sexta-feira, setembro 08, 2017

Cinco evidências de que Bitcoin é uma religião


Criada em 2009, Bitcoin é uma moeda digital controlada por uma rede peer-to-peer sem depender de bancos centrais e com um mercado de bilhões de dólares. Bitcoin parece ser movido por um ímpeto anarquista porque seus seguidores odeiam governos e autoridades financeiras. Mas suas ações são espirituais, lembrando uma religião com um Criador, messias profetas, confirmando a tendência humana de perceber no dinheiro e valor atributos inerentemente mágicos e místicos. E como toda religião, tem a cortina que esconde o Mágico de Oz: o “fetichismo da mercadoria”, tal como diagnosticou Karl Marx no século XIX sobre o velho Capitalismo, a cortina que esconde a reprodução da desigualdade. O “Cinegnose” lista cinco evidências de que o Bitcoin é mais uma religião, porém mais “cool” do que a Teologia da Prosperidade das igrejas neopentecostais. Porque Deus desceu ao mundo não mais sob a forma de dinheiro, mas agora como Criptografia e Matemática.

Por que uma barra de ouro vale mais do que um cacho de bananas? Se o leitor acha que essa é uma pergunta supérflua porque é “natural” ouro valer mais do que bananas, você está não só confirmando o diagnóstico de um pensador do século XIX como, também, comprovando o porquê da moeda virtual chamada “bitcoin” ser uma verdadeira religião contemporânea.

Fetichismo da mercadoria foi o termo usado pelo pensador alemão Karl Marx (1818-1883) para designar a relação mágica ou religiosa do homem com o dinheiro, valor, e uma série de outras categorias econômicas – capital, mercadoria etc. Para Marx, o homem não esqueceu de Deus: simplesmente transformou-O em relações econômicas.

Da mesma forma que Deus (figura criada pelo homem que ganhou vida própria e dominou seu próprio criador) e a religião encobriam e justificavam economias baseadas na escravidão e sociedades estruturadas em castas, o dinheiro esconde numa relação místico-religiosa a desigualdade da distribuição da riqueza – a “luta de classes”.

Por que ouro vale mais do que bananas? Para Marx porque essas mercadorias refletem a quantidade de trabalho necessária não só para produzi-las, mas também para comprá-las. O que determina as desigualdades sociais – um professor, como esse humilde blogueiro, teria que trabalhar muito mais do que, digamos, um especulador financeiro para adquirir uma barra de ouro. Por isso, devo me contentar com bananas. O trabalho de um professor vale muito menos do que o de um profissional das finanças.


A cortina do Mágico de Oz


Pois é essa relação místico-religiosa com ouro e bananas que esconde, tal qual a cortina que escondia o Mágico de Oz, a reprodução da desigualdade social e relações de poder: se alguém ganha, muitos necessariamente têm que perder.

A atual febre envolvendo a moeda virtual Bitcoin parece atualizar esse velho conceito marxista. Tanto do lado dos críticos como daqueles que a defendem, existe o mesmo clamor religioso: ou a nova moeda seria a confirmação da livro bíblico do Apocalipse a respeito do “caminho que levará à Marca da Besta”; ou a afirmação de não-religiosos de que a Bitcoin seria “quase algo enviado por Deus”.

E nem precisa ser marxista para constatar essa relação religiosa com a moeda virtual. Por exemplo, um estudo clássico da Apple mostra que certas marcas induzem a sensações religiosas reais – na abertura de uma loja da Apple em Londres, funcionários enlouquecem de euforia. Exames de ressonância magnética detectaram que as sinapses disparadas foram equivalentes ao das catarses ou epifanias religiosas – clique aqui.

Bitcoin, e a tecnologia de apoio chamada blockchain, vêm se tornando autênticas varinhas de condão: se acrescentar Bitcoin ao seu empreendimento, instantaneamente seu projeto vai melhorar. Assim como as “minizinhas”, “moderninhas” e “vermelhinhas” (máquinas de crédito e débito) para os recém-desempregados promovidos a “empreendedores”.

