Dizem que ninguém jamais retornou do "Grande Além" para contar a história, mas o cinema nunca precisou de testemunhas para colonizar o pós-morte com nossas próprias angústias. Sob a ótica da Cinetanatologia — o estudo das representações do além como sismógrafos do mundo dos vivos —, as telas revelam que o Céu e o Inferno dizem menos sobre os mortos e muito mais sobre as crises de quem fica. Em seu novo filme, "Eternidade" (2025), o diretor David Freyne leva essa premissa ao limite: ao transformar o luto em um gigantesco centro de convenções e a salvação da alma em um serviço de assinatura, a obra deixa de ser apenas um drama romântico para se tornar um comentário ácido sobre a plataformização da existência e a tirania das escolhas irreversíveis no século XXI. O cinema sempre usou o “Além” para falar do “aqui”.
Como ninguém ainda retornou do Grande Além para nos contar o que
existe depois da morte (a não ser narrativas fragmentadas e ambíguas das
chamadas Experiências de Quase Morte – EQM) tudo o que temos são as
representações imaginárias, simbólicas ou arquetípicas sobre a vida após a
morte. Seja sobre o Céu ou no Inferno.
Para este humilde blogueiro, fica a tese central da Cinetanatologia
(o estudo das representações no cinema e audiovisual do pós-morte): quando
decidimos fazer uma produção ambientada naquilo que achamos ser o pós-vida,
ficamos conhecendo mais sobre a vida dos vivos do que a dos mortos.
O cinema sempre usou o “Além” para falar do “aqui”.
Isso porque as diferentes maneiras como figuramos a vida dos
mortos refletem as ansiedades culturais, políticas, econômicas, avanços
tecnológicos e crises religiosas e espirituais de cada época. Assim como a
arte, podemos considerar as representações do pós-morte como um sismógrafo do
mundo dos vivos.
Por exemplo, nos anos 1940-60 temos uma visão da vida após a morte
no cinema em tornos de tribunais celestiais e burocracia divina – com o foco na
moralidade, dever cívico e julgamento social. Nos anos 1990, vemos luzes brancas,
tuneis de luzes e reencontros espirituais, como no filme Ghost, com o
foco terapêutico na superação de traumas e individualismo emocional.
As coisas começam a mudar com Amor Além da Vida (1998),
mostrando mundos pós-mortes solipsistas, antevendo as experiências imersivas em
Realidade Virtual da cibercultura.
Para chegarmos ao século XXI, onde o pós-morte é figurado como
servidores, nuvens de hospedagem de arquivos digitais e uploads, como em Upload
ou Sociedade dos Talentos Mortos (2024).
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Já no mundo pós-morte imaginado pelo diretor e roteirista irlandês
David Freyne no filme Eternidade (Eternity, 2025), a morte não é
o fim. Quando sua jornada no mundo real termina, você chega de trem a um centro
de convenções com ares dos anos 60, exatamente na idade em que era mais feliz.
Lá, você encontra seu Consultor da Vida Após a Morte (AC), que o
ajudará a decidir para onde ir em seguida: a Eternidade, isto é, mundos
solipsistas criados a partir das suas memórias e opções. Verdadeiros parques
temáticos do Além.
Talvez você queira passar a vida após a morte na praia (Mundo da
Praia!), ou talvez você seja uma mulher que já se cansou dos homens (o Mundo
Livre de Homens está, curiosamente, lotado), ou quem sabe você seja um homem
gay que queira aproveitar os prazeres dos anos 80 sem a crise da AIDS (esse
seria o Mundo Studio 54).
A “Junção”, como é conhecido esse lugar de transição, é uma
correria de vendedores em um centro de convenções interminável cercado por
prédios de hotéis onde as almas recém-chegadas estão hospedadas. Decidindo qual
Eternidade escolher. Estandes ocupados por vendedores ansiosos distribuindo
material de divulgação uma decisão que não pode ser revertida depois que você
chega lá.
Uma vez feita a opção, a decisão não pode ser revertida. A decisão
será tão eterna quando o mundo escolhido. Aqui e ali, somos surpreendidos por
policiais perseguindo fugitivos que se cansaram da sua eternidade e tentam
fugir. Tecnicamente, não existe o Inferno. A punição será ser jogado para um
imenso vazio onde não há tempo ou espaço.
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O filme de Freyne não é apenas sobre o Além; é um comentário ácido
sobre o presente. Ele encapsula três grandes ansiedades da nossa era: A
"Plataformização" da Existência - a salvação da alma é transformada na
escolha de um serviço; a angústia existencial da escolha, exponenciado pela
tecnologia digital; a nostalgia como o futuro do passado: A cultura
contemporânea vive uma obsessão pelo passado (remakes, revival cultural). O
dilema entre o amor vivido e o amor idealizado ecoa essa tendência.
