terça-feira, janeiro 01, 2013

A Gnose de Ano Novo no Filme "A Roda da Fortuna"

Vale a pena assistirmos ao filme “A Roda da Fortuna” (The Hudsucker Proxy, 1994) dos irmãos Coen. Ainda mais nas comemorações de chegada do ano novo, onde todos parecem querer capturar e reter um momento no tempo, que então já será passado. Por isso, “A Roda da Fortuna” é um grande filme para ser visto e refletido nesses últimos momentos de ano velho. Uma fábula sobre os nossos vícios temporais que estão sempre presentes em todo final de ano: ou caímos no tempo linear (as famosas promessas e desígnios para o ano novo) ou no tempo cármico - a ilusão de que tudo depende de nossa vontade para a roda da fortuna girar, sem entendermos que somos prisioneiros da cilada do “eterno retorno”.

O Tempo é o principal tema do filme. Tudo começa quando vemos o presidente das Indústrias Hudsucker (Norville Barnes), nos últimos minutos de 1958, abrindo a janela do seu escritório no 44o andar para cometer suicídio. Com grande inventividade narrativa, o tempo para e temos um flashback da sua carreira: como ele subiu tanto para cair tão rápido?

Incerteza, sincronicidades, carma, a responsabilidade ética e moral das ações. Todos esses temas que marcam a filmografia dos irmãos Coen estão presentes nesse filme (o próximo seria o premiado “Fargo” de 1996). Mas em a “Roda da Fortuna”os Coen aprofundam no arquétipo que estrutura todos esses temas: o Tempo.

Norville Barnes é um idealista recém-formado estudante de administração que chega à Nova York vindo do interior. Com uma invenção na cabeça que, acredita, fará sua fortuna (um círculo desenhado num papel – “para crianças, claro”, diz) quer começar de baixo para honestamente subir na carreira.

Paralelo a isso, após o bem sucedido presidente das Indústrias Hudsucker (Waring Hudsucker) estranhamente cometer suicídio, o conselho de administração, liderado por Sidney Massburger (Paul Newman) surge com um brilhante plano para enriquecer a todos: nomear um idiota notório para dirigir a companhia, trazendo pânico para os acionistas que se desfariam dos seus papéis. Imediatamente os membros do conselho comprariam de volta as ações desvalorizadas a centavos para, dessa forma, deter o controle e os dividendos da empresa que rapidamente voltaria à lucratividade de antes após a deposição do presidente fantoche.

Plano perfeito, não fosse a invenção de Barnes que, de tão louca e inusitada, acaba dando certo: o círculo desenhado no papel transforma-se no brinquedo infantil bambolê, de estrondoso sucesso, frustrando a manipulação do conselho de administração.

Mas, o caipira e ingênuo Barnes acaba seduzido pelos símbolos do poder (namorar celebridades, o circo midiático, fofocas e assédio). Fica fácil para Sidney armar uma armadilha que vai, com a ajuda de ambiciosa jornalista Amy Archer (Jennifer Leigh), expor Barnes a um escândalo público e a derrocada final.
No salto final, o suicídio, Barnes encontra a gnose na suspensão temporal (a imagem do salto é um elemento simbólico recorrente ao longo do filme) que remete a toda uma mitologia gnóstica sobre o Tempo e a iluminação espiritual através da sua suspensão.

O Arquétipo do Tempo

O grande personagem desse filme é o Tempo. Para começar, esteticamente o filme é um pastiche de referências dos filmes de Frank Capra e da scrowball comedy dos anos 30 e 40 do século XX. Mais do que isso, o fato do filme já fazer uma intertextualidade (referências, alusões) de outros pastiches da década de 80 como “Brazil, o Filme” (Terry Gilliam) dá um caráter atemporal e de fábula à narrativa.

Todos os eventos que levam Barnes ao sucesso são marcados por sincronicidades e acasos (por exemplo, quando Barnes entra pela primeira vez no prédio da Hudsucker no exato momento em que o presidente da empresa comete suicídio se estatelando na calçada onde há segundos estava Barnes; ou o sucesso do invento de Barnes iniciado por um evento aleatório com um menino que esbarra acidentalmente num bambolê na rua.

O escritório do vilão/Demiurgo Massburger fica ao lado do grande relógio do prédio das indústrias Hudsucker. Na sua mesa, uma dessas peças decorativas de bolinhas que batem ritmicamente como um metrônomo. Massburger parece controlar o tempo linear. Seu plano de manipular o mercado de ações é essencialmente uma questão de timing (compra em baixa e venda em alta de ações).

