Enquanto o filme anterior tomava o transtorno mental em veículo para uma entidade sobrenatural parasitária que vive da energia dos traumas, em “Sorria 2” (Smile 2, 2024) o Mal encontra a sua melhor performance na cultura das celebridades influencers, mais precisamente através do veículo dos traumas psíquicos de uma cantora pop. Ela está tentando retornar depois do inferno de drogas e depressão – o roteiro clássico fama. Mas não temos mais o Mal e nem a cultura da celebridade do século XX, mas o Mal viral, infeccioso e exponencial. Assim como os memes nas redes sociais. O Mal não precisa mais ser convidado para entrar, ele simplesmente infecta.
Dentro da evolução da Cineteratologia (o estudo das representações da monstruosidade e do Mal no cinema) é marcante a passagem das formas da disseminação do Mal da sedução para a contaminação ou infecção.
A sedução pela noite, a Lua e a sexualidade e erotismo que emerge desse imaginário noturnal marca as formas mais antigas através do qual o Mal invadia a vida cotidiana da moralidade vitoriana. Por exemplo, Drácula só pode entrar no lar da vítima se for convidado. É claro que a entidade das Trevas vai utilizar de todos os subterfúgios da sedução – explorar os pontos fracos como a sexualidade reprimida ou os conflitos familiares e desconfiança mútuas.
Assim como o fascínio pela idolatria, o culto pelas imagens. A Lei Mosaica dizia “não adorais imagens” – as imagens, em si, seriam perigosas por serem sedutoras, nos escravizando através da idolatria. O islamismo e o judaísmo proibiram o culto das imagens, ao contrário da Igreja Católica que, apesar dos alertas de Moisés, adotou as imagens (afrescos, esculturas, vitrais etc.) como a forma ideal de propaganda por meio da sedução. Assim como o Mal.
No pós-moderno acompanhamos uma transformação radical: o Mal se transforma numa entidade viral, infecciosa, exponencial. A entidade maligna que sofre uma espécie de neutralidade moral – ela não que confrontar Deus, a Moral ou a Religião. Quer apenas se disseminar como um vírus, replicar a si próprio como um fim em si mesmo.
A sequência Sorria 2 (Smile 2, 2024), assim como em Sorria (2022), coloca mais uma vez em cena essa mutação cineteratológica – uma entidade malévola que infecta a vítima após ela testemunhar o suicídio de uma pessoa anteriormente infectada. A nova pessoa infectada tem em média uma semana de vida. Até ser incorporada pela entidade e se matar também com o sorriso psicótico no rosto, diante dos olhos de uma nova vítima que perpetuará a corrente maligna de suicídios e traumas.
Esse mal informe (ele assume a forma ou incorpora qualquer um que testemunhe, transformando sua vida psíquica num inferno, até induzi-la ao suicídio com outra testemunha) acompanha uma importante transformação midiática, apenas sugerida no filme anterior. Mas que agora em Sorria 2 fica bem explícito: a passagem dos meios de comunicação de massas para as redes sociais – a primeira, lá no século XX, marcada pela Publicidade, que seduzia o consumidor/espectador pela sedução do seu desejo.
Enquanto as redes sociais do século XXI são marcadas pela disseminação viral da linguagem dos memes – esteticamente toscos, fora do campo da sedução estética ou da persuasão publicitária.
No primeiro Sorria a disseminação se dá através do trauma psíquico em um pronto-socorro psiquiátrico. Em Sorria 2, o Mal descobre a sociedade do espetáculo do século XXI, bem diferente do século anterior – a cultura das celebridades transformadas em influencers nas redes sociais.
Um ambiente marcado pelas selfies e muitos sorrisos. Na verdade, sorrisos nervosos que estão sempre em busca da aprovação dos likes e compartilhamentos. Afinal, o viral é a grande metáfora dos nossos tempos da busca por sociabilidade e gratificação por redes sociais. O sorriso como um fenômeno potencialmente viral que irradiaria positividade, bondade, amizade etc.
“Sorria, você está sendo filmado”. O sorriso como um fenômeno potencialmente viral que irradiaria positividade, bondade, amizade etc. Não há maior ironia do que o Mal sorrir com um esgar psicótico para atrair a atenção da próxima vítima da infecção.
Mas em Sorria 2, o Mal descobriu uma estratégia ainda mais eficiente e exponencial de contaminação: a cultura das celebridades e influencers da sociedade do espetáculo digital.
O Filme
O filme de Parker Finn começa com o destino de um personagem do primeiro filme, Joel (Kyle Gallner), que tem que passar sua maldição para outra pessoa e escolheu um traficante de drogas para ser a vítima em uma cena bem filmada de caos violento.
