Uma fábula romântica ao estilo a Bela e a
Fera? Um libelo contra o racismo, a intolerância e a demonização do outro em
plena Era Trump? “A Forma da Água” (“The Shape of Water”, 2017) de Guillermo
Del Toro, com 13 indicações ao Oscar, é tudo isso, mas vai muito além da
estória de amor e de uma metáfora do contexto político atual. O “monstro”, um
homem anfíbio capturado na Amazônia para servir de cobaia em um complexo
científico-militar no auge da Guerra Fria, é o espelho da incomunicabilidade
humana. Cada personagem vê na criatura o reflexo do seu drama interior –
solidão, racismo, obsolescência etc. Preso nessa matrix de signos, o homem não
consegue ver aquilo que está lá fora – outros seres que vivem em toda a sua
especificidade e dignidade.
Embora
cercado por diferentes formas de vida, tanto na Terra como no Universo (os diversos
mundos, dimensões e formas de vida que fogem a nossa própria noção de
“inteligência” ou “propósito”) o homem insiste em se considerar só. E até criou um
Deus para se imaginar à imagem e semelhança dele. E ansioso, sai à procura de
vidas que também tenham a imagem e semelhança humana.
Frustrado,
transforma os outros seres e planetas em espelhos das suas próprias projeções
psíquicas – carências, desejos, sonhos, medos etc. Do cãozinho doméstico às
planícies de Marte, enxergamos neles o que queremos: o cãozinho é humanizado
pelo dono com diferentes penduricalhos de pet shop; enquanto nas planícies
marcianas enxergamos ruínas de templos e estátuas de alguma civilização
“inteligente” que se extinguiu.
Assim
como a civilização humana, que, imaginamos, poderá um dia desaparecer assim como teria acontecido com uma suposta civilização marciana. Na solidão e indiferença do Universo.
Muitos
críticos definem o filme A Forma da Água
(The Shape of Water, 2017) de
Guillermo Del Toro (liderando a corrida ao Oscar, com 13 indicações) como uma
estória de amor ao estilo A Bela e a Fera.
Ou, para as críticas mais politizadas e combativas contra a Era Donald Trump,
uma estória sobre racismo, intolerância e demonização do outro – a
insensibilidade de negar dignidade a criaturas vivas. Assim como Trump faz com
os imigrantes.
O filme
fala de tudo isso, mas o tema mais profundo de Del Toro é a solidão que parece
definir a condição humana. Lembrando o filme de James Whayle de 1935, A Noiva de Frankenstein quando o monstro
fala tristemente: “Sozinho: ruim; amigo: bom”.
O Sonho Americano
Ambientado
em 1962, no auge da tensão da Guerra Fria e início da corrida espacial, A Forma da Água é um filme sobre
monstros de todos os tipos: além da criatura prisioneira numa instalação
militar (uma homenagem ao clássico de terror B O Monstro da Lagoa Negra, 1954, principalmente na sequência
final), comunistas, negros, mulheres e todos formas de demonização do outro
inventadas pelo “sonho americano” de uma sociedade de consumo que naquele
momento crescia – o marido proprietário de um Cadillac; e a dona de casa feliz,
subserviente ao marido e cercada por modernos eletrodomésticos e filhos com os
brinquedos mais caros.
Tudo
gira em torno do monstro não apenas por uma questão narrativa: a criatura
funciona como um espelho no qual cada personagem projeta e vê nele sua própria
solidão. Na Amazônia, o monstro era tido como Deus pelos nativos. Capturado e
levado para o centro da Guerra Fria (e da demonização política do outro) ele
vira amante, aberração, cobaia na corrida espacial, cabeça de gado que precisa
ser marcado etc.
Em
muitos aspectos, A Forma da Água
lembra o tema de Aventuras de Pi
(2012) – coincidentemente tendo o elemento água como condutor da narrativa: o
protagonista Pi descobre na solidão do oceano que o Universo é apenas o espelho
dos nossos desejos e anseios – o tigre, o mar e o céu, seus únicos companheiros
em um bote perdido em algum lugar do Pacífico – sobre o filme clique aqui.
E não é
mera coincidência. Afinal, a água pode ter qualquer forma que desejarmos.
O Filme
A
narrativa acompanha a “princesa sem voz”, Elisa (Sally Hawkins), uma jovem muda
que junto com sua amiga negra Zelda (Octavia Spencer) trabalham como
funcionarias da limpeza nos túneis subterrâneos de um complexo
científico-militar destinado a pesquisas espaciais – especificamente sobre as
possibilidades da sobrevivência humana nas condições adversas do espaço.
