sábado, setembro 05, 2020

VAR no país da Lava Jato transforma futebol em esporte quântico


“Existe Justiça no Futebol?”, pergunta o Globo Esporte depois das polêmicas envolvendo o VAR nas últimas rodadas do Campeonato Brasileiro. Diferente da Europa onde a ferramenta tecnológica é um mero assistente do árbitro no campo, aqui foi contaminada pelo paradigma do moralismo ao estilo Lava Jato: teremos que passar tudo a limpo - política, economia, esporte... tudo deverá ser regido pelos princípios da Transparência, Verdade e Justiça. Então, o VAR é o instrumento para encontrar o “quantum” da Verdade que deve estar em algum frame infinitesimal da mecânica cinemática. Ao pretender remover a suposta subjetividade de um esporte essencialmente interpretativo, a “objetividade” do VAR pode ser uma farsa. Em busca do último frame, do quantum da Verdade, o VAR transforma o futebol em um “esporte quântico”. Porém, a separação dos frames, a resolução da imagem e interferência humana no processo para determinar o instante exato do passe ou posição dos atletas envolvidos na sucessão dos quadros esquece do “Princípio da Incerteza” de Heisenberg: o olhar do observador sempre altera aquilo que é observado.

Lá pelos idos de 2017 o então apresentador do Globo Esporte, Ivan Moré, lançou em pleno programa “Bem Amigos” (apresentado pelo apoplético Galvão Bueno), uma trepidante ideia: o “Projeto Lance Limpo”. Ansioso em mostrar serviço ao substituir Tiago Leifert na editoria de Esporte, resolveu pegar uma carona na audiência da cruzada anticorrupção da Lava Jato (aliás, muita gente também foi eleita assim) e lançou o Projeto que consistia em apresentar “exemplos nobres”, “atitudes que influenciam positivamente o comportamento das pessoas”, “lealdade, companheirismo e honestidade” no esporte.

E toca a apresentar exemplos edificante que, claro, estavam fora do Brasil – no futebol alemão, no futebol chinês etc. Jogadores que admitiram para o árbitro que cavaram o pênalti e o clube chinês que penalizou de forma exemplar seu jogador que agrediu o adversário.

Corta para o Globo Esporte da última sexta-feira! – 04/09/2020. 

No cenário da Lava Jato em crise com a debandada em massa de procuradores e as polêmicas levantadas contra o VAR no futebol (nos três últimos jogos do Santos e no último do São Paulo no Campeonato Brasileiro, as decisões do VAR teriam prejudicado os times paulistas) o programa apresentou no quadro “Crônica do Jogo”, do jornalista Marco Aurélio de Souza, com o tema “Existe Justiça no Futebol?”. Para discutir a polêmica da anulação do gol do São Paulo pelo VAR, contra o Atlético Mineiro.

É interessante perceber a diferença da aplicação do VAR (Árbitro Assistente de Vídeo) no futebol europeu e no brasileiro. Enquanto lá o dispositivo foi encarado apenas como uma ferramenta tecnológica para auxiliar a arbitragem (afinal, o árbitro é ainda autoridade máxima em uma partida, como diz a regra), aqui foi contaminada pelo clima histérico de uma, por assim dizer, “Pan Lava Jato”: um panteísmo histérico no qual doravante teremos que passar TUDO a limpo! – a política, o esporte, a economia, as relações familiares, pessoais. Qualquer atividade humana deverá ser regida pelos princípios da transparência, verdade e justiça.


Justiça no esporte? Se o termo “justiça” no âmbito jurídico é algo substantivo (“equidade”, “exatidão”, “bondade”, “benignidade” etc.), no esporte vira retórica – demonstra essa moralização histérica no qual um grupo de assistentes de arbitragem diante de monitores de campo passam a ser uma “força tarefa” para moralizar o esporte. 

“Juiz ladrão!”

Por que moralizar? Porque aqui a figura do árbitro é colocada sob suspeita – culpado até que se prove o contrário. Modus operandi que os processos legais da primeira vara de Curitiba acabaram normalizando.