Um visitante não planejado chamado Lewis (Lukas Gage) acaba testemunhando a carnificina, tornando-se infectado por aquilo que só pode ser chamado de parasita, algo que se alimenta das inseguranças e traumas do hospedeiro para apresentar visões cada vez mais aterrorizantes, muitas vezes de pessoas que você conhece e ama fazendo coisas absolutamente horríveis com um sorriso no rosto.
Assim como o filme Corrente do Mal (2014), a incipiente franquia Sorria explora a ideia do psiquismo da vítima ser assombrado, ao invés de uma lugar ou uma casa que prepara uma série de armadilhas sombrias. A entidade parasitária toma como matéria-prima os traumas do hospedeiro para materializá-los em alucinações que, muitas vezes, se materializam como ameaça bem concreta.
Não demora muito para que Lewis esmague seu rosto em pedaços sangrentos com um peso de academia na frente da problemática estrela cantora pop Skye Riley (Naomi Scott), que está planejando um retorno após um ano de recuperação por causa de um acidente de carro que matou seu namorado Paul. Um acidente que foi o ápice de uma jornada de drogas, álcool e depressão – o roteiro esperado de uma celebridade pop sob as pressões inerentes da fama.
Em flashbacks e assombrações, Paul é interpretado por ninguém menos que Ray Nicholson, que parece ter herdado o mesmo sorriso malévolo de seu pai Jack que o tornou tão famoso em filmes como O Iluminado e Batman. E que supostamente inspirou este filme.
Skye deixou seu vício e tristeza para trás, mas a, por assim dizer, "Criatura do Sorriso", usa todas as suas inseguranças e fraquezas contra ela para deixá-la lentamente louca diante de assombrações em situações que misturam realidade e delírio.
Sua mãe/gerente Elizabeth (Rosemarie De Witt), assistente Josh (Miles Gutierrez-Riley) e o chefe da gravadora Darius (Raul Castillo) estão prontos para o retorno de Skye, mas seu estado mental cada vez mais frágil está tornando isso impossível.
Skye tenta se reunir com uma velha amiga chamada Gemma (Dylan Gelula), alguém em quem ela acha que possa confiar. Mas Sorria 2 não é apenas sobre uma assombração, é sobre crueldade. É sobre ser levado ao limite mental de maneiras que são física e emocionalmente inimagináveis. Seja pensando que ela vê um fã homicida e nu em seu apartamento ou uma visão do Paul morto na plateia em um evento de arrecadação de fundos, Skye está vendo a realidade se fraturar diante de seus olhos.
Diferente do filme anterior, em Sorria 2 é tematicamente mais ambicioso. O filme aborda ideias sobre vício e dependência, estrelato e solidão e a perda de controle que vem com ser acorrentado ao seu trabalho. Mas também se aproxima dos tropos do filme psicoGnóstico: pode haver um ser horrível puxando as cordas que manipulam a protagonista, mas a batalha ainda é interna, cheia de paranoia e auto repulsa – o parasita maligno parece fazer o hospedeiro ficar prisioneiro da revivência das cenas de traumas, da qual entidade tira sua energia.
Fica óbvia a intenção do Mal parasitário em tomar o psiquismo (e no futuro o próprio corpo) de uma estrela pop: fazer Skye se matar em um show, diante dos seus fãs, num lugar superlotado de testemunhas que serão infectadas numa escala absurdamente exponencial – imagine o vídeo da morte da celebridade viralizando na rede sociai do planeta.
Esteticamente, Sorria 2 aproxima-se do horror gore, lembrando bastante as sequências finais de A Substância, com Demi Moore. A tosquice de sangue e vísceras de muitas sequências, aproxima-se da própria estética dos memes: eles não seduzem, mas viralizam porque impactam, são grosseiramente paródicos e engraçados.
Do ponto de vista cineteratológico, o filme é um importante ponto de inflexão: representa a própria materialidade do porquê a representação do Mal se tornou viral e infecciosa: porque é essa a própria natureza da “media life” atual – o ecossistema digital em que ideias e imagens não mais se massificam pela sedução ou persuasão. Agora viralizam pelo choque, surpresa, espanto e, por que não, horror.
Ficha Técnica |
Título: Sorria 2 |
Diretor: Parker Finn |
Roteiro: Parker Finn |
Elenco: Naomi Scott, Rosemarie DeWitt, Lukas Gage |
Produção: Paramount Pictures |
Distribuição: Paramount Pictures |
Ano: 2024 |
País: EUA |