quinta-feira, março 07, 2024

A imortalidade de uma divindade hedonista enlouquecida em 'Divinity'


O que aconteceria com uma sociedade cuja tecnociência descobrisse a droga da imortalidade? Do corpo, não da mente, que continuaria em seu natural processo de envelhecimento. Resultado: o ser humano se tornaria uma divindade hedonista e enlouquecida através do poder fálico  eterno proporcionado por uma droga vendida como produto para poucos em comerciais na TV. “Divinity” (2023) é uma estranha ficção científica em p&b, uma alegoria enigmática de horror corporal com uma estética que faz homenagem ao expressionismo alemão de Fritz Lang. Sobre a descoberta da imortalidade que, de alguma forma, prejudicará o equilíbrio cósmico. Que fará o acerto de contas contra o cientista inventor do elixir. Um filme estranho para cinéfilos aventureiros.

O pânico da castração molda o psiquismo masculino. Persegue o homem como um fantasma. Na infância, o medo da castração literal. A explicação da diferença dos sexos é dada pela fantasia de crianças que já foram castradas (as meninas), partindo da premissa universal do pênis, louca crença infantil que não existe diferença entre os sexos, todos têm um pênis. Existe apenas um órgão genital, e tal órgão é masculino. A diferença é dada por aqueles que já foram castrados. E o pânico de quem poderá ser.

No adulto, o medo da castração não se manifestará dessa forma tão literal: a castração se manifestará no medo da impotência (seja sexual, financeira ou social). Por isso, o homem estará condenado a ter que provar continuamente que jamais será castrado, será empurrado para situações nas quais terá de, continuamente, provar a masculinidade e a potência fálica: no desempenho sexual atlético, nos ganhos financeiros, na habilidade em manipular símbolos de status e prestígio, no fetiche das armas, da violência etc.

Tudo isso é Freud, mais precisamente a discussão do chamado “complexo de castração” na Psicanálise. Freud criou a Psicanálise na era vitoriana da segunda metade do século XIX. Mas no século XXI, a busca da potência fálica torna-se mais, por assim dizer, tecnologizada. A busca da potência fálica definitiva e indiscutível: a imortalidade.

De certa forma, essa busca não é uma novidade. Por toda história, a elite tentou se perpetuar mesmo depois da morte. Como, por exemplo, na construção das pirâmides no Antigo Egito, dentro das quais os faraós levavam todas as suas riquezas, acreditando que continuariam a carregá-las na vida eterna após a morte.

Mas desde o Projeto Genoma, que prometia o mapeamento total do código genético humano, a engenharia genética e a biotecnologia conseguiram alcançar a interface final: a bioeletrônica ou o biodigital – a busca da imortalidade em duas frentes: a promessa da digitalização da própria consciência para fazer um upload final para um mundo digital mantido por uma inteligência artificial onipotente (o sonho da “Singularidade” dos engenheiros do Vale do Silício) ou a busca da saúde perfeita pela Big Pharma: através da IA procurar possíveis remédios capazes de frear o envelhecimento de, assim, também combater doenças como fibroses, tumores, inflamações e artroses – clique aqui.

Bye, Bye castração final da morte! Agora, através da tecnologia, teremos acesso à potência fálica decisiva. Mas para poucos: uma elite essencialmente masculina – afinal, aqueles mais aterrorizados pelo fantasma da castração.

Esse é o argumento central da fantasia excêntrica de Divinity (2023), segundo longa-metragem de Eddie Alcazar (Perfect, 2018), uma ficção científica estranha em preto e branco, uma alegoria enigmática de horror corporal com uma estética que faz homenagem ao expressionismo alemão de Fritz Lang.



Um pesadelo que imagina um futuro no qual um elixir feito pelo homem interrompe a decadência física, permitindo que os seres humanos alcancem o status divino. Vendido em uma garrafa de vidro brilhante e anunciado na TV, a imortalidade foi mercantilizada e nomeada como “Divinity” em um frasco parecido como aqueles de perfumes. Claro, uma mercadoria de altíssimo valor agregado que só poucos poderão adquirir.

O resultado é uma distopia hedonista em que toda a ação se passa numa imponente mansão cercada por majestosas formações rochosas em uma vasta paisagem desértica – o local em que o cientista desenvolvedor da droga produz a “Divinity” e goza da sua potência fálica eterna em festas regadas com a própria droga e mulheres convidadas e participar do seleto grupo da imortalidade, consumindo também o elixir.

De alguma maneira, essa imortalidade que conduz o homem à divindade perturbará a ordem cósmica. Que fará um acerto de contas contra esse desequilíbrio criado pela tecnologia humana.