O chefe
da segurança chamado Strickland (Michael Shannon) é um racista, psicótico e
misógino cuja vida é guiada pela realização do sonho americano: ter um
Cadillac, ter uma casa de subúrbio com uma esposa subserviente e que fique muda
quando façam sexo.
Sentindo-se
só em sua rotina diária (toda manhã masturba-se na banheira, liga um
temporizador para o ovo cozido ficar no ponto e não se atrasar para o
trabalho), Elisa divide o apartamento com um velho desenhista (Giles – Richard
Jenkins) que já teve seus bons tempos como ilustrador em agências de
publicidade – agora, vê o seu trabalho desaparecer com o domínio das
fotografias sobre as ilustrações publicitárias.
Em meio
à paranoia com espionagem russa, chega ao complexo militar uma criatura
capturada na Amazônia e que poderá ser uma preciosa cobaia em viagens
espaciais, assim como foi a cadela Laika para os russos: um homem anfíbio,
acorrentado em um tanque e ocasionalmente torturado por Strickland – ele
simplesmente não se conforma em existir um “monstro” que não seja à imagem e
semelhança de Deus.
E ao
longo do filme, vamos percebendo que ele trata de forma análoga tanto mulheres
quanto negros.
Enquanto
isso, Elisa é atraída pela criatura e começa uma campanha secreta para ganhar
sua confiança: oferece seus ovos cozidos, ensina-lhe a linguagem dos sinais,
além de levar um toca discos portátil para tocar discos de Benny Goodman. Elisa
está apaixonada pelo monstro, por ver nele uma criatura tão solitária e
incomunicável como ela. E prisioneiro no complexo militar, assim como ela na
sua rotina do emprego.
Comunicação e simbologia das cores
Duas
coisas chamam a atenção em A Forma da
Água: primeiro, as sequências das primeiras tentativas de comunicação e
posterior namoro entre o “monstro” e Elisa. Entre as melhores do cinema,
lembrando o filme The Black Stallion
(1979) quando o menino náufrago tenta domar um cavalo selvagem, quando as
crianças tentam se comunicar com o ET no filme clássico de 1982 ou as
sequências de comunicabilidade e namoro de uma viúva com um alienígena
recém-chegado à Terra em Starman
(1984).
E
segundo, a importância simbólica das cores, lembrando o magistral trabalho de
Gary Ross em A Vida em Preto e Branco
(Pleasantville, 1998). Em diferentes
contextos no filme fala-se que o verde é “o futuro” – o mundo subaquático de
onde veio a criatura, os tons de cores do apartamento de Elisa são verdes.
Contrastando com o mundo amarelo em tons pastéis da casa de subúrbio do sonho
americano de Strickland.
Uma
impecável exploração do simbolismo e psicologia das cores: na simbologia
cromática o amarelo é a cor mais contraditória – é a cor do otimismo, mas ao
mesmo tempo é a cor da inveja, mentira e traição. O enxofre, associado ao
demônio, é amarelo.
Enquanto
o verde é a cor da esperança, fertilidade, da esperança e da toterância – leia
HELLER, Eva, A Psicologia das Cores,
Editora GG BR, 2013.
O drama semiótico humano
Mas o
núcleo da narrativa é a representação do verdadeiro drama semiótico humano que
cria a solidão em um Universo que explode de vida: a persistência humana em
signalizar tudo o que vê e sente, transformando tudo em espelho das próprias
representações interiores.
Strickland
vê na criatura um “monstro” – para ele tudo aquilo que representa russos, comunistas, mulheres, negros
etc. Os cientistas veem nele apenas uma cobaia sem dignidade, pronta para ser
dissecada. Elisa projeta na criatura sua própria solidão e imagina o ser
anfíbio dançando com ela em números musicais românticos do cinema (seu
apartamento está em um prédio cujo andar térreo é uma sala de cinema). O desenhista
desempregado Giles vê na criatura seu próprio drama de obsolescência.
E os próprios indígenas na Amazônia o representavam
como um Deus.
Preso
nessa matrix de signos, o homem não consegue ver aquilo que está lá fora –
aquilo que vive em toda a sua dignidade e especificidade.
Por
isso, ao lado do homem anfíbio, Elisa é o centro da narrativa - a “princesa sem
voz”. É a metáfora dessa incomunicabilidade humana, paradoxalmente cercado por
inúmeras formas de comunicação como o cinema.
Ficha Técnica
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Título: A Forma
da Água
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Diretor: Guillermo del
Toro
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Roteiro: Guillermo
del Toro, Vanessa Taylor
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Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Richard
Jenkins, Octavia Spencer
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Produção: Bull Productions, Fox Searchlight Pictures
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Distribuição: 20th
Century Fox
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Ano: 2017
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País: EUA
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