quinta-feira, dezembro 26, 2024

Tom Hanks vira o Forrest Gump da Era Trump no filme 'Aqui'


Robert Zemeckis, o artífice de filmes emblemáticos como “De Volta Para o Futuro” e “Forrest Gump: O Contador de Histórias”, parecia ter nesse século perdido o talento, restrito a remakes como “Convenção das Bruxas” e “Pinóquio”. Em “Aqui” (Here, 2024), Zemeckis quer retornar à relevância perdida. Dessa vez, criando uma espécie de Forrest Gump na “nova” Era Trump com o espírito do futuro do pretérito da Era Reagan em “De Volta Para o Futuro”: o futuro baseado na nostalgia do resgate dos valores que fizeram uma América idílica que jamais existiu. E a presença obrigatória do “all american boy” Tom Hanks, sempre requisitado para esse papel. A presunção do filme é colocar a câmera em um lugar fixo para ilustrar todos os eventos que ocorreram numa sala de estar ao longo da história, usando quadros dentro do quadro para fazer a transição de um ponto no tempo para o outro. Hanks resgata os valores supostamente mais caros para a América, refletindo o novo/velho projeto de fazer a América grande, voltando para o passado. Hanks agora é o Forrest Gump da Era Trump.

Uma das teses principais desse humilde blogueiro é de que o cinema é muito mais do que entretenimento. Como modo de produção coletivo que envolve uma complexa cadeia de produção verticalizada, os produtos cinematográficos transformam o público em espectadores do espírito do tempo de cada época transformado em imagens e movimento.

Por isso, cada década acaba sendo representado por um filme emblemático, que sintetizaria esse zeitgeist. E o diretor Robert Zemeckis é esse diretor com um talento particular em fazer esse tipo de produto – ele parece saber exatamente como manipular um público em massa. Ele foi o cara que fez De Volta Para o Futuro, Tudo por uma Esmeralda, A Morte lhe Cai Bem, Forrest Gump: O Contador de Histórias, Revelação etc. 

Um conjurador de um tipo de magia de filmes transcendentes cujo poder Zemeckis parece ter perdido nesse século, perdido em remakes como A Convenção das Bruxas ou Pinóquio.

Por isso Robert Zemeckis resolveu, trinta anos depois, reunir os principais membros criativos de Forrest Gump (o roteirista Eric Roth, o compositor Alan Silvestri, diretor de fotografia Don Burgess, além das estrelas Tom Hanks e Robin Wright) para reeditar um filme tão emblemático como foi o clássico de 1994. 

E com um trabalho pesado de rejuvenescimento com filtros digitais e outras parafernálias computadorizadas no filme Aqui (Here, 2024).

De Volta Para o Futuro e Forrest Gump foram filmes emblemáticos para suas décadas correspondentes. A história do cientista maluco e seu jovem pupilo que volta para o passado para que a sua família falida tivesse algum futuro, fez De Volta Para o Futuro refletir o espírito da Era Reagan – recuperar a verdadeira América através da nostalgia da era de ouro dos valores conservadores: o retro-futurismo, o futuro do pretérito. 



Forrest Gump, a filosofia sobre o nada ou a absoluta banalidade da vida do ponto de vista de um idiota feliz e programado para aceitar tudo – o zeitgeist da globalização triunfante do realismo capitalista (Mark Fisher) dos anos 1990 da Era Bill Clinton.

E a presença do ator Tom Hanks é a principal arma de Robert Zemeckis no filme Aqui – desde os anos 80, fazendo o tipo descompromissado all american boyfriend, Hanks tornou-se o verdadeiro “namoradinho da América” em filmes escolhidos a dedo para dignificar os valores mais caros do american way of lifeForrest Gump (a nostalgia superestimada dos momentos históricos dos EUA), Apolo 13 (a mitologia da inventividade científica da NASA), O Náufrago (a seriedade dos valores corporativos da Nação, no caso da FedEx), O Resgate do Soldado Ryan (guerra e patriotismo), O Círculo (a mitologia do Vale do Silício) etc.

Dessa vez é o filme Aqui, uma tentativa de Zemeckis voltar à relevância perdida. Aqui parece querer refletir o espírito do tempo da nova Era Trump. Paradoxalmente, o filme se transformou numa espécie de mix entre De Volta Para o Futuro e Forrest Gump, entre o espírito do futuro do pretérito (a nostalgia pela raiz dos valores americanos) e o conformismo idiota de um Forrest Gump. Como uma espécie de resignação diante dos novos/velhos tempos republicanos na América.

A presunção do filme, baseado na história em quadrinhos de 2014 de Richard McGuire, é colocar a câmera em um lugar fixo para ilustrar todos os eventos que ocorreram naquele mesmo local ao longo da história, usando quadros dentro do quadro para fazer a transição de um ponto no tempo para o outro.

Dos tempos pré-histórico dos dinossauros, passando pelos nativos americanos, a colonização e independência, a construção da cidade e da residência no qual a câmera será posicionada na sala de estar de um duplex, que testemunhará as famílias que viveram lá até a atualidade.