Tendo em mente essa natureza fetichista da relação com o dinheiro e o valor, vamos iniciar as cinco evidências de que Bitcoin é a nova religião contemporânea.


1. O milagre da multiplicação


Em um episódio  da animação O Incrível Mundo de Gumball, Darwin e Gumball perguntam para o seu pai, o coelho Ricardo, de onde vem o dinheiro com o qual a família se sustenta. Poderíamos esperar alguma lição moral sobre a nobreza do trabalho do pai aos filhos. Mas Ricardo é mais prático: leva os filhos para um caixa eletrônico bancário e mostra: “a mamãe me dá esse cartão e o dinheiro sai dessa máquina...”.

Essa impagável relação fetichista com o dinheiro (parece ser multiplicado magicamente pela tecnologia) também pode ser encontrada na Bitcoin. Há três maneiras de acrescentar essa moeda à sua carteira virtual: pela chamada “mineração”, comprar unidades em casas de câmbio ou aceitando a criptmoeda ao vender coisas.

A “mineração” é a mais emblemática: simplesmente bitcoins “nascem” desse processo quando usuários “emprestam” a capacidade de suas máquinas para registrar as transações feitas, mantendo o funcionamento descentralizado da moeda, o blockchain. Os “mineradores” (o termos é sintomático) extraem bitcoins do misterioso mundo virtual, assim como mineiros extraem pedras milionárias das profundezas da terra.

 Se na economia a “moeda” é expressão das relações sociais, no mundo virtual é simplesmente “extração” – ninguém ganha ou perde, apenas uns acham bitcoins e outros não.


2. Uma religião individualista e motivacional


Partindo da categorização das religiões propostas pelo antropólogo Anthony Wallace (xamânicas, olímpicas, comunais e eclesiásticas ou monoteístas), a bitcoin é uma típica religião xamânica de sociedade de bandos em economias coletoras – no caso, “mineradoras”. Qualquer um pode ter contato direto com o sobrenatural sagrado.

O xamã seria aquele dotado de maior experiência (e na religião Bitcoin, o criador do sistema blockchain: o misterioso Satoshi Nakamoto, que ninguém sabe sua verdadeira identidade), mas qualquer pessoa pode se tornar um xamã.

A rede Bitcoin é um dos mais avançados sistemas de motivação e incentivo já construídos – todo mundo continua sendo um indivíduo, mas através do blockchain todos contribuem coletivamente para um sistema monetário totalmente independente, sem autoridades monetárias ou câmeras de compensação do mundo real.

Ninguém está a cargo do Blockchain, a não ser a criptografia e a matemática. E como certa vez Einstein declarou, a Matemática é a visão de Deus da própria ciência. É, portanto, espiritualmente considerado um “dinheiro limpo”, sem governo, reserva federal ou pessoas no poder.

E ainda há uma ideia de “sacrifício”, típica das religiões: as bitcoins têm valor por meio da escassez (uma ideia mantida do próprio capitalismo – para uma mercadoria, e o próprio dinheiro, terem valor, é necessária a escassez). Progressivamente a mineração torna-se matematicamente cada vez mais difícil, para evitar obviamente que todos tenham bitcoins.

Acredita-se que Satoshi tenha feito essa “renuncia” pessoal com as primeiras bitcoins, absolvendo a todos os seguidores do pecado da ganância. É um sacrifício para o bem de todos os outros participantes do sistema.


3. Dinheiro versus Religião


Como sabemos, riqueza e religião são mutuamente excludentes. Ao aderir a uma religião, o fiel deve desistir da riqueza. O dinheiro está envolto com os pecados do mundo material, nada a ver com a espiritualidade.

Mas a religião bitcoin resolve esse problema teológico, muito melhor do que a Teologia da Prosperidade das igrejas neopentecostais. A criptomoeda é gerada pela matemática e tecnologia, supostamente sem a presença da mão humana. A própria “encarnação” de Deus na Terra através de códigos fonte.