O Filme
Eternidade imagina
uma vida após a morte onde as pessoas que morrem acabam em uma viagem de trem
até a "Junção", uma espécie de purgatório com amplas acomodações para
aqueles que faleceram recentemente. Há também um enorme salão de exposições com
diferentes "eternidades" anunciadas para atrair almas a passarem sua
eternidade ali. Há o "Mundo dos Iates", "Paris nos anos
1960", "Mundo da Praia", "Mundo Sem Homens" (já
lotado) e muitas outras.
Mas para Joan Cutlet (Elizabeth Olsen), o verdadeiro problema não
é escolher onde passar sua eternidade. É com quem ela quer passá-la.
Joan precisa escolher entre
seu primeiro marido, Luke (Callum Turner), um verdadeiro sonho que morreu na
guerra da Coreia e passou 67 anos esperando por ela na Junção trabalhando como
bartender, e seu leal marido Larry (Miles Teller), com quem construiu uma vida
e uma família ao longo de 65 anos.
Larry se engasgou com um pretzel e morreu na frente da família, um
fim abrupto para uma longa vida e um casamento feliz. Ele acorda como sua
versão mais jovem e é apresentado a sua CA, Anna (Da'Vine Joy Randolph), que
explica sua situação e tenta encontrar o destino ideal para ele após a morte.
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Mas Larry quer esperar por sua esposa, Joan, cujo diagnóstico de
câncer sugere que a espera não será tão longa. Quando ela finalmente chega
(retornando também em sua versão jovem), surge um pequeno problema. Seu
primeiro marido, Luke, morreu na guerra décadas atrás e também está esperando.
Com a ajuda de seu assistente CA Ryan (John Early), Joan precisa decidir com
quem quer passar a eternidade.
Para além do pano de fundo da angústia da escolha (em um imenso
centro de convenções com centenas de estandes oferecendo uma diversidade de
eternidades para os “clientes”), Joan enfrenta o dilema pessoal: precisa escolher
entre uma vida conjugal potencial que mal foi vivida e cruelmente tirado dela,
contra a segurança do que ela já conhece, talvez até demais. Aquele por quem
ela sofreu versus aquele que a ajudou a sofrer, a memória do amor jovem versus
a realidade de um casamento duradouro, aquele que se lembra dela em seus
melhores momentos versus aquele que a conheceu em seus piores.
Eternidade é um drama
romântico com pitadas de fantástico e ficção científica em tom de comédia
rápida e leve. Mas que oculta inquietações profundas.
Funciona como uma comédia romântica que, ao mesmo tempo, faz uma
crítica sutil à forma como a modernidade administra afetos: o pós‑vida
burocratizado e colorido transforma o amor em produto e escolha, ecoando a
mercantilização das emoções nas plataformas contemporâneas.
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O mérito de Eternidade está em usar um dispositivo
fantástico para tornar palpável uma angústia muito atual: como viver (e
escolher) quando o passado é editável, as opções são muitas e a própria
identidade parece negociável.
Como em todos os filmes que figuram o pós-morte, Eternidade mostra
que o Céu (ou purgatório) não é mais transcendência – não há mais redenção,
perdão ou danação, julgamentos ou recompensas. Mas a continuação das mesmas
angústias que confrontamos aqui na Terra.
Dentro da um gigantesco sistema hoteleiro que funciona num
gigantesco centro de convenções, o falecido enfrenta a angústia da escolha da
sociedade de consumo que deixou para trás. Apenas com uma grande diferença:
enquanto aqui na Terra uma má escolha pode ser resolvida em um Centro de
Atendimento ao Consumidor, na “Junção” a escolha trará consequência para toda a
eternidade.
Porém, o mais inquietante nesse “Céu de Plataforma” é a
performatividade das memórias. A ideia de "propaganda de eternidades"
e escolhas irreversíveis lembra a lógica das plataformas digitais, onde
decisões (posts, matches, contratos) moldam identidades de forma permanente.
Mas, ao mesmo tempo, essas eternidades são solipsistas, isto é, são construídas
algoritmicamente a partir de um passado idealizado que compete com a
convivência real e desgastada.
Ao final, esse é o dilema de Joana: as memórias idealizadas do
passado exibidas pelos “Museus das Memórias” oferecidos em cada um dos mundos
eternos representado pelo primeiro marido perdido tragicamente na guerra versus
a convivência real e desgastada do marido com o qual passou a maior parte da
vida.
Assim como todos, Joana está condenada a repetir no Além os mesmos
dilemas e angústias deixados aqui na Terra. Com uma diferença crucial: no
pós-morte todas essas mazelas serão ampliadas porque uma escolha poderá
significar a danação eterna.
Ficha Técnica |
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Título: Eternidade |
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Direção: David Freyne |
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Roteiro: David Freyne,
Patrick Cunnane |
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Elenco: Miles Teller,
Elizabeth Olsen, Callum Turner |
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Produção: A24 |
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Distribuição: A24 |
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Ano: 2025 |
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País: EUA |
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sexta-feira, dezembro 19, 2025
Wilson Roberto Vieira Ferreira




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