O que a eleição de Zohran Mamdani, o primeiro prefeito muçulmano de Nova York, rotulado de "socialista" por sua oposição a Trump, tem em comum com “O Mal Não Existe” (Aku wa sonzai shina, 2023, filme disponível na MUBI), o novo e perturbador filme do japonês Ryusuke Hamaguchi? Ambos os eventos, um político e um diretor de cinema, servem para expor a insuficiência da visão americana que reduz o capitalismo a um problema moral—uma luta entre ricos "bons" e ricos "maus". O filme de Hamaguchi, no entanto, leva essa discussão ao campo ecológico, dinamitando a ideia de "Bem vs. Mal" para sugerir que o verdadeiro perigo não está nas intenções dos agentes, mas na perturbação de sistemas que, como a natureza ou a economia, são fundamentalmente amorais e cegos. O que começa como uma parábola ecológica comum (um empreendimento para milionários que interfere numa idílica vila rural) termina mostrando que o Capitalismo não é bom e nem mau: ele apenas perversamente funciona.
A vitória do democrata Zohran Mamdani, o primeiro prefeito muçulmano
eleito de Nova York, mostrou como vitrine eleitoral uma plataforma oposta ao
presidente Donald Trump. Por isso, os americanos o consideram “socialista” ou “de
esquerda”.
Mamdani prometeu transporte público e creches gratuitos,
congelamento dos aluguéis em imóveis subsidiados pelo poder público e
estabelecimentos de alimentos administrados pela prefeitura. Como? Aumentando
os impostos dos mais ricos. Como Mamdani afirma, de gente que enriqueceu em
Nova York, como Trump.
Isso é ser “de esquerda’ para o americano: assim como a história
do bad cop/good cop, teríamos no capitalismo ricos maus (que não aceitam
pagar impostos para reverter em benefícios públicos) e ricos bons (dispostos a
ceder o quinhão da sua fortuna para os menos favorecidos).
É o máximo a que chega o “socialismo” nos EUA: pensar o
capitalismo como um problema moral. Se expulsarmos os maus capitalistas, os
bons resolverão as pendengas sociais. Nada de crítica estrutural que vá para
além do Bem e do Mal – a geração da desigualdade não como um problema de
consciência, mas de uma forma de produção de valor que intrinsecamente gera
desigualdades e injustiça. Independente da boa ou má consciência da elite
burguesa.
É exatamente sobre isso que trata o filme de Ryusuke Hamaguchi O
Mal Não Existe ( Aku wa sonzai shinai, 2023), transposta para a
questão ecológica dentro do capitalismo.
É um filme que se disfarça de uma coisa para revelar ser algo
completamente diferente e mais perturbador. Ele usa a estrutura de uma
parábola ecológica (Cidade vs. Campo, Desenvolvimento vs. Natureza) para, no
fim, dinamitá-la. Mostrando que a discussão moral entre o Bem e o Mal, quando focamos
a questão ambiental pelo ponto de vista corporativo, não existe.
Em uma zona rural edílica, a poucos quilômetros de Tóquio, moram
confortavelmente um viúvo com sua pequena e esperta filha. Moram em uma vila
rural intocada cujos recursos naturais são artesanalmente recolhidos (como água
e ervas) para vender a restaurantes.
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Vivem em perfeito equilíbrio com a Natureza, até o momento em que
chega uma empresa decidida em construir no local um “glamping”, uma área de
camping de luxo, exclusiva para milionários que buscam uma forma de lazer “alternativa”.
A primeira hora do filme nos faz acreditar que estamos diante de
uma parábola ecológica comum: uma corporação (o “mal”) destruindo o “bem” (a
Natureza). Tudo seria em torno da polaridade equilíbrio/desequilíbrio.
Primeiro, porque recusa-se a ter vilões claros. Os
"invasores" são tão vítimas do sistema quanto os moradores.
A natureza não é romantizada - é mostrada como um
sistema de regras brutais, onde o desequilíbrio leva à violência.
O clímax não é sobre o glamping. O problema não é resolvido
com um protesto ou uma ação judicial. Ele é resolvido (ou melhor, implodido)
por um ato de violência primal e ambíguo que sugere que os humanos são apenas
mais uma parte desse sistema selvagem.
O filme não está dizendo "parem as corporações". Está
fazendo uma pergunta muito mais assustadora: O que acontece quando o delicado
sistema que nos sustenta é perturbado, mesmo que por pessoas com boas intenções?
A resposta, para Hamaguchi, não é ativismo; é o caos.
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Porque para Hamaguchi, não importam os CEOs, promotores ou
representantes corporativos (de resto, todos bem-intencionados – ou fingindo
serem). O que importa é a máquina corporativa ou a estrutura econômica cega e
anônima.
Ela não boa ou má. Apenas perversamente funciona.
