proximidade do apocalipse nuclear – recebido pelo casal com absoluta fleuma e estoicismo. Tudo com o quê se preocupam é se a bomba irá atrapalhar a sagrada hora do chá e a rotina de compras na loja de ferramentas e no empório do vilarejo.

Eles são nostálgicos pelos tempos da Segunda Guerra Mundial: acham que os russos são os vilões iguais os nazistas, e os mocinhos salvarão o dia.

When The Wind Blows mostra como os esforços de propaganda do governo escondem a verdadeira natureza da guerra nuclear: o manual de sobrevivência oculta a fatalidade mortal da radiação. Tudo que faz é racionalizar e manter os cidadãos calmos à beira do extermínio... enquanto acreditam no simplismo mocinhos/bandidos, bem/ mal numa guerra que não haverá vencedores – tudo que faz a guerra nuclear é potencializar exponencialmente, em questão de segundos, as mortes que os nazistas levaram meses para perpetrar em campos de concentração. 




Desinformados pela propaganda governamental, o casal acredita que a radiação deve ser alguma coisa parecida com flocos de neve que cairão do céu. Só que cinza... Acompanhamos eles sucumbirem gradativamente aos horríveis efeitos da radiação, enquanto tentam ver tudo pelo aspecto positivo: acreditam que, assim como na Grande Guerra em 1940, logo chegarão caminhões do governo com kits de primeiros socorros e, com um pequeno atraso, chegarão o leiteiro e jornais com fantásticas fotos da explosão nas primeiras páginas.

O impacto cultural dessa animação foi esquecido por muito tempo. O seu relançamento em DVD em 2018 revelou que a ameaça do Holocausto nuclear pode ter desaparecido. Mas foi substituída por outras ameaças: do terrorismo às pandemias.

Assim como os protocolos de sobrevivência nuclear ocultavam a natureza de guerra total e extermínio de um conflito atômico, da mesma forma os atuais protocolos sanitários e propaganda (nunca se ouviu tantas expressões lenientes como “estamos monitorando”, “estamos mapeando”, “estamos acompanhando” etc.) parecem apenas racionalizar o descontrole – espécie de gerenciamento do caos para manter todos sob o domínio do medo. A verdadeira mais-valia política.  


 

Ficha Técnica 

Título: When The Wind Blows (animação)

Diretor: Jimmy T. Murakami

Roteiro: Raymond Briggs (livro)

Elenco: Peggy Ashcroft, John Mills, Robin Houston

Produção: Meltdown Productions, Britsh Screen Production 

Distribuição:  BFI Video

Ano: 1986

País: Reino Unido

 

 

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