É inacreditável que depois de quase um século de legado em
instrumentos, estratégias e pesquisas na Ciência da Comunicação, a única
reposta possível do PT à agenda imposta pela grande mídia seja a articulação de
um “gabinete de crise”. Administrar os estragos provocados pelas explosões das
bombas semióticas apenas legitima e dá pertinência à pauta diuturnamente
elaborada pelas redações dos grandes veículos. O PT repete o mesmo erro
estratégico das esquerdas em todos os tempos: pensar a comunicação ainda de forma
tradicional (iluminista) como uma questão de Fonte de transmissão dentro da
cadeia de comunicação. As bombas semióticas demonstraram que a grande mídia já
está à frente com o chamado “softpower” – não mais tentar convencer ou
persuadir, mas agora criar pânico e moldar percepções. Guerrilhas semióticas são a única estratégia
possível frente ao cerco das grande mídias: criar uma contra-agenda atuando na
recepção e nos códigos. Nessa postagem, um esboço inicial de uma guerrilha no interior
dos processos de comunicação.
A
notícia de que o ex-presidente Lula articula a criação de um “gabinete de
crise” para enfrentar o impacto das denúncias da Operação Lava Jato é tudo
aquilo que a grande mídia esperava ouvir: um “gabinete de crise” apenas vai retroalimentar
a agenda criada diariamente pelos colunistas e editoriais, legitimando a pauta
pré-estabelecida, como se o PT fosse um bom adversário que aceita as regras do
jogo.
Foi
também noticiado que o gabinete será formado por um “grupo de notáveis” (sempre
os “notáveis”... Marina Silva também pretendia montar um ministério com
“notáveis”...).
É
inacreditável que depois de quase um século de pesquisas nas ciências da
comunicação, (desde a década de 1920 com o ponta pé inicial dado pela Escola de
Frankfurt, Escola de Chicago e Teoria Hipodérmica) que resultaram em tantos
instrumentos e estratégias disponíveis para ataques, defesas e contra-ataques,
a única resposta que um governo que vai para 16 anos no poder seja a de
legitimar uma manjada estratégia de criação de sucessivas agendas de crises –
mensalão, a inflação dos tomates assassinos, o gigante que acordou, e agora o
Lava Jato.
Rui Falcão, presidente do PT: o partido é o oponente ideal para a grande mídia? |
Talvez
por que a grande mídia saiba que tem no PT um ótimo oponente que se limita a
denunciar a onipresença dos monopólios midiáticos, vitimizar-se pelas
“manipulações” das notícias e aqui e ali
dar respostas tímidas através de notas na esperança de que “blogueiros sujos”
façam a diferença.
O
PT é um ótimo oponente de qual jogo? O jogo do “pinball político” (discutido em
postagem anterior – clique aqui) que certamente o gabinete de crise apenas
retroalimentará, ao dar legitimidade e pertinência a hierarquia das pautas que
a grande mídia impõe.
Bombas semióticas e agenda midiática
Desde
as grandes manifestações do ano passado, esse blog tem feito uma série de
postagens sobre o fenômeno das bombas
semióticas que a grande mídia vem detonando na opinião pública. A reação da
estratégia política e de comunicação do governo em todos os episódios foi
reativa: apenas controle de danos, prática que o tal “gabinete de crise” parece
querer tornar mais sistemática e “estratégica”.
Nessas
sucessivas análises feitas pelo blog Cinegnose, percebemos que as bombas semióticas
não são “conteudistas”: não visam a persuasão, doutrinação ou convencimento por
meio das palavras ou uso da retórica ideológica. Elas almejam o pânico e a
moldagem da percepção com a finalidade de criar o imaginário da espiral do silêncio – a percepção sem
nenhuma base lógica, estatística ou informativa de que existe uma voz da
maioria, intimidando qualquer pensamento divergente. E o que pensa a “maioria”?
Que o País é uma merda, e por isso está à beira do abismo!
Uma
percepção imaginária imposta por uma agenda, não obstante o resultado das urnas
terem demonstrado o contrário: de que não há “maioria” e, muito menos, país
dividido, como já foi demonstrado em muitas análises do mapa dos resultados das
últimas eleições.
Essas
bombas semióticas somente conseguem atingir seus propósitos com a consolidação
de uma agenda imposta pela grande mídia, os grandes temas e escândalos do
momento. A agenda é o meio condutor das ondas de choque – sobre esse conceito
clique aqui.
