domingo, março 24, 2019

O detetive diante dos mistérios quânticos no filme "Out of Blue"


Se o gato da experiência do físico austríaco Schrödinger pode estar simultaneamente morto e vivo dentro de uma caixa selada, haveria mesmo um assassinato para resolver? Se alguns astrofísicos acreditam que haveria um número infinito de universos com diversas variações possíveis das nossas vidas, ocorrendo todas simultaneamente, então qual a importância de encontrarmos uma resposta definitiva no presente? Se o detetive numa narrativa policial é aquele que tenta resolver enigmas com a racionalidade, como então lidar com um caso que parece imerso nesse conjunto de paradoxos quânticos? Esse é o filme “Out of Blue” (2018): uma policial tenta resolver o enigma da morte de uma astrofísica em um observatório astronômico. O problema é que a racionalidade da detetive e a sua condição de ex-alcoólatra serão confrontadas com os dois principais mistérios da física quântica: como o observador sempre altera o próprio objeto observado e o paradoxo de Schrödinger – pode um ser estar simultaneamente vivo e morto?

O escritor e diretor Joseph Mankiewicz disse certa vez que a diferença entre a vida e os filmes é que nos filmes os acontecimentos fazem sentido – um enredo com começo, meio e fim com causas e consequências. Enfim, o cinema em si seria uma forma de colocar ordem no caos.
Porém, o revival das mitologias gnósticas no século XX (da literatura até chegar ao cinema) e o impacto das teses da física quântica no cenário cultural até chegar também ao cinema, ajudaram a embaralhar as coisas e trazer para a narrativa fílmica as mesmas incertezas do mundo real – principalmente, a desconfiança quanto a consistência daquilo que chamamos de realidade.
Por exemplo, a famosa experiência do gato do físico austríaco Schrödinger (na qual o gato preso numa caixa está simultaneamente vivo e morto e somente a presença do observador e a entrada da luz acabariam com a dualidade) e paradoxos quênticos como “sobreposição”, “entrelaçamento”, “decoerência” e a impossibilidade do observador deixar de influenciar aquilo que observa, inspiraram nos últimas duas décadas uma sequência alucinante de filmes: Efeito Borboleta (2004), Deja Vu (2006), Crimes Temporais (2007), About Time (2013), Amantes Eternos (2013), Interestelar (2014), Coherence (2015), Triângulo do Medo (2016), entre tantos outros numa extensa lista.
O que unifica todos esses filmes é que nada é o que parece ser para os protagonistas, e que caos e ordem (assim como partícula e onda convivem simultaneamente no mundo microfísico, o que garante que o gato de Schrödinger esteja vivo e morto ao mesmo tempo) são dois lados simultâneos, cuja busca de resolução trás ainda mais incertezas.


O detetive e os mistérios quânticos

As coisas ficam ainda piores em uma típica narrativa policial, na qual o crime é uma perturbação da ordem e o detetive é o agente da Razão – aquele que tenta impor através do método racional de investigação e da Lei resolver a tensão da desordem.
Tente então imaginar o leitor um filme no qual o investigador está imerso em um mundo de paradoxos quânticos como os descritos acima, onde a resposta parece ser é que não há nenhuma resposta. Pelo menos não no sentido procurado pela lógica cartesiana.
Esse é o filme Out of Blue (2018), uma adaptação da diretora Carol Morley do livro policial “Trem Noturno” (1997) de Martin Amis. Se o gato de Schrödinger pode estar simultaneamente morto e vivo dentro de uma caixa selada, haveria mesmo um assassinato para resolver? Se alguns astrofísicos acreditam que haveria um número infinito de universos com diversas variações possíveis das nossas vidas, ocorrendo todas simultaneamente, então qual a importância de encontrarmos uma resposta definitiva no presente?
A morte de uma famosa astrofísica, cujo corpo é encontrado em cenário suspeito num observatório na cidade de New Orleans, faz a narrativa de Out of Blue criar uma série de analogias entre citações da Astrofísica e física quântica (“A morte catastrófica de uma estrela traz vida nova ao universo” ou “o observador sempre interfere no objeto observado”) e o trabalho de uma investigadora da polícia que tenta desvendar o mistério policial.

O Filme

Os detetives chegam em uma cena de morte em um observatório astronômico. O corpo que jaz no chão com o rosto totalmente desfigurado por um tiro a queima roupa, é de uma famosa astrofísica chamada Jennifer Rockwell – Mamie Gummer. 
“Ela é uma Rockwell?”, pergunta um dos investigadores. Sim, ela é filha de uma proeminente família cujo patriarca é um veterano herói de guerra que se tornou um magnata da indústria eletrônica, o Coronel Tom Rockwell (James Caan) e sua esposa, Miriam – Jacki Weaver.