Os principais eventos serão ambientados nos 60 anos de cultivo de sentimentos vagos sobre amor, família, irmandade, amizades a partir das vivências do cotidiano como nascimento, morte, amor, depressão, infidelidade, insatisfação conjugal, lidar com pais idosos e afins - tudo a partir da posição fixa da câmera. 

Mas como sempre, com Tom Hanks fazendo a propaganda da necessidade de relembrarmos dos valores mais caros da América. Principalmente agora, na era em que Trump, outra vez, tentará “Make America Great Again”.

O Filme

A maior parte do tempo acompanhamos a família Young como dona da casa. Foi comprada logo após o fim da Segunda Guerra Mundial pelo soldado Al Young (Paul Bettany) e sua esposa Rose (Kelly Reilly), que começou a criar três filhos lá. 

Um deles cresce para ser Richard (Tom Hanks), um jovem com sonhos de ser um artista pintor e ilustrador que acaba engravidando sua namorada do ensino médio Margaret (Robin Wright) - eles se casam e Richard aceita um emprego vendendo seguros para sustentar sua família. Como as finanças estão apertadas, eles são forçados a morar com os pais de Richard e, embora sempre se fale em conseguir sua própria casa, Richard nunca parece disposto, inventando toda sorte de desculpas – os impostos, a recessão, um novo governo etc. 



À medida que os anos passam, observamos os Youngs enquanto eles observam na TV da sala de estar os eventos marcantes na história americana (da chegada dos Beatles na América à Guerra do Vietnã e o escândalo Watergate), ao mesmo tempo em que vivenciam todo tipo de coisas cotidianas que todos nós experimentamos na vida familiar.

Também acompanhamos flashbacks de um namoro de nativos americanos, o filho ilegítimo de Benjamin Franklin, William Franklin, no momento da independência dos EUA, um ambicioso pioneiro da aviação nacional e sua família preocupada com os riscos. Além de um otimista inventor-empreendedor da poltrona “La-Z-Boy”, uma poltrona “relaxante” com todos opcionais promovida pela esposa pin-up.

E na atualidade, os últimos proprietários da casa: uma família negra lidando com a injustiça racial e a pandemia - há a cena mais longa dessa família totalmente anônima em que o pai explica ao filho como sobreviver a uma parada policial.

Aqui possui estranhas disfuncionalidades, tão estranhas que parecem ser propositais de Zemeckis. A primeira, o fantasmagórico e intenso trabalho de rejuvenescimento digital que dá a Hanks e Wright deformações assustadoras ao longo do tempo – tão hiper-real e híbrido que as reconstituições das décadas ganham um supreendente aspecto das imagens do famoso ilustrador Norman Rockwell das capas da célebre revista “Saturday Evening Post”. Imagens que ajudaram a construir a mitologia artificial de uma América idílica que jamais existiu.

Além da contradição entre a câmera colocada no canto da sala de estar que dá um aspecto de frieza e distanciamento. Criando uma desconexão com as cenas que supostamente querem transmitir sentimentalismo e emoção – talvez o objetivo de Zemeckis seja esse mesmo: transmitir a absoluta monotonia e vazio do mundo.




Essa contradição parece se resolver no principal objetivo do filme, o propagandístico, transformando Aqui no “Forrest Gump” da nova Era Trump.

 Em meio à monotonia dos eventos conjugais e familiares ao longo das décadas, destacam-se mesmo os valores fundamentais da mitologia americana – cujos filmes estrelados por Tom Hanks primam em propagandear. 

A independência épica dos americanos diante dos colonizadores ingleses, o otimismo empreendedor do inventor, a família tradicional como o pilar da sociedade, a aversão liberal do indivíduo contra os impostos e o Estado, a visão coach da existência, as pérolas da filosofia de autoajuda dos vendedores e assim por diante, numa sucessão de valores que são empilhados a cada cena.

Todas as cenas fragmentadas parecem ser costuradas por esses valores – as únicas coisas que resistem à passagem do tempo. Valores tão sólidos quanto a sala de estar, que permanece a mesma e intocável.

A família negra da atualidade é deixada impessoal e segundo plano, concentrando-se na família Young, cujo patriarca é o ex-militar que combateu na Segunda Guerra Mundial e é a síntese dos valores americanos da nostálgica era de ouro dos anos 1950. 

Dessa maneira, Robert Zemeckis retorna ao zeitgeist da Era Reagan em De Volta Para o Futuro: o futuro da América é o futuro do pretérito – o resgate dos valores fundamentais da verdadeira América, no inventor-empreendedor dos anos 1940 e no otimismo patriótico (regado a muitos vermutes e martinis) da família Young dos anos 1950-60.

   Tudo garantido pelo seu principal guardião: o all american boy Tom Hanks.


 

 

Ficha Técnica 

Título: Aqui

Diretor: Robert Zemeckis

RoteiroEric Roth, Robert Zemeckis, Richard McGuire

Elenco:  Tom Hanks, Robin Wright, Paul Bettany, Kelly Reilly

Produção: Miramax, ImageMovers

Distribuição:  Image Films

Ano: 2024

País: EUA

 

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