Sendo bombas semióticas, são de natureza
estritamente simbólica, imaginária ou, se quiser, psicológicas. Moinhos de
vento, análogos àqueles contra os quais Dom Quixote enfrentava arrastando
consigo o infeliz Sancho Pança que nada entendia.
Como então pular fora desse jogo mental,
dessa cilada cognitiva perversa? Contra bombas, somente guerrilhas. Guerrilhas
semióticas: a criação de uma contra-agenda, não a partir do polo emissor da
cadeia da comunicação (as mídias), mas atuando no ponto de chegada – a recepção
dos códigos. Portanto, dentro dos limites naturais de espaço de uma postagem,
vamos traçar um esboço inicial dessa estratégia de guerrilha semiótica.
Umberto Eco e a “guerrilha semiológica”
Em 1967 o pesquisador Umberto Eco publicou um
pequeno texto que se tornou um clássico na área de Comunicação: “Guerrilha
Semiológica”. Pouco compreendido na extensão das possíveis conclusões das suas teses,
acabou incrivelmente no esquecimento. Acreditem! Embora seja um texto de 47
anos atrás, continua com insights bem impactantes. Vejamos o que Eco tem a nos dizer:
“Um partido político que saiba atingir minuciosamente todos os grupos que assistem televisão levando-os a discutir a mensagem que recebem pode mudar o significado que a Fonte atribuíra a essa mensagem. Uma organização educativa que conseguisse fazer um determinado público discutir a mensagem que está recebendo pode inverter o significado dessa mensagem. Ou mostrar que a mensagem pode ser interpretada de diversos modos” (ECO, Umberto “Guerrilha Semiológica” In: Viagens na Irrealidade Cotidiana, RJ: Nova Fronteira, 1984, p. 174).
Umberto Eco nos diz que “os estudiosos e
educadores do amanhã” deveriam abandonar os estúdios de televisão e redações de
jornais para combater “uma guerrilha porta a porta”.
Umberto Eco: a questão da comunicação é a recepção e o código |
Eco parte do senso comum de que para
controlar o poder não basta o exército e a polícia. É necessário o controle e a
propriedade dos meios de comunicação. Naturalmente, políticos, comunicadores e
cientistas de comunicação de Esquerda passaram a acreditar que a única forma de
combate possível é contra a mídia ou a Fonte da comunicação, seja através de
uma legislação progressista das mídias ou pela luta de contra-hegemonia no
interior das redações e estúdios das grandes mídias.
O autor não ignora que essa estratégia possa
dar resultados a quem aspira o sucesso político e econômico ou esteja numa
posição dominante, porém será pouco
útil para aquele que estiver à margem desse poder. Sua luta em conquistar a
Fonte da Comunicação apenas reforçará o poder e legitimidade dessa mesma fonte:
a grande mídia.
Da guerrilha semiológica à semiótica
Por isso, Eco propõe a “guerrilha
semiológica”, ainda dentro de um quadro bem conteudista ou iluminista: o
agentes dessa estratégia sentariam na
primeira fila junto à cadeira do líder de um grupo que veja um filme, leia um
jornal ou veja TV e fazer uma “recepção crítica”. Mostrar que é possível
“diferentes interpretações”, desconstruindo as mensagens.
Porém, hoje nos defrontamos com um cenário
mais complexo, com bombas semióticas e engenharias de opinião pública baseadas
em construções de agendas que impõem hierarquias de temas tidos como
pertinentes para a sociedade.
Embora acompanhemos o insight de Umberto Eco
(uma ação guerrilheira que mire o campo da Recepção e do Código), uma ação de
guerrilha simbólica deve ser mais ampla do que uma ação semiológica – concentrada
apenas na recepção crítica de conteúdos. Essa ação deve ser semiótica, no
sentido mais amplo de criar uma contra-agenda, agindo na base da Recepção.
Por isso, uma guerrilha semiótica deveria ser
organizada em ações de curto, médio e longo prazo.
1. Curto prazo: intervindo na Recepção
Uma contra-agenda não se faz respondendo ao
inimigo em seu próprio campo e nos seus próprios termos. Nunca a resposta dada
com o mesmo destaque na grande mídia (reposta em rede nacional ou na primeira
página do veículo) terá o mesmo resultado da bomba semiótica anteriormente detonada.
