sábado, março 02, 2019

Cinegnose em Londrina: na guerra semiótica a esquerda descerá ao abismo para se encontrar


Desde o século passado a direita sempre esteve vários passos à frente ao lançar mão das tecnologias de ponta de cada momento. Lá atrás, nazistas usaram o rádio e o cinema. E hoje o nacionalismo de direita manipula algoritmos, inteligência artificial e mídias de convergência. Somente com uma formação interdisciplinar articulando ciências da comunicação, computação e política será possível a esquerda compreender as diferenças entre as dinâmicas de massificação e viralização, reformulando o ativismo e militância política. A esquerda terá que descer ao abismo simbólico para encontrar a si mesma. Esse foi o tema que dominou o workshop “Guerra Híbrida e Guerra Semiótica” ministrado por este editor do “Cinegnose” no último sábado (23/02) em Londrina/PR. Organizado pela Frente Ampla Pela Democracia, com apoio da Associação dos Professores do Paraná, o evento contou com auditório lotado de acadêmicos, estudantes, ativistas e sindicalistas, com muita curiosidade e entusiasmo para o debate. 
Este humilde blogueiro esteve em Londrina/PR no último sábado (23/02) para abrir a “caixa de ferramentas” de referências teóricas e práticas fornecidas pela Ciência da Comunicação para servir de instrumento de ação naquilo que este “Cinegnose” vem denominado como “guerra semiótica” – episódio brasileiro da estratégia geopolítica de guerra híbrida que a geopolítica norte-americana vem encetando em países estratégicos e sensíveis às suas ações.
Lá encontrei o lotado auditório da Associação dos Professores do Paraná e um público bem heterogêneo (de acadêmicos e estudantes a ativistas e sindicalistas) e disposto ao bom debate – quando a curiosidade pelo saber motiva a busca por ações e alternativas. Um público vivamente disposto a entender a conjuntura atual e como o papel estratégico da Comunicação nesse momento.
Se a comunicação é a criação de um acontecimento, parece que o debate em Londrina alcançou o objetivo – até agora chegam perguntas e colocações através do grupo, criado após o workshop, no WhatsApp chamado “Guerra Híbrida Semiótica”. 
“O que aconteceu?” e “O que fazer?”. Essas duas questões existenciais foram as que nortearam o debate, questões-chave desde os resultados eleitorais do ano passado que parece que ainda não terminou.

Ilusão consensual

Com todo o tempo disponível pela natureza de um workshop, este editor do “Cinegnose” começou definindo os conceitos de “bomba semiótica”, “guerra semiótica” e “guerra híbrida” e, principalmente, uma introdução à ciência da Semiótica. Principalmente a sua latente aplicação política com a noção de “signo”: se o que vemos não é a realidade, mas o signo da realidade, o que entendemos por realidade passa a ser uma “ilusão consensual”. 
Em outras palavras, o que entendemos por realidade passa a ser de natureza perceptiva. O que abre margem à existência de “engenharias” de percepções. Portanto, isso altera o que entendemos por “comunicação”: de informação ou sinalização de um conteúdo (ideologia, discursos, doutrina etc.) passa a ser a criação de acontecimentos, “bombas” que criam repercussões destinadas especificamente a alterar essa ilusão consensual.

O workshop demonstrou como os nazistas no século XX compreenderam bem essa natureza, naquilo que Walter Benjamin chamou de “esteticização da política”: líderes que emulavam personagens do cinema mudo (a “canastrice” na política), ridicularizados no começo, mas que depois se tornaram críveis graças à analogia com a ficção cinematográfica. Hoje a TV faz esse papel – como Bolsonaro foi promovido como um mito tosco em programas de humor como Pânico na TV e CQC para depois virar um personagem ficcional que invadiu a “ilusão consensual” da realidade política.

