domingo, fevereiro 19, 2017

Curta da Semana: "The Crossing" - os subterrâneos do terror


Uma mulher tenta desesperadamente ligar para seu namorado, sentindo-se culpada por um desentendimento que poderá colocar fim na relação. É tarde da noite, e ela desce as escadarias de uma passagem subterrânea para, lá dentro, encontrar o Mal. Ou a si mesma. Esse é o curta russo “The Crossing” (2016) que explora um dos temas preferidos do terror: os subterrâneos. Porões, metrôs, garagens subterrâneas, tuneis etc., ao mesmo tempo que nos fascinam, também nos apavoram. O medo que pode ser tanto interpretado como um arquétipo gnóstico (a metáfora da condição humana prisioneira nesse mundo), como compreendido pelo viés psicanalítico: nos subterrâneos está o nosso inconsciente – culpas e traumas dos quais queremos nos livrar. Mas o reprimido sempre retorna, transformado em monstros e pesadelos.

The Crossing é um curta de terror russo inspirado nos primeiros filmes de John Carpenter. Dirigido por Arseny Syuhin, o curta explora dois simples elementos: uma passagem subterrânea em uma cidade qualquer e um telefone celular.

Ela liga para o seu namorado para tentar se reconciliar ou pedir desculpas depois de algum tipo de desentendimento. Parece ser tarde da noite. Tensa, desce as escadarias para o subterrâneo quando alguém apressado do nada aparece e passa esbarrando nela. Temos todos os elementos e a atmosfera que indicam que algo de terrível acontecerá com ela.

The Crossing foi filmado em uma passagem subterrânea real durante três noites, com um equipamento bem simples: uma câmera Blackmagic, tripé e uma equipe de apenas três pessoas. E depois, uma impressionante edição e efeitos digitais.

O curta explora um dos exemplares pertencente a um grupo de elementos sempre presente nos filmes de terror: os subterrâneos – metrôs, cavernas, porões, tuneis, passagens, garagens subterrâneas. Lugares nos quais sempre o Mal está a espreita, não só para matar mas para também aprisionar o protagonista ou mesmo a sua alma depois da morte.

Ao lado do tema da cabana remota na floresta, o subterrâneo é um dos tropo mais utilizados em narrativas de terror. O Mal sempre aflora dos subterrâneos, às vezes para nos atrair e aprisionar; outras vezes para invadir a esfera familiar, entrar nos quartos quando dormimos ou fazemos sexo. E, para salvar a civilização, o duelo final será na esfera pública da sala de visitas ou na sala de jantar, o lugar de união familiar.


Um arquétipo gnóstico


Esse clichê do gênero pode ter uma dupla leitura: gnóstica e psicanalítica.

Os subterrâneos possuem um evidente simbolismo da própria condição humana como prisioneira, como uma espécie de microcosmo do Mal que nos mantem presos nos seus limites.

Mas o interessante é que nem sempre na História os subterrâneos tiveram esse simbolismo – foram lugares sagrados de busca da sabedoria na escuridão. No local que era como uma incubadora dos sonhos.

Um imaginário antiquíssimo do período pré-socrático: aqueles que se iniciavam nesses lugares sagrados participavam de uma jornada no reino dos mortos na esperança de encontrar uma divindade que seria seu amigo ou mentor.

Cavernas eram lugares de cura e conexão com o mundo transcendental para além dos nossos sentidos.

A partir de Platão a caverna será apresentada como uma parábola da limitação da percepção derivada da experiência sensorial, portanto, um lugar de onde devemos escapar para encontrar a verdade. Essa parábola mostra a visão de mundo do ignorante, que vive no senso comum, e do filósofo na eterna busca da verdade. Aprisionado no interior de uma caverna, limita-se a ver sombras nas paredes projetadas do mundo exterior - o Mundo das Ideias, oposto ao mundo das coisas sensíveis.

Ou seja, foi a partir da inauguração do período racional e metafísico na História, no qual os mitos foram expulsos como superstições, que os subterrâneos passaram a ter essa conotação maligna. A abstração da Razão nos aprisionou nos reinos subterrâneos, negando-os o acesso à Verdade lá fora.

Esse arquétipo gnóstico que nos lembra daquele imaginário pré-socrático é o que anima nove em cada dez filmes seja de terror, thrillers de ação ou sci fi – lugares de perigo ou discórdia onde o herói é atacado pelo vilão ou monstro, onde perseguições de carro terminam em destruição em série. Ou nas cavernas misteriosas de um planeta distante no filme Alien (1979) repletos de sinistros ovos que infectam a tripulação da nave Nostromo e transforma cada um em potencial hospedeiro de uma criatura predadora.


Subterrâneos do inconsciente


A leitura psicanalítica é óbvia: os subterrâneos são o próprio inconsciente humano, aquilo que deve ser negado, reprimido pela sociedade por ser o Estranho – “uncanny”.

Em The Crossing está a culpa – a protagonista sente-se culpada pelo desentendimento amoroso e tenta desesperadamente fazer a ligação para se reconciliar.

Freud dizia que o inconsciente pode se manifestar de três maneiras: pelo ato falho, pelo sonho e através da neurose – desordem psíquica caracterizada como um mecanismo de defesa do ego diante da pulsão ou fantasia ameaçadora à estabilidade e harmonia. Fobias, obsessões e psicoses são algumas manifestações dessa desordem.

É a própria matéria-prima dos filmes de terror – fobias do escuro, subterrâneos, cobras, aranhas etc.

Por isso, a neurose transforma-se em prisão íntima: sem solução, a cena do trauma é repetida ao infinito a cada medo, pânico ou sensação de ameaça. Assim como a protagonista do curta The Crossing, prisioneira nas paredes daquela passagem subterrânea.


Dessa maneira, a leitura psicanalítica acaba conectando-se com a gnóstica: na verdade, não são os subterrâneos que nos aprisionam, mas o próprio psiquismo projetado. Vivemos prisões íntimas, como é bem explorado em narrativas PsicoGnósticas como Vanilla Sky (2001), A Passagem (Stay, 2005) ou Revolver (2005, clique aqui).

ПЕРЕХОД - THE CROSSING (A Short Horror Film) from Shell Shock on Vimeo.

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