sábado, setembro 12, 2020

Na série 'Ares', 'O Guia Pervertido da Ideologia' de Zizek encontra-se com as sociedades secretas


O documentário “O Guia Pervertido da Ideologia” (2012), com o filósofo Slavoj Zizek, no qual mapeia uma série de filmes para explicar a natureza atual da ideologia, certamente contaria com a série holandesa “Ares” (2020-) como mais um exemplo audiovisual. Disponível na Netflix, acompanha uma jovem e ambiciosa estudante de Medicina que, apesar de não carregar um sobrenome com pedigree, é convidada a entrar numa sociedade secreta de universitários que mais parece um culto. Cujos participantes são capazes de identificar seus tataravôs na conhecida pintura de Rembrandt “Ronda Noturna”. Um terror psicológico que sintetiza a ideologia cínica que permeia todas as elites: “Eu sei muito bem o que estou fazendo, mas mesmo assim faço”. Uma sociedade secreta que gira em torno de um culto aparentemente demoníaco cujo propósito principal é a expiação do sentimento de culpa - o legado do colonialismo da história da Holanda na sua elite: uma riqueza fundada historicamente na exploração, escravidão e violência.  

No documentário O Guia Pervertido da Ideologia (2012), o filósofo Slavoj Zizek parafraseia a famosa frase de Karl Marx em “O Capital” (“Eles não sabem o que fazem, mas o fazem mesmo assim”) para criar a fórmula da ideologia cínica dos tempos atuais: “Eu sei muito bem o que eu estou fazendo, mas mesmo assim o faço”.

Zizek acredita que Marx natureza antecipou essa natureza cínica atual ao identificar uma fissura, uma assimetria “patológica” que desmente o universalismo dos direitos e deveres burgueses liberais. Quando cria o Universal ideológico da Liberdade e Igualdade, imediatamente rompe a sua Unidade ao incluir um caso específico, expondo a falsidade. P. ex., ao considerar o trabalhador “livre” para vender sua força de trabalho no mercado, automaticamente essa liberdade é cancelada ao ter a mais-valia explorada pelo Capital.

Situação que fica ainda mais dramática na precarização e uberização do trabalho sob a égide da “liberdade”: a suposta liberdade de ter a jornada de trabalho flexível, imediatamente cancela a universalidade da liberdade ao se tornar escravo do Capital que se oculta por trás de um aplicativo.

Portanto, o fazer social burguês exige um distanciamento cínico da realidade racionalizada pela fantasia dos “Universais” – Liberdade, Igualdade, Mercado, Lei de oferta e procura etc. A manutenção dessa fantasia e cinismo (defesas psíquicas) certamente exige um preço do psiquismo – um investimento de energia que nos proteja de nós mesmos: o sentimento de culpa. O mal-estar diante de uma realidade que continuamente cancela os “Universais” da ideologia - leia ZIZEK, Slavoj, Um Mapa da Ideologia, Contraponto, 2007.

Imagine, portanto, todo os esforços das classes dominantes, por toda a História, para racionalizar ou justificar ideologicamente guerras, exploração, escravidão, genocídios, roubos, saques etc., em nome de Universais, sejam míticos, religiosos ou racionais – Razão, Direito e assim por diante.

Voltando ao Guia Pervertido da Ideologia, desse mal-estar resultaria a violência amoral como um sintoma de um impasse simbólico entre os Universais ideológicos e a realidade. Sintoma dessa urgência em expiar a culpa.


Aqui nos deparamos com a série holandesa de terror psicológico Ares (2020-), disponível na Netflix – mais um passo da plataforma de streaming em busca de desenvolver projetos internacionais após o sucesso de títulos como Narcos (co-produção com Colômbia e México) e Dark (Alemanha).

“Você nunca pensou porque um país pequeno como a Holanda se tornou tão rico e poderoso?”. Essa questão cinicamente levantada por um dos líderes de uma sociedade secreta de estudantes universitários de elite ao apresentar a sociedade “Ares” para uma jovem e ambiciosa estudante de Medicina de origem proletária, é a chave de compreensão da série. 



