sábado, fevereiro 24, 2018

A canastrice como fator subliminar na política


Temer, Rodrigo Maia, Dória Jr., Lula, FHC, Mário Covas. O que esses políticos têm em comum com as evoluções e regressões da teledramaturgia, principalmente da Globo, que moldou o imaginário coletivo brasileiro? Partindo da premissa de que por décadas a percepção do brasileiro médio foi moldada pela teledramaturgia, será que a performance dos políticos refletiria as mudanças das técnicas de atuação dos atores nas novelas? Ou em outros termos: será que a verossimilhança e a credibilidade dos discursos e performances que levaram esses políticos à cena pública é tirada do realismo ou do melodrama da linguagem das telenovelas? A canastrice entra em cena na política e torna-se um fenômeno pouco discutido pela ciência política ou propaganda. Um elemento subliminar: até que ponto políticos canastrões, caricaturas de caricaturas, ganham força não por ideologias ou virtudes, mas pela semelhança com a canastrice original do cinema e TV?

Hitler e Mussolini emulavam o cinema mudo; Jânio Quadros fazia uma espécie de paródia dos trejeitos dos filmes do francês Jacques Tati; e o presidente Collor de Mello em 1990 era uma espécie de versão tropical do yuppie do mercado financeiro Gordon Gekko, protagonista do filme Wall Street (1987).

Como cópias de outras cópias, eram performances exageradas, caricaturas da caricatura, overacting. Em síntese, canastrice. Mas apesar de tudo isso, foram personagens políticos que mobilizaram a opinião pública, lideraram movimentos políticos e seduziram eleitores.

Como explicar que personagens de atuações tão vazias e caricatas, que racionalmente pensando, não conseguiriam transmitir qualquer credibilidade a qualquer discurso, conseguiram conquistar corações e mentes?

Toda a cena política parece ser mal produzida e esteticamente brega, com deputados e senadores tão críveis como um vendedor de carros usados com seus ternos de cortes retos, peitos empolados como um apresentador Silvio Santos ou Raul Gil. Além das demonstrações kitschs de poder como o inacreditável vídeo da quase ministra Cristiane Brasil ao lado de empresários fortões no convés de um iate – cristalizando uma certa concepção de riqueza glamorosa de telenovelas.

O poder da canastrice é uma noção que deveria ser levada mais a sério pela ciência política. Walter Benjamin afirmava que a estetização da política era a principal estratégia do fascismo: tanto os astros como os ditadores se dirigiram às massas a partir e através do cinema. 

Hitler, Mussolini e Jânio Quadros emulando o humor histriônico do cinema mudo e o comediante Jacques Tati

“A humanidade preparou-se séculos para Victor Mature e Mickey Rooney”, disse certa vez, cinicamente, Theodor Adorno sobre o poder hipnótico dos atores canastrões. Astros do cinema mudo como Chaplin, Max Linder, O Gordo e o Magro e os Keystone Cops prepararam o terreno para as performances caricatas dos ditadores do século XX. 

Exatamente nesse ponto reside a canastrice na política: certamente Hitler e Mussolini se inspiraram nas gags visuais dos gênios do cinema mudo. Mais tarde, de forma overacting, exagerada, kitsch e artificial (características da canastrice) trouxeram para a realidade o que viram nas telas. E com trágicas consequências que foram bem além do entretenimento.

Credibilidade e verossimilhança


Se na propaganda política não existe a verdade, mas a credibilidade, certamente esta não é criada pela virtude ou idealismo do líder político. Mas pela sua verossimilhança: a forma como sua performance, fotogenia e composição visual remetem à fotogenia ou telegenia das primeiras representações da realidade feitas pelo cinema e TV.

Certamente no caso brasileiro, marcado pelo monopólio televisivo cujo veículo é praticamente a única mídia através da qual a população busca algum tipo de informação e entretenimento, as telenovelas sempre funcionaram como uma espécie de horizonte da percepção e verossimilhança.

Ao lado de programas de auditório com seus apresentadores folclóricos, tornaram-se modelos não só para corações e mentes. Mas também para a própria percepção: olhar para a realidade e percebê-la a partir de referências anteriormente feitas dela pelo cinema e TV. O que é verossímil, e, portanto, “real”, é aquilo que remete aos estereótipos midiáticos.


Canastrice na hiper-realidade


A canastrice na política é tributária da hiper-realidade: a maneira pela qual personagens do mundo cotidiano (do CEO ou executivo de uma empresa a políticos, presidentes e ministros) se refletem a ficção midiática. E eleitores e opinião pública, acostumados com os simulacros televisivos e fílmicos, os veem como verossímeis e críveis... por serem iguais a personagens da ficção.