Massificação e viralização

A partir desse ponto, passamos a manhã de sábado tentando compreender a grande novidade que a guerra híbrida trouxe para a comunicação e a política: a passagem das estratégias de massificação para as dinâmicas de viralização. 
Muitos analistas ainda tomam como idênticos esses dois conceitos, como fossem regidos pelos mesmos princípios da psicologia de massas. Mas são muito diferentes, principalmente quando o workshop apresentou como a tecnologia algorítmica em Inteligência Artificial utilizado pela Cambridge Analytica e o fundo de hedge Renaissance Technologies de Robert Mercer foi decisiva para a vitória de Donald Trump e Bolsonaro – a aplicação dos algorítmicos probabilísticos da área financeira aplicada na mineração e análise de dados para comunicação política estratégica.
Enquanto a massificação implica em panfletagem, doutrinação ou disparo de discursos de forma indiscriminada para a sociedade como um todo, a viralização significa modular o discurso para perfis específicos que, sabe-se, irá compartilhar para sua rede de relações. 
Na realidade, influenciadores ou líderes de opinião já eram conhecidos desde as pesquisas empíricas de recepção de Paul Lazarsfeld nos anos 1930-40 nos EUA. A diferença é que na atualidade a tecnologia de mineração de dados potencializou essa estratégia. 


Métodos dedutivo e indutivo na política

Isso significa que no espectro político há duas maneiras bem distintas de atuação política na comunicação: enquanto a esquerda se orienta por um método dedutivo (parte de valores éticos e morais universais para tentar transformar a realidade – do universal ao particular) a direita é indutiva -  do particular para o universal, da manipulação das percepções e sensações para depois criar uma narrativa política geral.
Enquanto a esquerda se escandaliza ao ver a sociedade ir contra os valores kantianos universais de dignidade, cidadania e liberdade e tenta conscientizar as massas dessa realidade, a direita induz percepções (signos da realidade) para depois criar narrativas “universais” – conspirações comunistas, LGBTs, midiáticas etc. Não à toa que a direita se apropriou da imagem antissistema ou revolucionária que sempre esteve do lado da esquerda.
Por isso, somos capazes de ver o “filósofo” Olavo de Carvalho (guru da “alt-right” tupiniquim) usar o mesmo discurso da esquerda, mas com sinais trocados – por exemplo, denunciar o “autoritarismo dos meios de comunicação” que quer impor o “politicamente correto”, a “ditadura gay”, o “petismo”... 

O que fazer?

A partir desse ponto, o “o que fazer” tomou conta dos debates: como se contrapor ao tripé semiótico no qual se baseia a tática de guerra semiótica da direita? – apropriação (do discurso antissistema, dos símbolos nacionais com a técnica semiótica da iconificação etc.), provocação (formas de comunicação indireta para falar com a maioria silenciosa e não com o interlocutor) e polarização (usar o discurso beligerante para travar qualquer debate público racional).
Discutimos desde a necessidade de modelagem o discurso (direcionar mensagens para perfis ou líderes de opinião para conseguir efeitos virais – o que implicaria entrar na área do “ativismo cibernético”).

E também as polêmicas, por assim dizer, “baterias anti-áereas” contra as bombas semióticas da grande mídia: as táticas de guerrilhas anti-mídia – pegadinhas (“media prank”) e trolagens (“culture jamming”) com o objetivo sistemático de desmoralizar a mídia corporativa.
Principalmente quando sabemos que a mídia clássica ainda tem um importante papel, mesmo com o crescimento das mídias de convergência (smartphones, tablets etc.). Hoje a grande mídia tem um papel de agendamento da pauta e não mais de doutrinação ideológica, como no passado. Daí a importância da existência de uma sistemática ação de guerrilha midiática.
Nesse sentido, a recente trolagem criada pelo ator José de Abreu (se autoproclamando presidente do Brasil, da mesma maneira como a mídia auto empossou Juan Guaidó como presidente da Venezuela) é uma bomba semiótica perfeita. Um exemplo que a esquerda poderia replicar.