Chamar juiz de “ladrão” ou de “chiclete de urubu” é um clássico do “futebol raiz” das arquibancadas no futebol brasileiro. Mas nos últimos anos, com a profissionalização da arbitragem, tornou-se outra coisa. Principalmente num contexto de pan moralização nacional no combate midiático à corrupção: árbitros tornaram-se covardes diante de uma ferramenta tecnológica investida de poderes como fosse mais uma “força tarefa” que surge turbinada pela grande mídia.




Com o VAR pretende-se encontrar o “quantum”, o “grão” da Verdade nos frames de imagem, na decomposição da mecânica cinética quadro a quadro. Isso num esporte que é intrinsecamente interpretativo cujos lances são de alta velocidade e performance.

Não estamos falando de corridas de cavalos ou de 100 metros rasos, provas lineares decididas pelo photochart ou photofinish, mas de jogadas com mecânica cinética infinitamente mais complexa, em muitos momentos mais próxima da dança do que da explosão do atletismo ou do páreo no turfe.

Europa X Brasil

É marcante a diferença entre a aplicação do VAR na Europa e aqui no Brasil. Nos jogos eliminatórios da Champions League, mais precisamente na final do jogo Bayern e PSG, a torcida alemã protestou em relação a um possível pênalti não marcado em cima de Coman. O árbitro seguiu o jogo normalmente e simplesmente ignorou o VAR, confiante em seu julgamento em cima do lance.

No Brasil, no contexto dos últimos anos de moralização e sede de justiça, nunca lance sensível em um jogo como esse, o juiz certamente recorreria a muleta do VAR para se safar de qualquer comprometimento. Esse é o espírito do tempo dos últimos anos no Brasil.

Mas há algo além desse “espírito do tempo” que vem contaminando a aplicação dessa ferramenta tecnológica no futebol – no Brasil, muito mais do que uma ferramenta. Tornou-se a própria busca do quantum da Verdade.

A questão é que o VAR ao pretender remover a suposta subjetividade de um esporte essencialmente interpretativo, a “objetividade” que pretende fornecer pode ser uma farsa. 

As imagens de TV que o VAR usa são filmadas a uma velocidade de 25 quadros por segundo. Portanto, cada quadro ocorre a quatro centésimos de segundo. Isso pode não parecer muito, mas quando um jogador está - por exemplo - correndo em alta velocidade e/ou um jogador está balançando o pé em uma bola, pode ser importante.

Considere uma jogada de impedimento. Existem duas questões - quando o passador realmente bate na bola e qual é a posição do jogador nesse ponto? Qual a probabilidade de que uma das imagens seja tirada EXATAMENTE quando o passador bate na bola? - e com que precisão saber se é esse quadro, em vez do anterior ou posterior? 

Agora considere o jogador correndo para receber um passe. Digamos que, para fins de argumentação, ele esteja correndo a 24km/h...  24km/h é 400m/minuto, ou 6,67 metros por segundo (667 cm / s). Então, nesses quatro centésimos de segundo entre os quadros, um jogador poderia cobrir quase 27 cm de solo. Isso é muito. 

Portanto, há um período de incerteza sobre quando a bola é realmente rebatida e, portanto, há uma grande "margem de erro" sobre onde um jogador realmente está quando a bola é rebatida - seja um atacante correndo para um passe, ou um goleiro fora de sua linha para defender um pênalti. Mas estamos sendo apresentados a essas chamadas absolutas de “preto e branco” - o VAR mostra DEFINITIVAMENTE a chuteira de um atacante dois ou três centímetros à frente do defensor, então é um impedimento claro!! Simplesmente, isso  não é assim (DODSON, Allen, SBNation “VAR – as it’s currently being used – is ruining football” – clique aqui).

O engenheiro eletrônico e de computação Paulo Cezar Filho detalha um pouco mais essa análise:

Num lance de impedimento, o operador do VAR precisa separar dois frames consecutivos, um antes do passe, outro depois do passe. A 60 frames por segundo, a distância temporal entre dois frames consecutivos é de 16,7 milissegundos. Isto significa que a imagem só é captada a cada 16,7 milissegundos, e o que acontece nesse intervalo simplesmente não é captado pelo VAR (lembrando que o intervalo provavelmente é ainda maior, devido à taxa de frames utilizada). (...)