Seus filhos gêmeos assumiram a direção dos negócios da família, mas Jennifer tornou-se uma cientista que busca respostas nas estrelas.
O filme começa com uma pequena reunião noturna de Jennifer com um grupo de estudantes na cobertura do observatório: “Para vivermos, uma estrela deve morrer... somos todos resultantes do pó das estrelas. Você sabe qual o seu lugar no Universo?”, filosofa Jennifer, sob o céu estrelado. Poucos momentos depois, ela será encontrada morta é a detetive Mike Hoolihan (Patricia Clarkson) será a responsável pelas investigações. 
Hoolihan é uma ex-alcoólatra em recuperação que diz não se lembrar de nada do que aconteceu na sua vida desde que se juntou à força policial e se livrou do vício.
Aqui começa a primeira analogia astrofísica: assim como Jennifer pretendia encontrar o “coração negro” que revelará todos os paradoxos de um buraco negro, também Hoolihan tentará encontrar o coração negro no interior de um suposto assassinato. Suposto, pois as evidências começam a apontar para um suicídio. Mas por que? Jennifer era uma mulher linda, de uma família rica, além de ser uma cientista idealista, bem-sucedida e de renome. 


A narrativa de Out of Blue é tipicamente “slowburn”, isto é, num ritmo lento, labiríntico, que lembra um mix de David Lynch com o intrincado mistério do filme Chinatown (1974) de Roman Polanski.
Um caso de homicídio (ou suicídio) tão excepcionalmente perturbador que levará a detetive à beira de um colapso. Este é um filme puramente cerebral – um quebra-cabeça, um enigma e uma miragem que parece indefinidamente não ter solução.
Isso porque há algum sentido oculto e transcendental: os paradoxos astrofísicos e quânticos parecem ser imanentes ao mistério da morte de uma astrofísica, como se o caso fosse uma força cósmica escura em cuja órbita gravitacional a vida de Jennifer esteve à deriva. E agora, a própria vida da detetive Hoolihan.

O gato de Schrödinger

Mas o principal paradoxo é o do observador e da “decoerência quântica” da caixa com o gato de Schrödinger. 
O físico austríaco tentou através dessa experiência visualizar as implicações do estranhíssimo e aparentemente ilógico mundo das partículas subatômicas – uma mesma partícula pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Schrödinger quis trazer esse paradoxo subatômico para uma situação fácil de ser visualizada: um gato está preso numa caixa que contém um recipiente com material radioativo e um contador Geiger. Se o material soltar partículas radioativas e o contador detectar, acionará um martelo que, por sua vez, quebrará um frasco com veneno, matando o bichano.


De acordo com as leis da física quântica, a radioatividade pode se manifestar tanto como onda quanto partícula. Ou seja, na mesma fração de segundo, o frasco de veneno quebra e não quebra, produzindo duas realidades probabilísticas simultâneas. As duas realidades aconteceriam simultaneamente dentro da caixa, até que fosse aberta – a presença de um observador e a entrada da luz intervindo nas partículas acabariam com a dualidade.
Ambas realidades existem simultaneamente dentro da caixa. Mas existe a chamada “decoerência quântica” que garante que essa situação “decaia” para um dos resultados: vivo ou morto. Isso impede que os “dois gatos” das situações diferentes interajam entre si. 
O olhar do observador altera a experiência observada. Esses paradoxos quânticos abriram, por assim dizer, uma brecha na Razão e nos métodos cartesianos de investigação da realidade. Isso, tanto a detetive Hoolihan quanto o espectador descobrirão – o detetive. Não consegue ficar neutro, pois aos poucos o arco da morte de Jennifer vai se abrir e finalmente se fechar no próprio passado que a detetive tenta esquecer, num clássico mecanismo freudiano de negação psíquica.
Definitivamente, Out of Blue não é para espectadores que esperam de uma trama policial um final que termina com a clareza cartesiana de um romance de Agatha Christie ou Raymond Chandler.
Duas pequenas pistas que talvez ajudem o leitor a resolver o enigma quântico: por que uma policial como Mike Hoolihan tem medo do escuro? E também: por que ela pintou o cabelo de castanho para esconder seus cabelos naturalmente loiros?
  

Ficha Técnica 


Título: Out of Blue
DiretorCarol Morley
Roteiro:  Carol Morley baseado em livro de Martin Amis
Elenco:  Mammie Gummer, Patrícia Clarkson, James Caan, Toby Jones, Jonathan Majors
Produção: BBC Films, BFI Film Fund
Distribuição: IFC Films
Ano: 2018
País: Reino Unido

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