Enquanto isso, o herói Barnes está fixado na ideia do círculo. A certa altura da narrativa, vemos que a sua ideia temporal também é cíclica ao citar o conceito de carma
Barnes: Os hindus dizem, e os beatniques também, que, em nossa próxima vida, alguns de nós irão voltar como formigas. Alguns serão borboletas, outros elefantes, ou criaturas do mar.
Amy: Que lindo pensamento.
Barnes: O que você acha que foi em uma vida passada, Amy?
Amy: Oh, não sei. Talvez eu só tenha sido uma garota carreirista
Barnes: Esse tipo de pessoa voltaria como uma fera ou um javali.
(...)
Barnes: Falando sério, é o que os seus amigos beatniques chamam de "carma". O grande círculo da vida, morte e renascimento.
Amy: Acho que já ouvi isso. Tudo que vai, volta.
Barnes: É isso, a grande roda que nos proporciona tudo que merecemos. 

Ao cair no erro da sedução pelos símbolos de poder do sucesso, Barnes repete o drama cíclico da natureza humana (a vaidade e a soberba) sem saber que, na verdade, não passava de mais uma peça nas engrenagens do tempo manipuladas pelo demiurgo Massburger.

Os irmãos Coen mergulham aqui na mitologia gnóstica do Tempo, como uma falha cósmica. Para o Gnosticismo, o tempo é uma falha, fruto de um acidente cósmico: a criação do cosmo físico pelo Demiurgo. 

A Plenitude é substituída ou pelo tempo linear, da qual nem o Demiurgo escapa, e o tempo circular (o carma das sucessivas reencarnações que mantém o homem prisioneiro nesse cosmos, condenado ao “eterno retorno”).

No filme “A Roda da Fortuna” essas duas noções de tempo (linear e circular) são contrapostos de forma magistral numa fábula irônica. De um lado, o demiurgo Massburger controla as engrenagens do relógio. Pode até fazer o tempo parar (como ocorre numa sequência), mas não consegue revertê-lo. Do outro, Barnes sem saber é prisioneiro do seu carma. Acredita no trabalho, no “self made man” e na força da vontade. Porém, repete o carma da natureza humana, sem ter consciência das verdadeiras engrenagens que o Demiurgo movimenta, transformando-o num fantoche.

A Gnose: o salto de fé

Na sequência final Barnes alcança a iluminação espiritual (gnose) ao encontrar a terceira via (o “tertium quid” para os gnósticos) ao encontrar o estado de suspensão no limiar entre a vida e a morte na queda do 44o andar. O tempo para antes de se estatelar na calçada. Nesse instante surge, na forma de um anjo “kitsch”, Waring Hudsucker que faz a ele a grande revelação que o salvará.

Barnes alcança a gnose basilidiana (sobre esse conceito veja links abaixo) recorrente em protagonistas de diversos filmes marcado pelo salto final (“Vanilla Sky”- 2001, “O Pagamento” - Paycheck, 2003), “Vidas em Jogo” - The Game, 1997 - etc.): no estado de suspensão temos a negação tanto do tempo linear como do tempo cíclico. Na suspensão, Barnes vislumbra o Todo e todas as peças se encaixam. Ele compreenderá o porquê dos acasos e sincronicidades e a grande trama temporal armada pelo Demiurgo Massburger. Após cair suavemente na calçada, já nos primeiro minutos do ano novo, ele saberá o que deverá fazer.

“A Roda da Fortuna” é um grande filme para ser visto e refletido nesses últimos momentos de ano velho. É uma fábula sobre os nossos vícios temporais que estão sempre presentes em todo final de ano: ou caímos no tempo linear (as famosas promessas e desígnios para o ano novo) ou no tempo cármico (a ilusão de que tudo depende de nossa vontade para a roda da fortuna girar, sem entendermos que somos prisioneiros da cilada do “eterno retorno”).

O que fazer? Não cheguemos aos extremos de Norville Barnes e nos joguemos através da primeira janela. Simplesmente busquemos o estado de suspensão no silêncio, introspecção e meditação.

Ficha Técnica
  • Título Original: The Hudsucker Proxy
  • Diretor: Joel Coen
  • Roteiro: Ethan Coen, Joel Coen
  • Elenco: Tim Robbins, Paul Newman, Jennifer Leigh, Charles Durning, John Mahoney
  • Produção: Warner Bros Pictures, Polygram Filmed Entertainment
  • Distribuição: Warner
  • Ano: 1994
  • País: EUA/UK




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