Então, como entender a fauna humana que ocupa o atual Congresso e a camarilha que ocupa o Executivo? Para além da questão do golpe político e da implementação a toque de caixa da amarga receita neoliberal das reformas, como foi possível tais personagens construírem uma carreira política e terem se tornado homens públicos? Alguns por muitas décadas.

Hipótese desconcertante: partindo da premissa de que por décadas a percepção do brasileiro médio foi moldada pela teledramaturgia da maior rede de TV do País, a Globo, a performance dos políticos refletiria as mudanças das técnicas cênicas de atuação dos atores nas novelas.

Realismo e melodrama da TV na política


A emergência de um conjunto de políticos como Lula, FHC, Mário Covas, de um lado, e do outro um grupo de indivíduos como Temer, Jucá e congêneres, por exemplo, representariam o contraste entre duas formas de atuação na história da teledramaturgia brasileira: o realismo versus melodrama.

Versão canastrona de um meme é prefeito de São Paulo?

Dos políticos populistas da era Vargas até os presidentes generais e ministros tecnocratas da ditadura militar, todos refletiram o antigo imaginário das radionovelas e a impostação de voz radiofônica.

“Que os ricos sejam mais ricos para, por sua vez, os pobres sejam menos pobres”, dizia um general no célebre documentário “Brasil: Muito Além do Cidadão Kane” (clique aqui). Declaração absurda, mas tornada verossímil pela locução em estilo radiofônico. Foi uma época marcada pelas velhas fórmulas dos melodramas de rádio cubanos e mexicanos que influenciou o início das telenovelas brasileiras nos anos 1950-60.

Lula e a safra de políticos da sua geração como FHC e Mário Covas são políticos de um período no qual as telenovelas moldaram o imaginário dos brasileiros com uma teledramaturgia mais realista, mais próxima da crônica do que do velho melodrama – anti-heróis, pobres que sobem na vida, o infiel, o mulherengo etc. Modernização cujo ponto de partida foi a novela Beto Rockfeller da TV Tupi em 1968.

Lula, FHC e Mário Covas: safra de políticos que refletem a nova teledramaturgia realista

Mário Covas, espontâneo, mal humorado, explosivo e ranzinza; Lula, o metalúrgico de voz áspera e grave cuja leitura pelas massas foi de alguém que subiu na vida como uma espécie de, por assim dizer, “meritocracia de esquerda” – pelo menos foi essa leitura que a periferia de São Paulo fez de Lula ao votar em João Doria Jr que emulou na campanha o trabalhador que subiu na vida (clique aqui); e FHC, o estereótipo de intelectual para classes médias, péssima dicção e uma espécie de Professor Girafales do humor mais realista da série mexicana Chaves – o papel que FHC desempenhou por dois mandatos como o sociólogo que chegou à presidência, cortejando intelectuais pelo mundo como Manuel Castells e Bruno Latour, foi impagável...

Globo manda realismo às favas


Sincronicamente, no momento em que a Globo manda às favas o realismo tele-dramatúrgico de três décadas retornando ao melodrama com atores em atuações carregadas (estratégia desesperada para tentar recuperar audiências aproximando-se da linguagem das séries Netflix), chega a camarilha do desinterino Michel Temer ao poder.

Globo: de volta ao melodrama. Sincronismo com a canastrice política da camarilha Temer?

Performances exageradamente estudadas, autoconscientes, peitos empolados ao melhor estilo dos apresentadores de auditório, ternos de corte reto e muito ajustados ao corpo, queixos levantados e lábios apertados em movimento circunflexo e outros truques baratos de curso de oratória – mãos abertas levadas à altura da barriga para enfatizar uma suposta sinceridade, lábios estalando para criar pausas enfáticas... Aaaarghh!

Talvez nessa trupe golpista a performance mais autêntica e tributária ao realismo tele-dramatúrgico dos bons tempos das telenovelas globais seja a do presidente da Câmera dos Deputados Rodrigo Maia: olhar perdido e cara de sonso, um tique de maneio com a cabeça como se o colarinho ou a gravata estivessem permanentemente apertados e mãos que nunca sabem onde ficar. Uma performance que lembra o Dirceu Borboleta (Emiliano Queiroz), inesquecível personagem de O Bem Amado (1973) de Dias Gomes – o típico anti-herói das crônicas.

Para a Ciência Política, o poder sempre foi um espaço teatral de representações e dissimulações. Mas agora a Política está no campo da simulação: sua credibilidade e verossimilhança está na semelhança com personagens do mundo da teledramaturgia. E como caricatura de outra caricatura, sua força não está mais em ideologias ou na propaganda: está na canastrice como fator subliminar de inversão entre ficção e realidade.

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