No primeiro episódio um grupo de estudantes universitários o Rijksmuseum, em Amsterdã, para ver as grandes pinturas da Idade de Ouro Holandesa: as obras de Rembrandt e Johannes Veermer.

Depois de passar por paisagens marinhas e modelos de navios, eles param em frente da obra “Ronda Noturna” de Rembrandt, a joia da coroa do museu. A pintura, que foi encomendada em meados do século XVII por membros da milícia local de Amsterdã, retrata um alegre bando de heróis prontos para defender sua cidade. 

Os estudantes de elite do curso de Medicina tratam a pintura como um velho amigo: "Lá estão eles", alguém diz com carinho: "Nossos tataravôs." E eles não está falando metaforicamente: ele e seus amigos passam a apontar seus ancestrais na pintura, um por um. 

A série Ares acompanha como a vida de uma estudante universitária holandesa chamada Rosa (Jade Olieberg) vira de cabeça para baixo quando ela se junta a uma elite exclusiva de uma sociedade secreta que mais parece um culto.

Ares aborda o legado do colonialismo da história da Holanda na sua elite: uma riqueza fundada historicamente na exploração, escravidão, saques e violência. Em todos os aspectos, a série mostra como o impasse simbólico descrito por Zizek no psiquismo de uma elite resulta não apenas na violência amoral.  Mas também numa sociedade secreta que gira em torno de um culto cujo proposito principal é a expiação da culpa.



A Série

Composta por uma temporada, seus oito episódios são curtos. Em torno de 30 minutos cada. O que dá dinamismo a uma narrativa na qual a quase totalidades das sequências ocorrem no interior de uma grande mansão em Amsterdã, sede da sociedade Ares.

Rosa Steenwijk é uma mestiça de pai negro e mãe branca, amiga de um dos estudantes calouros da Universidade, Jacob Wessels (Tobias Kersloot). Ela apenas observa os estudantes egressos de berços de ouro em silêncio. Ela é de origem proletária e incapaz de contribuir com um histórico familiar de sobrenome.

Logo ela descobre que esses alunos do curso de Medicina são descendentes das famílias mais célebres da história da Holanda e todos pertencem a um clube social exclusivo chamado Ares.

Apesar do seu pedigree nada notável, estranhamente ela é convidada a entrar naquele clube. Para logo descobrir que os novatos passam por estranhos e assustadores trotes ritualísticos. E que começam com a impressão no braço, com ferro em brasa, do selo da sociedade secreta.

Todos deverão abandonar seus lares para morarem numa grande mansão decorada por relíquias históricas. Roupas novas são fornecidas. Estranhamente, o novo vestuário evoca as pinturas do barroco holandês – embora sejam roupas com corte moderno, mangas estruturadas e golas com babados emulam as roupas exibidas nas pinturas de Rembrandt e Veermer. A própria paleta de cores das roupas (azul royal, amarelo, branco e preto) são evocativas das pinturas de Johannes Veermer.




O legado dessa era da história da Holanda se espalha. “Como um país pequeno como a Holanda se tornou tão poderoso?”. A resposta é sociedade Ares, que tem suas raízes na Idade de Ouro do país no século XVII. Embora a Holanda continue próspera hoje, devido em grande parte à sua produção robusta de gás natural, sua influência global diminuiu consideravelmente desde seu pico durante a Idade de Ouro, quando seu império colonial abrangia o globo do Brasil à África do Sul e Indonésia, e manteve direitos comerciais exclusivos com o Japão. 

Os personagens brancos em Ares se deleitam não apenas com o acesso e privilégios da elite que sua condição de membro da Ares lhes proporciona, mas também com sua longa história familiar de prosperidade e poder. O tempo inteiro afirmam seu lugar de direito na classe de elite de seu país.

Rosa não compartilha dessa visão de mundo, mas quando é convidada a se juntar a Ares, ela aproveita a oportunidade. Logo se vê cercada de misteriosos rituais com membros mascarados vestidos com mantos, lembrando diversas vezes cenas do filme De Olhos Bem Fechados (1999) de Kubrick.