O Filme
A cena de abertura, que se estende por um bom tempo, é
fundamental. O ponto de vista é o de um par de olhos que olham do chão para os
galhos nus das árvores de uma floresta e para o céu claro acima deles.
A bela e inquietante cena corta para um Takumi (Hitoshi Omika) feliz
e produtivo, viúvo com uma filha pequena, inteligente e cheia de vida. Do lado
de fora de sua pequena e aconchegante casa, ele está cortando lenha, e como ele
é bom nisso! Ele tem duas reservas generosas de lenha para a lareira,
empilhadas ordenadamente. Seus arredores são deslumbrantes e sua saúde é
robusta.
Enquanto coleta água de um riacho próximo, ele conversa com um
vizinho. Eles moram em uma pequena vila rural nos arredores de Tóquio, um lugar
quase completamente intocado. Enquanto observam as margens do riacho, Takumi,
um sábio da natureza, encontra um wasabi selvagem. Ele o colherá e o levará a
um restaurante local, onde será usado para temperar uma refeição que ele
compartilhará com dois visitantes.
Takumi já se sente um pouco incomodado com os tiros de pessoas
caçando nas proximidades e, apesar de ser um pai dedicado, tem o mau hábito de
esquecer de buscar Hana na escola.
A situação se complica quando Takumi e seus vizinhos descobrem que
uma empresa de Tóquio comprou extensas áreas de terra nas proximidades, com a
intenção de transformá-las em um local de "glamping" para turistas
endinheirados da cidade.
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A reunião comunitária que a empresa organiza de forma superficial,
supostamente para ouvir as preocupações dos moradores, revela que a fossa
séptica do local proposto contaminará o abastecimento de água.
Além disso, a empresa está insistindo nesse projeto para se
qualificar para subsídios governamentais pós-pandemia e que, de qualquer forma,
demonstra total indiferença às preocupações dos moradores.
Principalmente quando sabemos que os dois funcionários sorridentes
e inexpressivos que fingem ouvir as queixas da vila na reunião são empregados
de uma agência de talentos de TV que diversificou suas atividades para relações
públicas corporativas – oferecem atores para fazerem o papel de relações
públicas em iniciativas que implicam em relações controversas com comunidades.
Esses dois profissionais de relações públicas revelam-se infelizes e culpados pelo que fazem, especialmente pelo plano grosseiro e desajeitado de seus empregadores de oferecer a Takumi um emprego de "zelador" no acampamento de luxo.
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Uma longa cena de diálogo durante a viagem de carro revela que
eles são seres humanos vulneráveis, tão merecedores do respeito do público
quanto os moradores da vila: e um deles parece até ter uma epifania ou um
colapso nervoso ali mesmo, no meio da floresta.
Em uma parábola comum os representantes da empresa seriam
caricaturas malignas. Mas Takahashi (Ryûji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani)
são o oposto. Eles são Incompetentes, não Maus: eles claramente odeiam
seu trabalho. A reunião com os moradores os afeta profundamente. Eles percebem
que os moradores estão certos.
Na verdade, o Inimigo é abstrato: O verdadeiro "mal"
corporativo é um chefe sem rosto em uma tela de Zoom, que mal vemos. Os
"vilões" que estão em cena são, na verdade, almas perdidas de Tóquio
que buscam a mesma pureza que o glamping finge vender.
Principalmente, em O Mal Não Existe, a visão de Hamaguchi
sobre a natureza não é romântica. Não é apenas um lugar bonito e idílico que
precisa ser "salvo" por humanos bonzinhos.
O cervo ferido é o elemento simbólico mais crucial. Os moradores
mencionam que um cervo que foi baleado, mas não morto, é extremamente perigoso.
Ele não age racionalmente e pode atacar qualquer coisa. A natureza, quando
ferida ou desequilibrada, torna-se violenta e imprevisível.
O tema central do filme (o Mal não existe) revela que o tema não é
sobre "o mal" (a corporação) destruindo "o bem" (a
natureza). É na verdade sobre equilíbrio e desequilíbrio.
Tanto a Natureza quanto o sistema de produção de valor da
corporação são amorais: apenas funcionam para alcançar os seus fins. E quando
perturbados, tornam-se imprevisíveis: de um lado, o cervo ferido; e, do outro, o
anonimato da corporação.
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Ficha Técnica |
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Título: O Mal
Não Existe |
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Diretor: Ryusuke
Hamaguchi |
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Roteiro: Ryusuke
Hamaguchi, Eiko Ishibashi |
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Elenco: Hitoshi Omika,
Ryô Nishikwa, Ryuji Kosaka |
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Produção: Fictive,
NEOPA |
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Distribuição: MUBI |
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Ano: 2023 |
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País: Japão |
sábado, novembro 08, 2025
Wilson Roberto Vieira Ferreira





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