De todos os subgêneros
e revisionismos criados a partir do western clássico, o que mais chama a
atenção é o “acid western” pelo seu caráter “underground” místico e messiânico:
todos os personagens do gênero estão lá (caçadores de recompensas, prostitutas,
cowboys errantes etc.), porém eles não lutam mais por vingança, conquista ou
justiça: buscam a iluminação espiritual. “Dead Man” (1995) do diretor Jim
Jarmuch se insere nesse subgênero ao rechear as linhas de diálogos com inúmeras
referências ao poeta e pintor inglês místico e herético William Blake e construir uma narrativa
hipnótica como um mantra ao som da guitarra de Neil Young.
O gênero western é um produto tipicamente norte-americano
que passou por uma série de renovações, sempre com a preocupação da indústria
do entretenimento universalizá-lo para torná-lo um produto com um mercado
globalizado: do western clássico desde a era do cinema mudo que retrata a luta
do homem para conquistar a natureza infestada por índios e animais selvagens,
passando pelo diretor John Ford (culturalmente mais neutro onde os nativos
passam a ter um melhor tratamento) que vai construir aprofundamentos
psicológicos em toda a galeria dos personagens do gênero (caçadores de
recompensas, cowboys errantes etc.) até chegar a autoconsciência paródica do
chamado “spaghetti western”de Sérgio Leone e o revisionismo de Sam Peckinpah
onde pretendia arrancar poesia da violência representada em câmera lenta.
Para além dessa trajetória “mainstream”, o crítico de cinema
Jonathan Rosenbaun aponta para um subgênero underground: o “acid western”subgênero
que se inicia com o filme “El Topo” (The Mole, 1970), um western místico Cult recheado
de referências ao tarot, messianismo e referências bíblicas em linguagem
lisérgica. “Dead Man” de Jim Jarmuch se insere claramente nessa linha ao criar
um protagonista que não busca mais conquista, vingança ou justiça, mas
iluminação espiritual através de uma “poesia escrita com sangue”.
É a estória de um jovem homem que realiza uma jornada espiritual em uma
terra estranha para ele, nas fronteiras extremas do oeste americano, em algum
momento da segunda metade do século XIX. William Blake (Johnny Deep) é um
contador que recebe convite para trabalhar em uma metalúrgica em uma cidade
chamada Machine. Em seus bolsos alguns dólares e a carta de promessa de emprego
na metalúrgica. Chegando lá, descobre que outro homem já ocupava a vaga de
contador e que ele, Blake, chegou com um mês de atraso.
Deprimido, vai para um saloon, onde encontra com uma mulher,
ex-prostituta, Thel (Mili Avital). Defende-a da agressividade dos homens do
local, sendo convidado por ela para ir até seu quarto. Lá, ambos são flagrados
pelo noivo Charlie Dickinson (Gabriel Byrne) que dispara um revólver, atingindo
os dois. Em legítima defesa, Blake o mata e foge, depois de constatar que Thel
estava morta. A partir desse ponto, começa o purgatório de Blake: Charlie era,
na verdade, filho do proprietário da metalúrgica, que contrata três pistoleiros
para matá-lo em vingança.
Ferido seriamente e desorientado, Blake encontra um indígena estranho e
misterioso chamado “Nobody” (Gary Farmer) que o conduz por situações ao mesmo
tempo cômicas e violentas. Nobody acredita que Blake é, de fato, o próprio poeta
e pintor inglês já falecido à época. Através de um mundo caótico e violento que
transforma Blake em um assassino e fora da lei perseguido por delegados e
pistoleiros, seus olhos são abertos para um mundo desconhecido e espiritual,
conduzido pelos ensinamentos enigmáticos de Nobody.
Blake já está morto?
A perseguição transforma-se em uma jornada espiritual, recheada de
referências aos poemas do pintor e escritor inglês William Blake (1757-1827).
Aqui começa a ambiguidade fundamental do filme: estamos diante da estória de um
homem que, ferido mortalmente, prepara-se, espiritualmente para a morte final
ou temos um homem que já está morto e acompanhamos a sua transição para um
plano espiritual mais alto, desvencilhando-se dos últimos laços com as ilusões
do mundo material. Essa ambigüidade se inicia a partir desse diálogo com o
índio Nobody:
Nobody – Você matou o
homem branco que te matou?
Blake – Mas eu não estou
morto!
A resposta de Blake é pontuada por um forte acorde do tema de Neil Young,
e a expressão do rosto de Blake indo para incerteza. Longo silêncio.
Constantemente Nobody chama-o de “branco estúpido”, “estúpido de merda”, como
se a ignorância da verdadeira condição de Blake irritasse o índio.
