quinta-feira, setembro 10, 2020

A canastrice na política: os vídeos do Porta dos Fundos, Bolsonaro e Lula

Três vídeos marcaram esse feriado da Independência. O primeiro, um vídeo da série “#Polêmicadasemana” da trupe de humor Porta dos Fundos. E depois, o pronunciamento do presidente Bolsonaro e a fala de Lula à Nação. Dois paradigmas comunicacionais opostos: o vitorioso, até aqui, da viralização (através da canastrice na política em linguagem audiovisual tosca) da direita alternativa; e do outro o paradigma da “sedução”, com vídeo profissionalmente produzido trazendo o discurso racional de um estadista. E o vídeo do Porta dos Fundos, mais um exemplo da estranheza do humor que tenta fazer a paródia da política que já faz de antemão uma paródia de si mesma. Onde as esquerdas encontrarão o alfinete para furar a bolha que separa esses dois paradigmas comunicacionais? No campo semiótico da canastrice,  meta parodiado no vídeo do Porta dos Fundos.  

Esse humilde blogueiro passou por uma estranha e perturbadora experiência ao se defrontar com um vídeo de uma postagem no Twitter. Junto com o vídeo anexado havia um breve comentário em torno de uma tal de “cloroquina vegana”. 

Curioso, cliquei no vídeo para assisti-lo... o vídeo se tratava de um quadro chamado “#PolêmicadaSemana”: o lettering era: “Cloroquina: Vilã ou Heroína”. A estética do vídeo em tudo emulava o quadro do canal CNN chamado “O Grande Debate” cujo mote é “Temas Relevantes com Opiniões Divergentes”. Tudo parecia verossímil como um quadro de debates de algum canal de TV “real”. Quem sabe, de uma filiada de alguma rede de televisão.

A primeira a falar era uma “infectologista da UFRJ” com “doutorado em Oxford” que alerta sobre o perigo mortal do medicamento para combater o coronavírus.  Para debater, um “coaching cristão” e “dono de um canil”, ardoroso defensor e consumidor diário do medicamento. 

Não sabia a procedência do vídeo, mas os “efeitos de realidade” com todos os signos televisivos (cenários, letterings, cromakey etc.) embaralhavam os registros: é ficção ou realidade? Paródia ou mais um capítulo do realismo fantástico do cenário político nacional? Quando o “coaching EM Cristo” começou a falar (para ele, a distinção entre “em Cristo” e “cristão” era fundamental) para lentamente cair minha ficha: isso é uma peça de humor!... logo depois, descobri que era mais um esquete da trupe de humor do Porta dos Fundos.

É o estranho efeito que essa espécie de Realismo Fantástico em que se transformou o País: estamos testemunhando uma intensa ação de feedback entre a cena política e mídia. Não mais no sentido de mascarar, como era no passado. Mas agora numa paradoxal estratégia semiótica de ressignificar a realidade através da ficção e vice-e-versa. 


A questão é que o vídeo do Porta dos Fundos não é uma simples paródia, mas uma meta paródia. O próprio quadro do canal de notícias CNN já é, em si, paródia e realismo fantástico: pega-se um pesquisador sério de qualquer área para debater, por exemplo, com um blogueiro negacionista e fundamentalista de extrema-direita como Caio Coppola – infelizmente, trazendo o sobrenome de um grande cineasta.

“O que seria o verde se não fosse o amarelo”, passa o pano o apresentador do insólito “#PolêmicadaSemana”, na típica normalização ou nivelamento que a grande mídia faz para reduzir tudo a “opiniões” e a realidade em “vieses” em debate.



Tolerância Represiva

O pensador Herbert Marcuse definia esse jogo semiótico como tolerância repressiva em um ensaio de 1965. Marcuse argumentava que o lugar político da tolerância havia mudado através da ideologia da sociedade industrial – enquanto era retirada da oposição, transferia-se para o sistema estabelecido transformando a “tolerância” numa forçosa conduta em favor das políticas estabelecidas – leia o ensaio clicando aqui.

A tolerância passaria de um estado ativo a um estado passivo: um grande laissez faire de opiniões niveladas e toleradas pelas autoridades constituídas.

A novidade atual, jamais imaginada por Marcuse, é como o poder constituído é capaz de se retroalimentar da paródia que pretende critica-la. Em postagem anterior discutíamos como está cada vez mais difícil o humor desafiar o Poder, quando ele próprio se performa como paródia de si mesmo. Definimos essa estratégia de feedback entre realidade e ficção como canastrice na política que produz um efeito normalizador: a irrealidade cotidiana é autenticada como verdade ao emular o overact da paródia, telenovelas, filmes etc. – clique aqui.

Por exemplo, vejamos o discurso do dublê de presidente e capitão da reserva Bolsonaro no feriado da Independência em sete de setembro.  

Uma produção tosca: uma composição com duas bandeiras (a brasileira e o selo nacional) largadas num canto e uma inacreditável estante com livros desbotados em visível cromakey. A dicção tatibitate do presidente ajuda ainda a compor toda a tosquera.

Mas se fosse apenas isso, poderíamos apenas considerar um vídeo mal produzido. Por assim dizer, há uma atmosfera intrigante naqueles em torno de 3 minutos: o discurso parecia mais um texto de pesquisa de História do Brasil do ensino fundamental dos anos 1970 (não só pela visão idealizada, mas pela qualidade do texto que parecia copiado das velhas enciclopédias da época).