O Filme

Divinity abre com flashbacks, em que acompanhamos o cientista Sterling Pierce (Scott Bakula), descrevendo seus experimentos químicos ainda estavam em andamento no momento de sua morte prematura. Seu filho Jaxxon (Dorff) não só conclui os experimentos incompletos como também fabrica e comercializa “Divinity”, um líquido administrado por via oral em um frasco do tipo perfume. A droga concede um tipo de imortalidade que aumenta a perfeição física, atlética e sexual, mas ainda não faz nada para retardar o processo de envelhecimento da mente ou expandir o intelecto. 

Esta aplicação muito comercial, promovida em anúncios frequentemente vislumbrados (parecendo clipes de TV paródicos), provavelmente não era o que o falecido pai idealista de Jaxxon pretendia para o trabalho de sua vida. 



Mas claramente serviu bem ao filho, que fabrica a droga e vive em sua grande mansão no deserto, agendando garotas de programas para sua diversão, enquanto observa na tela do seu laptop os frascos de “Divinity” serem preenchidos.

E é num intercurso sexual barulhento com uma garota que Jaxxon não percebe através das câmeras de vigilância a violação de segurança do complexo: dois irmãos (Moises Arias e Jason Genao) invadem a mansão. Eles parecem ter chegado de algum lugar fora do planeta. Vieram fazer um acerto de contas com o ganancioso cientista – de alguma forma imortalidade humana trouxe algum tipo de desequilíbrio cósmico.  

E os irmãos que assumiram a forma humana estão ali para resolver o problema. Mas também punir exemplarmente Jaxxon: tomam ele como refém para injetar nele doses cavalares da própria droga, até matá-lo. Porém, o efeito será monstruoso levando o filme do sci-fi para o horror físico.

A fotografia em preto e branco nas cenas do complexo do cientista claramente prestam uma homenagem ao estilo cinematográfico de Fritz Lang: longas sombras, fortes contrastes lembrando cenas do clássico Metropolis.



Paralelo a esse plot, em algum lugar indefinido (provavelmente até outro planeta) vemos a atriz Bella Thorne (vestida com uma roupa que faz alusão à música de Kyle Minogue no videoclipe futurista “Can't Get You Out of My Head”) lidera um grupo de mulheres encarregadas de resgatar outras pessoas que, como elas, evitaram mudar a biologia de seus corpos através da droga “Divinity”. A fertilidade se torna o maior exemplo de autenticidade diante de vidas artificialmente prolongadas.

Há uma qualidade tátil retrô em Divinity, situada em algum lugar entre o filme B dos anos 1950 e o surrealismo. Uma batalha final combina animação em stop-motion com imagens de ação ao vivo, uma técnica que o cineasta chama de “Meta-Scope”. 



É um efeito deslumbrante que invoca a magia do lendário trabalho de Ray Harryhausen (O Monstro do Mar, A Nova Viagem de Simbad etc.) enquanto o revigora para os tempos modernos. Um exemplo de como o diretor do filme está autoconsciente da bizarrice do conceito da sua produção – definitivamente, Divinity entra na categoria dos Filmes Estranhos (“Weird Movies”) – sobre esse clique aqui

O mais interessante no filme Divinity é a sua explícita crítica à sociedade de consumo tecnologizada: a imortalidade é apenas do corpo, seus músculos e a potência sexual. O que não impede da mente e a capacidade cognitiva envelhecerem naturalmente. Criando um descompasso cuja consequência é o hedonismo selvagem e a perda de qualquer perspectiva ética e moral. Para começar, na própria tecnociência.

O resultado é frankensteiniano: a overdose forçada de Jaxxon que se transforma numa aberração musculosa. E o círculo de amizades do cientista que circula pela mansão: um grupo de homens hiper-mega-bombados com um cérebro do tamanho de uma noz. Exibindo seus corpos imortais para garotas de programa.

Mas há ainda um segredo sinistro que envolve a fabricação de “Divinity”. Algo que tem a ver com a própria queda da taxa de fertilidade do planeta: imortais, ninguém quer mais ter filhos e a esterilidade se abate sobre a maioria dos seres humanos. 

Mas isso é uma coisa que o espectador descobrirá por conta própria e risco.


 

Ficha Técnica

 

Título: Divinity

Diretor: Eddie Alcazar

Roteiro:  Eddie Alcazar

Elenco: Bella Thorne, Stephen Dorff, Scott Bakula, Moises Arias, Jason Genao 

Produção: Divinity The Film

Distribuição: Utopia

Ano: 2023

País: EUA

 

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