Aliás, a música minimalista de Neil Young com guitarra em efeito
feed-back que pontua a estória dá uma sensação hipnótica à narrativa, como um
mantra. Ela se associa à surpreendente narrativa “espelhada” criada por
Jarmuch: as sequências iniciais de finais do filme se “espelham”. Na sequência
inicial um trem conduz Blake para a cidade dos homens brancos e no final uma
canoa leva-o para o mar a partir de uma aldeia indígena Kwakiutl; a caminhada inicial de Blake pelas ruas da
cidade observando, assustado, as atividades urbanas (um caixão recém construído
sendo carregado, um cavalo urinando, uma prostituta fazendo sexo oral em um
beco) se combinam ao olhar desorientado de Blake, próximo da morte, quando
passa pela aldeia dos Kwakiutl.
Narrativa “espelhada” e cíclica, som em “feed-back”, vida e morte com um
movimento cíclico. “Dead Man” é um dos raros filmes que consegue sincronizar
perfeitamente forma e conteúdo, narrativa, edição e montagem com os temas místicos
e arquetípicos.
O Evangelho Gnóstico de Jarmuch
Poeta e Pintor William Blake, a principal referência mística de "Dead Man" |
“Dead Man” apresenta constantes referências a poemas de
William Blake principalmente
nas falas do índio Nobody, como, por exemplo, quando ele se confronta com o
missionário do posto de trocas afirmando que a visão dele de Cristo é a maior
inimiga da sua visão é uma referência ao poema de Blake “The Everlasting Gospel”
(O Evangelho Perene) que apresenta a visão gnóstica de Jesus:
"A Visão do
Cristo que tu vês
É a maior
inimiga da minha visão.
A tua tem
um grande nariz adunco como o teu,
A minha tem
um nariz redondo como o meu.
A tua é a
do Amigo da Humanidade;
A minha
fala em parábolas aos cegos:
A tua ama o
mesmo mundo que a minha odeia;
As portas
do teu céu são os portões do meu inferno.
Sócrates
ensinava o que Meletus
Detestava
como a mais amarga Maldição de uma Nação,
E Caifás
era em sua própria Opinião
Um
benfeitor da Humanidade:
Ambos lemos
a Bíblia noite e dia,
Mas tu lês
negro onde leio branco."
Por essa visão gnóstica, a mensagem de
Cristo nada tem a ver com salvação, mas, ao contrário “iluminação”. Nesse
sentido, o termo significa que a gnose está associada à lembrança do que foi
esquecido e não a descoberta daquilo que desconhecemos. Por isso, a jornada
espiritual descrita em “Dead Man” está carregada de uma atmosfera gnóstica onde
a realidade perda a sua concreticidade para diluir-se na ambiguidade descrita
acima: estamos
acompanhando a jornada espiritual de um homem ferido em direção do seu destino
fatal ou a jornada de alguém que já está morto e que deve se desvencilhar dos
laços materiais remanescentes para retornar a origem de todos os espíritos?
Nobody: É hora de você partir, William Blake.
Hora de você voltar para o lugar de onde você veio.
Blake: Você fala de Cleveland?
Nobody: De volta para o lugar de onde todos os
espíritos vieram ... e para onde todos os espíritos retornam. Este mundo não
vai mais lhe interessar.
O mito de Sophia encarnado na prostituta Thel |
Por isso, William Blake tornou-se um autor cultuado pelos místicos
modernos, pelos escritores norte-americanos “beatniks” e pela contracultura,
fontes das quais o diretor Jim Jarmusch, recorrentemente, se inspira na sua
produção cinematográfica.
Thel, a prostituta
A única personagem feminina do filme, Thel, a ex-prostituta, tem um papel
decisivo para o início da jornada espiritual de Blake. Seguindo a mitologia
gnóstica de Sophia, ela cai para as esferas materiais ou, como representa o
filme, torna-se prostituta na cidade do Demiurgo (o dono da indústria
metalúrgica). Sophia tem o papel de criar as circunstâncias para que o
protagonista alcance a gnose. Ao ser pega em flagrante pelo noivo Charlie
Dickinson com Blake em seu quarto e diante da arma apontada por ele, Thel
coloca se corpo à frente do de Blake e é atingida mortalmente pelo tiro. Blake,
também atingido seriamente, foge para a sua jornada e purgatório para sua
ascensão espiritual.
Ficha Técnica
- Título: Dead Man
- Diretor: Jim Jarmusch
- Roteiro: Jim Jarmuch
- Elenco: Johnny Deep, Gary Farmer, Crispin Glover, Robert Mitchum, Iggy Pop, Gabriel Byrne, Mili Avital.
- Produção: Pandora Filmproduktion, JVCEntertainment Networks
- Distribuição Miramax Films
- País: EUA, Alemanha, Japão
- Ano: 1995
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