Ambiciosa, de filha devota Rosa torna-se negligente com sua mãe (ela é esquizofrênica) e com seu pai, um enfermeiro de longos plantões noturnos. Ela abandona os cuidados com a mãe e se entrega à ascensão meteórica na sociedade Ares. Principalmente quando ela graciosamente encobre o suicídio do jovem presidente de Ares. O clube é assolado por uma onda de suicídios. Aparentemente associado a uma antiga lenda que cerca as origens de Ares: um monstro devorador de almas que viveria prisioneiro nas profundezas daquela mansão – aparentemente todo o propósito dos rituais e oferendas seria a de aplacar a ira desse demônio chamado Bael que viveria acorrentado em escuros porões.



A fantasia cínica da ideologia – alerta de spoilers à frente

Há uma estranha oferenda que oferecida a Bael na forma de um estranho líquido viscoso negro, um vômito preto que também começa a acometer Rosa. Tudo leva a crer que a ambição de Rosa lhe cobrará um alto preço: a própria alma. E o líquido viscoso do vômito uma metáfora de toda a culpa e pecados que devem ser eliminados da consciência para que um membro da elite continue a desempenhar o seu papel, livre de qualquer julgamento moral.

No final das contas, a série conclui que a visão de Rembrandt do heroísmo holandês é uma fantasia, fornecendo cobertura para uma realidade mais sombria e tóxica que ficará oculta nas sombras até que alguém esteja disposto a arrastá-la para a luz.

Mas, principalmente, de que toda a mitologia em torno da sociedade secreta de Ares (o demônio Bael, os cultos, os sinistros rituais) não passam de “fantasia ideológica” (no sentido dado por Zizek) de uma elite que sente a necessidade de expiar os seus pecados do passado e do presente.

A parte real de Ares são os sacrifícios dos novatos e a violência amoral que os novos egressos devem comprovar: assassinatos, de adultos a um bebê.



Como afirma Zizek no Guia Pervertido da Ideologia, a ideologia não é uma falsa consciência que encobre uma realidade, mas uma fantasia cínica que apenas racionaliza a culpa e o mal-estar da violência e exploração do outro.

O demônio Bael e todos os rituais e oferendas são apenas fantasias para resolver o impasse simbólico de uma elite culpada de saber o que está fazendo, mas mesmo assim continuar a fazê-lo. 

Ares lembra uma série de ritos e mitos malucos de sociedades exclusivas de elite, como por exemplo o famoso “Bohemian Grove”, na Califórnia - um clube exclusivo masculino fundado em 1872 localizado em um lugar conhecido como Bohemian Grove.

Todo verão, no mês de julho, desde 1972, seus membros (2.500 no total, membros da elite política, financeira, tecnológica e midiática nacional e internacional) participam de um “acampamento” onde se programam dentro de uma intensa pauta constituída por palestras sobre conjuntura mundial, lazer e um estranho ritual conhecido como Cremation of Care feito sob os pés da estátua de uma coruja com 12 metros de altura.

Um show musical, pirotécnico e teatral cujo texto, que seria pronunciado pela Coruja, foi por muito tempo narrado pelo apresentador de TV Walter Cronkite.

A dramática performance (uma simulação de ritual pagão de sacrifício humano luciferiano babilônico) seria uma alegoria do banimento de todas as preocupações e culpas da consciência dessa elite, como relata Porter Garnett no livro “The Bohemian Jinks: A Trealise” - o desejo profundo desses indivíduos se libertarem da má consciência (culpa ou ódio) que os acompanha e dos poderes corporativos ou políticos aos quais devem se submeter. 

Em outras palavras, tentam se tornar os senhores dos seus próprios infernos. 


 

         

Ficha Técnica 

Título: Ares (série)

Criadores: Pieter Kuijiper, Iris Otten, Sander van Meurs

Roteiro:Mathhijs Bockting, Pieter Kuijpers

Elenco: Jade Olieberg, Tobias Kersloot, Lisa Smit, Frieda Barnhard

Produção: Pupkin Film

Distribuição:  Netflix

Ano: 2020-

País: Holanda

 

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