quinta-feira, dezembro 13, 2018

Satanás é o último dos humanistas em "Últimos Dias no Deserto"


A maior história AstroGnóstica de todos os tempos. De “Jesus Cristo Superstar” a “A Última Tentação de Cristo”, Jesus já foi humanizado de todas as maneiras: dúvidas, tentações, medos etc. Mas nada igual ao despretensioso filme “Ultimos Dias no Deserto” (2015) de Rodrigo Garcia. Nos 40 dias que Jesus passou no deserto orando, jejuando e pedido orientação do seu Pai, a única voz que ouviu foi a de Satanás. Logicamente, o demônio no início vai explorar as fraquezas de uma divindade prisioneira em um corpo humano. Mas Satanás fará (e se revelará) muito mais do que isso. Enquanto Jesus tenta minimizar os conflitos da relação pai e filho de uma família que lhe deu água e abrigo, Satanás mostrará que está sempre um passo à frente. Como se antecipasse todos os pequenos detalhes de uma história que parece já conhecer de antemão. Como se a Criação fosse uma repetição na qual, curioso, Satanás tenta entender o propósito de tudo. Olhando pelo ponto de vista da humanidade prisioneira em uma repetição cósmica. Seria Satanás o último dos humanistas em “Últimos Dias no Deserto”? Filme sugerido pelo nosso leitor Matheus de Alcântara.

A Paixão de Cristo é certamente a maior narrativa AstroGnóstica de todos os tempos - um protagonista que não pertence a esse mundo sofre as consequências das mazelas da sociedade humana, desejando retornar ao seu lar fora desse planeta. Inspiradora de todos filmes derivados desse plot como O Homem Que Caiu na Terra, ET O Extraterrestre ou Starman – O Homem das Estrelas – sobre outras categorias de filmes gnósticos clique aqui.
O porquê de Deus ter enviado seu Filho para esse mundo, explicado pelos quatro evangelhos canônicos da Bíblia Sagrada, é bem fatalista: seu propósito foi, desde o início, o de ser torturado, sofrer as dores da carne e morrer pelas mãos do homem para nos redimir dos pecados – com Seu exemplo, ensinar o valor da compaixão, perdão e amor ao próximo.
Clássicos como Jesus Cristo Superstar (1973) ou A Última Tentação de Cristo (1988) procuraram humanizar a figura divina: suas dúvidas, tentações em um mundo físico, fragilidades, contradições e o peso em assumir a missão de salvar a humanidade.
Mas poucos filmes sobre Jesus Cristo chegam perto da despretensiosa produção Últimos Dias no Deserto (Last Days in The Desert, 2015), do diretor Rodrigo Garcia. Uma parábola religiosa silenciosamente ousada numa rebelião discreta contra as epopéias bíblicas – sem discussões teológicas ou morais, o filme narra os 40 dias que Jesus passou no deserto orando, jejuando e pedindo orientação do seu Pai – sem sucesso.
 A única voz que ouve vem de Satanás que regularmente se materializa ao seu lado como fosse um gêmeo espelho, exceto pelo brinco pendurado na orelha esquerda.


De cara, o filme recebeu a crítica de apresentar um Jesus de olhos azuis interpretado pelo escocês Ewan McGregor. Por que não um ator descendente do Oriente Médio? Garcia preferiu escalar um rosto familiar (cuja presença espiritual nos faz lembrar uma versão de Obi-Wan Kenobi de Guerra nas Estrelas) para atrair tanto crentes quanto não-crentes.
Isso porque a discussão que o filme propõe é outra e talvez inédita, olhando em perspectiva os filmes sobre Jesus, religiosos ou não. Satanás é muito mais do que um demônio que não sai da cola de Jesus para tentar corrompê-lo – ele é um personagem com um grau de sabedoria e mais conhecimento de primeira mão sobre o Pai do que o próprio Jesus.

Satanás rouba a cena

De muitas maneiras, em Últimos Dias no Deserto Satanás rouba a cena, assim como no filme Noé (2014) de Aronofsky, numa releitura gnóstica e cabalista - a serpente sempre teve razão, ela representa o verdadeiro divino e as alegações do “Criador” são falsas por tentar esconder a própria divindade humana.
Na proposta de Rodrigo Garcia, Satanás não tenta Jesus pelo pecado, luxúria, pontos fracos de caráter ou covardia diante de uma pesada missão. Simplesmente Satanás tenta com o conhecimento – ele é um anjo muito mais velho e que acompanha o Pai de Jesus desde o início dos tempos. Satanás tenta compreender o propósito da Criação, observando tudo pelo ponto dos homens, na Terra. Por isso, ele está sempre um passo na frente de Jesus. E talvez saiba algo a mais sobre o Pai que nem o próprio filho conhece.