Respostas a questões levantadas nos debates no workshop:

(1) Teremos que fatalmente nos apropriarmos dessas armas (elas demandam conhecimento, grana, operadores especializadíssimos e, fundamentalmente, a Munição da Indução, a qual, a ética não tem lá tanta relevância) ou se, descobrindo e construindo Baterias Antiaéreas seria suficiente para resistirmos com danos menores?
Resposta: A direita de hoje possui o mesmo modus operandi do século XX. Se lá o nazifascismo utilizou-se das tecnologias de ponta da época, rádio e cinema, hoje se apropria da inteligência artificial que rendeu milhões para Robert Mercer no mercado financeiro – algoritmos probabilísticos que preveem tendência de ações e títulos. E agora preveem escolhas ideológicas e partidárias de determinados perfis. De alguma maneira, em algum momento, a esquerda terá que se tornar interdisciplinar: sair do campo familiar das ciências humanas e se enveredar pelo ativismo digital no campo das chamadas “ciências exatas”. 
Isso nos leva à questão ética: teremos que usar o mesmo condenável modus operandi de indução da direita? Essa é uma questão que esse humilde blogueiro não tem ainda uma resposta pronta, mas também em algum momento a esquerda terá que lutar no mesmo campo simbólico da direita. A esquerda terá que descer no abismo para encontrar a si mesma.
(2) O que explica que mesmo com o uso dessa arma poderosíssima já em ação em toda a campanha, caso não fosse impedido de disputar a eleição, Lula venceria já no primeiro turno, como indicavam todas as pesquisas a menos de um mês para a eleição?
Resposta: Isso talvez seja relativo. Como demonstrou uma reportagem do insuspeito jornal “El País” sobre os motivos que levaram João Doria Jr a ganhar votos na periferia de São Paulo, para muitos a leitura sobre Lula era meritocrática – um metalúrgico que chegou à presidência pelas vias do mérito e do trabalho, aquele que “começou de baixo”... assim como Doria Jr que chegou à prefeitura de SP... (leia “A metamorfose do eleitor petista da periferia que decidiu votar em Doria” – clique aqui). A promoção “Sebastiana” do mito Lula (como o “salvador” e “conciliador”) pode chegar a essas interpretações bizarras.
(3) Será que para termos uma perspectiva de sucesso à nossa Resistência e consequentes avanços, não é  necessário  juntarmos o aprendizado em identificarmos os disparos desses Mísseis poderosos, aprendermos a operar as Baterias Antiaéreas e, ao mesmo tempo, treinarmos nossas tropas nos quartéis de "média patente" através do resgate de Programas de Formação de Formadores? Programas já desenvolvidos há tempos atrás, com sucesso, pelas Centrais Sindicais nos Sindicatos e CPCs (Centros Populares de Cultura) nas Universidades e comunidades periféricas?
Resposta: Pergunta que faz a gente voltar à primeira questão acima: a partir do ponto em que chegamos, é urgente repensar a formação e formas de atuação política. Na verdade, desde a vitória do nazismo na Alemanha, a esquerda se tornou o cachorro-que-caiu-do-caminhão-de-mudança. Se mal compreendeu o papel do rádio e do cinema naquele contexto entre guerras, o que dirá diante das tecnologias de convergência atuais? Como disse, é necessária uma formação interdisciplinar na atuação política – Ciências da Computação e Comunicação combinadas com a Ciência Política. E muito bom humor, ironia e sagacidade com as “baterias antiaéreas” das pegadinhas e trolagens contra-midiática.
(4) Minha questão que eu gostaria que ele comentasse é a relação da semiótica no Teatro Imagem de Augusto Boal.  Lembro que uma frase que sempre repetimos nas oficinas de Teatro Imagem é que " a imagem é real enquanto imagem".
Resposta: Com o Teatro do Oprimido, Boal focava as linguagens não verbais: pensar com as imagens, sem o uso das palavras, usando o próprio corpo do ator e objetos como forma máxima de expressão. Com isso, Boal queria expandir as possibilidades de expressão do oprimido – imaginação, percepção, relacionamento etc. 
De fato, uma analogia perfeita para a expansão das táticas de ação política em torno da comunicação: não ficar apenas no campo do discurso verbal e de conscientização (método dedutivo) e se aventurar pelo campo semiótico da percepção, da iconificação e da apropriação imaginativa de todo signo, principalmente daqueles produzidos pela própria grande mídia no sentido de invertê-la.
De novo, a trolagem do ator José de Abreu: ridicularizar a autoproclamada posse de Juan Guaidó, tão levada a sério pelo jornalismo corporativo.
A todos os organizadores e participantes do workshop meu sinceros agradecimentos pela oportunidade e contribuições com novas ideias que todos trouxeram ao debate!





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