4. Os sete pecados capitais do sistema bancário


Muitos bitcoiners têm uma forte motivação anarquista contra o governo. Mas tudo vira uma panaceia quando acredita-se que automaticamente o sistema da criptomoeda vai desmantelar o governo por contra própria. Por que? Porque o sistema bancário é materialista e pecaminoso e a única salvação seria um sistema descentralizado e espiritualizado pela matemática e criptografia.

O sistema bancário queima no inferno por meio da Gula (o estereótipo do grande banqueiro barrigudo), da Luxúria (o grande crash financeiro de 2008 e notícias de envolvimento dos nomes dos culpados com redes de prostituição e drogas), do Orgulho (o ataque da MasterCard à rede bitcoin – clique aqui), da Ganância (ganância fracionária por lucros), Inveja (o motor emocional da especulação financeira e lavagem do dinheiro de cartéis de drogas), Ira (governo e sistema financeiro unidos para agir contra a sociedade), Preguiça (o sistema bancário é ineficiente quando comparado com um sistema baseado em matemática e consenso coletivamente distribuído, sem horário definido de funcionamento ou inatividades).

Portanto, bitcoins e blockchains libertariam o homem da tirania financeira e do julgamento e corrupção humanas.

O investidor Roger Ver, também  conhecido como "Bitcoin Jesus"

5. O Criador, Profetas e Messias


Na verdade a religião da Bitcoin reflete uma ideia muito antiga, mais precisamente de Parmênides, um filósofo da Grécia Antiga e fundador da escola eleática para o qual a realidade era monista: tudo seria interligado e imbuído de um valor imóvel, eterno e imutável, sem princípio ou fim, contínua e indivisível.

Richard Seaford acredita que o desenvolvimento do dinheiro cunhado teve uma relação com o desenvolvimento dessa cosmologia filosófica grega na qual os princípios básicos são projeções inconscientes da substância ideal do valor de troca – leia SEAFORD, Richard, Money and the Early Greek Mind: Homer, Philosophy, Tragedy, Cambridge University Press, 2004.

Embora o dinheiro e o valor criem uma relação inerentemente mágica e espiritual, por ser físico não consegue substituir essa “substância ideal do valor de troca”. Criptografia e a Matemática, livres da mão humana por serem a própria linguagem divina, realizam esse ideal monista da Antiguidade.

Como uma nova religião high tech, possui a nebulosa figura do Criador, Satoshi, que teria dito entre suas várias citações repercutidas pelos bitcoiners: “Satoshi disse Haja Luz, e sua criação tornou-se eterna”. Os primeiros investidores e programadores tornaram-se figuras de culto como Roger Ver, também conhecido como “Bitcoin Jesus”. Ou pessoas como Gavin Andresen e Vitalik Buterin, vistos pelos fiéis como sacerdotes ou profetas. Ou até mesmo Messias delegados por Satoshi.

E como toda religião com messias e profetas, há o milagre da ressurreição: seus seguidores confirmam a crença de que a Bitcoin já morreu 156 vezes apenas para ressuscitar novamente e novamente – veja os Bitcoin Obituaries.


Consideração final: a cortina do fetichismo


Em resumo: se o velho sistema financeiro é baseado na fé cega pelas reservas federais e na conversibilidade automática entre moeda e riqueza, também as bitcoins se fundamentam na fé na transferência de valores por um sistema impessoal e divino.

Mas a principal linha de continuidade é a relação fetichista ou mágica com o valor: bitcoins são “extraídas” do céu virtual através da capacidade dos computadores, assim como papéis e títulos brotam nas bolhas da especulação financeira e a Casa da Moeda imprime notas que magicamente ganham valor.

Como sempre, a Bitcoin é mais uma cortina para encobrir os mecanismos sociais da reprodução da desigualdade: porque poucos conseguem comprar uma barra de ouro e muitos têm que se contentar com cachos de bananas?

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