A recepção dispersiva há décadas constatada em receptores de mídias de massas
(Lazarsfeld nos anos 1950 falava em nove em cada dez receptores) torna os
espectadores predispostos muito mais aos efeitos de pânico dos petardos
semióticos do que a reações posteriores por meio de respostas conteudísticas
que apelem a argumentação na tentativa de provar a verdade dos fatos.
Por isso são necessárias intervenções em
locais públicos (instalações, flash mobs
etc.) seguindo a mesma lógica do pânico: displays, telões, caixas de som,
painéis em praças, calçadões, galerias comerciais, etc. Tais ações poderiam
provocar debates instantâneos, rápidos. O debate e a informação seriam efeitos
residuais, já que o mais importante e o impacto público da contra-agenda.
Tudo pensado em uma logística leve, rápida:
montar e desmontar, nômade.
E por
que não, táticas inspiradas no chamado “marketing invisível”: guerrilheiros
semióticos anônimos se misturam a rodas de conversas em botecos, balcões,
pontos de ônibus, metrôs, trens para “sentir” ambientes e conversas para
intervir com tiradas, informações, dados ou até mesmos slogans, trocadilhos
etc.
Se os pesquisadores da hipótese da Agenda
Setting comprovaram o poder das mídias em pautar os temas das conversas
interpessoais, é nesse campo que a guerrilha semiótica deve agir na construção
da contra-agenda.
2. Médio prazo: apropriação da agenda da grande mídia
Ampliar uma das melhores estratégias que a
campanha de Dilma Rousseff colocou em ação nas últimas eleições: se apropriou
do moralismo da pauta da corrupção – todas as denúncias de corrupção somente teriam
sido possíveis por que em seu governo não existiria um “engavetador geral da República”.
A grande mídia frequentemente noticiaria escândalos porque o governo teria
criado condições (Polícia Federal republicana, por exemplo) para que tudo fosse
noticiado.
As intervenções em curto prazo (vide acima)
devem transformar essa ação de médio prazo em uma contra-agenda. Tornada
sistemática, essa ação levaria ao pânico os colunistas e editores da
grande mídia que viriam suas teses serem confundidas com as do próprio Governo.
3. Longo Prazo: desconstrução do Código
Desde o domínio das mídias audiovisuais até
as atuais tecnologias de convergência como a Internet, o problema do código
passou a ser fundamental na comunicação A maioria de nós é analfabeto, seja
visual ou digital – somos usuário e espectadores, vamos ao cinema, assistimos à
TV, manipulamos software e navegamos na Internet, mas apenas manipulamos
efeitos de conhecimento. Em outras palavras, usufruímos de produtos culturais e
ferramentas digitais, mas não conhecemos suas sintaxes, gramáticas e
morfologias.
Na linguagem audiovisual, edição, decupagem,
planos, montagem, elipses etc.; e na digital a sintaxe HTML, CSS, DHTML etc.,
somos analfabetos. Aprendemos apenas a consumir e usar seus produtos, mas nada
sabemos sobre como eles são construídos. Portanto, somos presas fáceis de
manipulações, invasão de privacidade, etc.
Se observarmos um leigo manipular uma
filmadora em uma festinha infantil, percebemos o seu analfabetismo visual: liga
a câmera e passa a filmar tudo em plano sequência, sem noção de planos, sintaxe
ou roteirização.
Esse analfabetismo visual esteve por trás,
por exemplo, da famosa edição tendenciosa do Jornal Nacional da TV Globo em
1989 do último debate entre Collor e Lula – para o leigo, a existência da
edição e seleção dos planos passa despercebida, passando a acreditar que a
imagem é muito mais verdadeira do que um texto noticioso em um jornal.
Por isso, seria urgente inserir na estrutura
curricular, desde o ensino fundamental, as noções de sintaxe, gramática e
morfologia audiovisual. A partir da sintaxe das histórias em quadrinhos,
avançaria-se para a linguagem do story
board até chegar ao roteiro e toda morfologia audiovisual de cinema e TV.
As imagens perderiam a inocência com essa
alfabetização visual generalizada. As pessoas perceberiam que as imagens não
são constituídas de um único sentido. Como sugeria Umberto Eco no texto Guerrilha Semiológica, veríamos que as
mensagens podem ser desconstruídas e reinterpretadas em uma nova sintaxe, como
se a mídia fosse um gigantesco “efeito Kuleshov” – experiência feita pelo
teórico e cineasta russo Lev Kuleshov mostrando que a interpretação que o
espectador faz de uma cena pode ser alterada através da montagem e justaposição
arbitrária dos planos.