Mas o que acontece durante 16,7 milissegundos? É pouco tempo, mas o futebol é um jogo dinâmico. Um futebolista considerado rápido consegue alcançar a velocidade de 32 quilômetros por hora (alguns são mais rápidos). Se o atacante estiver indo no sentido do gol e o defensor no sentido oposto, ambos a 25 quilômetros por hora, a velocidade com a qual os atletas se distanciam é de 50 quilômetros por hora. Isto significa que, em 16,7 milissegundos, os atletas se distanciaram 23,2 centímetros.

A conclusão? Ainda que o VAR esteja captando as imagens do jogo a 60 frames por segundo, é fisicamente impossível detectar impedimentos menores que 23,2 centímetros. E isto numa estimativa bastante conservadora! Muito provavelmente, a taxa de frames é menor. Além disso, os atletas podem se distanciar a uma velocidade ainda superior aos 50 quilômetros por hora que utilizei como exemplo. Se a captação for de 24 frames por segundo e os atletas se distanciarem a 60 quilômetros por hora, o limite subirá para 69,4 centímetros (mais de meio metro!) – “VAR: a fraude dos impedimentos milimétricos”, clique aqui.

Isso sem falar em questões igualmente cruciais como resolução da imagem e interferência humana no processo para determinar o instante exato do passe ou posição dos atletas envolvidos.



Em busca do último frame, do quantum da Verdade, o VAR (ou pelo simbolismo que é investido à ferramenta no país do moralismo Lava Jato) transforma o futebol em um, por assim dizer, ESPORTE QUÂNTICO – raciocinando ad absurdum, poderíamos pensar em decomposições do movimento cada vez mais “precisas” até chegarmos ao último elétron da última órbita da nuvem probabilística do átomo do ombro do zagueiro que dava condições ao último elétron da ponta da chuteira do atacante...

Porém, esse absurdo quântico esquece daquilo que é fundamental: o “Princípio da Incerteza” de Heisenberg: quando se tenta estudar uma partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Werner Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem deixar de influenciá-la.

Neotevê contra o futebol

Mas temos ainda um último aspecto que torna o VAR uma consequência das promíscuas relações do monopólio televisivo com o esporte.



O semiólogo italiano Umberto Eco já havia observado o início desse fenômeno no futebol – o fato de saber que será transmitido influencia na sua preparação: a passagem da velha bola de couro cru para a bola televisiva xadrez ou a troca dos uniformes por motivos cromáticos perceptivos seriam alguns exemplos – leia ECO, Umberto, “Tevê: A Transparência Perdida” In: Viagens na Irrealidade Cotidiana, R. Janeiro: Nova Fronteira, 1984 .

Para mais tarde, a interferência nas próprias regras para tornar o esporte, e o futebol em particular, num evento televisivo e telegênico.

Eco chamava essa nova televisão de “Neotevê”: de testemunha ocular da História, tornou-se protagonista dos fatos.

Por esse motivo, com o passar do tempo, as transmissões esportivas extensivas das TVs cobraram um alto preço para o esporte: de jornadas esportivas ou realidades extra-televisivas passaram a ser conteúdos gerados para e pelas próprias emissoras de TV. Em outras palavras, as mídias não se contentaram mais em apenas transmitir. Passaram a ser produtoras ou donas dos eventos para que estes se ajustassem ao timing dos negócios.

É sabido como a presença das câmeras alteram o desenrolar dos acontecimentos, especialmente no esporte.

O futebol é uma das modalidades que mais resistiram à interferência das transmissões de TVs. O VAR é a última investida para alterar a própria natureza do futebol: a interpretação.

Podemos imaginar um futuro próximo em que os árbitros de campo serão substituídos por atletas-assistentes com ponto eletrônico, correndo junto com os jogadores e repassando as decisões da sala do VAR a cada lance. Foi falta? Lateral? Tiro livre direto ou indireto? Obstrução ou jogo de corpo? E decomposição infinita nos responderá, até chegarmos ao suposto quantum da verdade movimento. 

 

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