O Filme

Últimos Dias no Deserto abre com uma espetacular fotografia e cinematografia do deserto, filmado no deserto de Anza-Borrego na Califórnia. Acompanhamos o Messias, cansado, fraco, sedento e solitário. Nada tão notável. Ele está desorientado e parece ter perdido o caminho para Jerusalém.
Percebemos que ele tem uma grande capacidade de bondade, carinho e abnegação. Com exceção de um breve momento no filme em que vemos Jesus levitando acima do solo, de resto vemos apenas um ser humano excepcional. Ao longo da narrativa, não ouvimos de Jesus (ou “Yeshua”, referido no filme em hebreu) frases bíblicas de sabedoria. Mas apenas dois conselhos: “Ame a Deus sobre todas as coisas” e “Ame a Vida”.
Yeshua se depara com uma família composta pelo enérgico patriarca (Ciaran Hinds), sua esposa muito doente (a atriz israelense Ayelet Zurer) e o filho adolescente (Tye Sheridan). Um garoto cansado daquela vida no deserto, cujo sonho é morar em Jerusalém e ganhar sua própria vida.
Yeshua é acolhido pela família, dando-lhe água e abrigo. Logo, Ele compreenderá a tensão vivida entre o patriarca e o filho que busca independência. E se transformará em uma espécie de conselheiro familiar, tentando minimizar a crescente tensão entre pai e filho.
Claramente, o Rodrigo Garcia procura fazer uma analogia entre a relação cósmica Deus/Jesus com aquela vivida entre o patriarca e seu rebelde filho adolescente. O pai está determinado a manter seu clã naquele local isolado pelo resto de suas vidas, enquanto a saúde de sua esposa diminui. Yeshua, que percebe que o conflito diante dele reflete suas próprias preocupações sobre seu pai. Faz o que pode para aliviar os encargos da família, carregando água de um córrego e auxiliando o pai nos seus trabalhos. A presença do adolescente permite até algum alívio cômico. 


Mas quando surge uma situação que colocará a vontade do pai contra a do filho, um resultado trágico é quase certo.

Por que Satanás está sempre um passo à frente? – Alerta de Spoilers

No início, a tática de Satanás é bem previsível: ele insulta, demonstra desprezo e superioridade, e tenta plantar dúvidas na mente de Jesus quando diz que Ele não é o único filho e que Deus ama apenas a si mesmo.
Mas, a melhor linha de diálogo está com Satanás: “Sou um mentiroso, e isso é verdade!”. Uma frase que abre um (desculpe o trocadilho) infernal paradoxo para Jesus: se Satanás é mentiroso, isso também que ele afirma é uma mentira... Ora, então Satanás está dizendo a verdade! Mas não pode dizer a verdade, se é um mentiroso... Esse é o próprio “Paradoxo de Epimênedes” (600 a.C.) que tanta dor de cabeça deu para lógicos como Tarski e Gödel.
A partir desse ponto de inflexão, Satanás mostra o porquê de estar sempre um passo à frente de Jesus: isso porque, assim como Deus, ele existe desde o início dos tempos. Como a curiosidade é o seu ponto fraco, ele tenta entender qual o propósito divino da Criação. Diz para Jesus que pretende esperar até o fim... para tudo recomeçar de novo.
“Ele vai querer começar tudo de novo... desde o princípio... já o fez antes: recriar tudo, recontar tudo. Por um capricho!”. Então, o oponente de Jesus revela a ontologia gnóstica da Criação de Deus, convertido agora em um caprichoso, manipulador e autoindulgente Demiurgo. Os mundos se repetem em sucessivas criações nas quais as mesmas histórias são revividas, com pequenas diferenças entre esses mundos sucessivos.


Diante dos olhos de Jesus, Satanás apresenta a história alternativa daquela família no deserto, numa outra realidades na qual Jesus não os conheceu, e com um trágico desfecho. Ele é capaz de vislumbrar os diferentes futuros alternativos e sabe como tudo termina. Menos para as “pequenas coisas” que Jesus faz, como se refere Satanás.
Ao lado dos homens, Satanás testemunhou por milhares de anos a Criação, destruição e repetição de uma mesma narrativa, com caprichosas pequenas alterações em cada ciclo, mas que sempre levam para o mesmo desfecho: a repetição.
Nesse sentido, as linhas de diálogo do demônio lembram bastante o monólogo final de Al Pacino no filme O Advogado do Diabo (1997), quando interpreta o Diabo-advogado Milton, e que descreve Deus como um Demiurgo sádico que se deleita com os desafios, sofrimento e o inevitável fracasso humano. Mas em Últimos Dias no Deserto é muito pior: Deus já sabe o final, pois repete a mesma História ad nauseum, com apenas algumas pequenas e caprichosas mudanças.
Se como falava o escritor Stephen King “o Inferno é a repetição”, a Criação seria a versão mais perfeita do Inferno. E Satanás, curioso, tenta compreender qual o propósito de Deus nesse ciclo vicioso infinito. Quantas vezes será que Satanás tentou Jesus nesses em cada ciclo cósmicos de Criação/Destruição? Será que Satanás está à espera de que, finalmente, uma das pequenas mudanças seja a consciência de que o Pai é um Demiurgo sádico? Isso quebraria a prisão recursiva que é a Criação, libertando a humanidade?
Então, para o filme Últimos Dias no Deserto, Satanás é o último dos humanistas. 


Ficha Técnica 

Título:  Últimos Dias no Deserto
Diretor: Rodrigo Garcia
Roteiro:  Rodrigo Garcia
Elenco:  Ewan McGregor, Ciarán Hinds, Tye Sheridan, Ayelet Zurer
Produção: Mockingbird Pictures, Division Films
Distribuição: GEM Entertainment
Ano: 2015
País: EUA

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