Somado a fisionomia de felicidade kitsch com aquele cabelo penteado para os lados e fixo, todo o décor guardava uma estranha similaridade com aquelas fotos tiradas de crianças, com seus cabelos fixados em brilhantina, no primário, nos anos 1960-70 – com o mapa do Brasil e bandeira nacional ao fundo; fotos emblemáticas do auge da ditadura militar brasileira - veja fotos abaixo.



Um pronunciamento curto, três minutos..., afinal o timing de qualquer prestidigitação deve ser curto para não entediar o distinto público.

A tosquice da fala presidencial no feriado se soma à simplicidade estudadamente malfeita dos logos de programas do Governo como o “Pró-Brasil 22” (com foto de crianças todas brancas visivelmente adquirida de um banco de imagens na Internet) e da “Casa Verde Amarela” (a casa é azul e com CHAMINÉ – quem sabe, porque o bujão de gás está caro...). Portanto, há uma intencionalidade, um estilo estudadamente precário, canastrão, emulando o popularesco midiático.

No caso do vídeo do feriado da independência, alusão à imagerie escolar popular da infância – subliminaridade semiótica? Referência subliminar aos “bons tempos” patrióticos dos governos militares?

Bem diferente da tosquice proposital do pronunciamento de Bolsonaro, foi o vídeo da fala ao Brasil de Lula, também no de sete de setembro. Ao contrário do pronunciamento de Bolsonaro, Lula falou por longos e bem produzidos 23 minutos: caprichada edição com lettering em deslocamento destacando as principais frases e conceitos (dando dinamismo aos planos, assim como eram nos pronunciamentos da presidenta Dilma – o cenário em movimento para criar o efeito de profundidade de campo), cortes estratégicos para das dinamismo à fala sobre economia, a submissão do Brasil à geopolítica norte-americana, a crise sanitária transformada pelo governo em arma de genocídio, pautas identitárias etc.

Tudo muito bem produzido e finalizado dentro dos macetes de um vídeo profissional. Quanto ao conteúdo, foi o “discurso de um estadista” ao propor diagnósticos e caminhos – essa foi a unanimidade, pelos menos dentro do ¼ da opinião pública progressista, a chamada “bolha”.

Sedução versus viralização

Porém, dentro da guerra semiótica brasileira que esse Cinegnose vem pesquisando desde 2013 (vide o recente livro desse editor do blog “Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira (2013-2016) – clique aqui), essa virtude é justamente o ponto fraco.



Simples assim: foi um discurso ótimo para arregimentar e elevar o moral dos convertidos, daqui de dentro do País e da mídia progressista internacional. Mas incapaz de “furar a bolha”. Esse humilde blogueiro sabe que essa expressão de tanto ser repetida se tornou um clichê, de tão mal compreendida.

Por que mal compreendida? Não se trata de uma questão de vontade de denunciar ou de expor aquilo que o povo brasileiro supostamente ignora. Trata-se de uma questão de diferenças de paradigmas comunicacionais: enquanto Lula ainda está no paradigma da sedução da propaganda política (o foco no discurso e na linguagem audiovisual agradável e profissional); Bolsonaro (e de resto a alt-right, a “direita alternativa”) está muito bem assentado no paradigma da viralização.

A viralização é essencialmente anti-propaganda – não há martelamento discursivo ou sedução através da linguagem audiovisual sofisticada e discursos recheados de figuras de retórica. Ao contrário, comunicação viral é grosseira, propositalmente malfeita, seja por memes graficamente toscos, fotos bruscamente photoshopadas etc. O feio, o irregular, o abrutalhado (em síntese, o canastrão) faz disparar o gatilho cognitivo para compartilhar e viralizar.

A ironia é que essas eram estratégias usadas pelo humor crítico ou pela imaginação ficcional para desvelar grotescas realidades por trás da aparente normalidade cotidiana. O problema é quando a própria realidade (no caso, política) assume-se como canastrona, anti-normal, anti-propaganda, anti-publicidade, anti-sedução.

É claro que as estratégias de viralização são mais complexas do que uma simples troca de campo comunicacional: é uma estratégia modulada para cada tipo de perfil em redes sociais, como bem demonstrou o escândalo envolvendo a Cambridge Analytica, mineração de Big Data e o roubo de informações privadas de usuários no Brexit e na campanha de Trump. 

Trata-se do caso de as esquerdas atuarem no mesmo campo semiótico da viralização, tese insistente desse Cinegnose desde 2013.

A linguista e jornalista Letícia Sallorenzo, afirma em artigo que “falta a Luís Inácio o alfinete para furar a bolha” – clique aqui

Onda achar esse alfinete? No mesmo campo simbólico no qual a extrema-direita está ganhando por WO.

Um exemplo que talvez cause estranheza: por muito tempo os palmeirenses eram zombados pelas torcidas adversárias ao serem tachados de “porcos” – em alusão à retaliação que os imigrantes italianos sofriam no Brasil ao associá-los com os fascistas.

De tanto ouvir os gritos de “porco” nos estádios, em 1986 o diretor de marketing do Palmeiras assumiu o xingamento: no lugar do periquito como mascote oficial, entrou o porco – representado graficamente das formas mais toscas ou exageradas pelas torcidas organizadas e pelos próprios jogadores.

Resultado: neutralizou o insulto a partir do momento em que a estratégia comunicacional do clube foi jogar no mesmo campo semiótico dos adversários... principalmente os corintianos.



 


Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review