terça-feira, março 19, 2024

"Zona de Interesse": quando a banalidade do mal vira 'banalidade do bem' na sociedade atual


Oscar de Melhor Filme Internacional, “Zona de Interesse” (The Zone of Interest, 2023) se diferencia de todas outras produções premiadas sobre o nazismo e o Holocausto como A Vida é Bela, O Pianista, O Filho de Saul etc. Vai além da época que pretende retratar. E a fala do diretor Jonathan Glazer na cerimônia do Oscar foi totalmente coerente com o seu filme: “Todas as nossas escolhas foram feitas para refletir e nos confrontar no presente. Não para dizer ‘olhe o que fizeram na época’, mas para olhar o que fazemos agora”, criticando o genocídio de Israel em Gaza. A família de um oficial da SS vive uma vida bucólica e pastoral, indiferentes ao que ocorre do outro lado do muro da propriedade: o genocídio de Auschwitz. A poucos metros do Holocausto, acompanhamos uma típica vida de classe média de comerciais de margarina na TV. Glazer tem um conceito radical: e se a banalidade do mal se transformou em uma “banalidade do bem” na sociedade de consumo pós-guerra?

Premiado no Oscar 2024 (Melhor Filme Internacional e Som), Zona de Interesse (The Zone of Interest, 2023) para muitos é mais um filme sobre o capítulo horrível do Holocausto na História, ao lado de uma lista de produções como Noite e Nevoeiro, A Lista de Schindler, O Pianista, Cidade Ocupada etc.

Outro apontam como grande diferencial do filme de Jonathan Glazer, vagamente baseado no livro de 2014 de Marin Amis, a perfeita figuração cinemática do conceito de banalidade do mal da filósofa Hannah Arendt – a recusa (ou a indiferença) do caráter humano em assumir por iniciativa própria as consequências dos seus próprios atos.

A família de um oficial da SS mora confortavelmente em um casarão com sua esposa e filhos, cercado por um jardim espaçoso, uma piscina ao lado de um escorregador de água, colmeias, estufas e grandes hortas de legumes e canteiros de flores meticulosamente bem cuidados – vivendo um cotidiano idílico de piqueniques às margens de um rio próximo e encontros sociais regados a licor. 

Tudo seria normal, não fosse que o muro coberto por arame farpado que fica atrás do casarão separa a propriedade (a “zona de interesse”), nada mais nada menos, do mais sinistramente famoso campo de concentração da História, Auschwitz. Com suas chaminés fumegando 24 horas por dia a morte em escala industrial de judeus nos crematórios. Ouve-se à distância gritos, tiros, marchas de soldados e a intensa movimentação de caminhões trazendo prisioneiros. Mas nada que abale o cotidiano bucólico da “zona de interesse”.

Mas há algo mais. Algo que incomodou este humilde blogueiro. Até visualizarmos esse muro cinzento de concreto e arame farpado, além do espectador tomar consciência do terror que cerca a vizinhança, parece que estamos acompanhando uma típica vida de uma família de classe média suburbana, isto é, desses condomínios fechados vendidos por comercial de TV de margarina. Aquilo que ficou conhecido como “o sonho americano” ou o “american way of life”, irradiados para o planeta pela sociedade de consumo dos EUA.



É notório como no pós-guerra os ilustradores publicitários americanos emularam o estilo das ilustrações dos cartazes publicitários nazistas – principalmente aqueles que figuram rostos sorridentes de arianos perfeitos. 

Mais do que isso, tentaram reproduzir no sonho americano urbano o estilo de vida idílico pastoral do imaginário nazista da raça pura retornando aos valores da terra, família e sangue. Basta uma rápida comparação semiótica da propaganda política e da publicidade para percebermos isso - veja imagens acima.

Em Zona de Interesse, o oficial, comandante do campo de Auschwitz Rudolf Höss (Christian Friedel) e chefe daquela família acredita que está cumprindo uma sagrada missão de Hitler: a colonização ariana do Leste Europeu – o campo de Auschwitz (hoje transformado em museu) fica na Polônia.

 Esse viés de Jonathan Glazer (que vai muito além do livro de Amis) confere uma complexidade maior ao conceito de banalidade do mal: e se o “sonho americano” (casa, jardim, piscina, carro na garagem e cercado de gadgets tecnológicos comprados em um shopping mall) for a própria extensão da banalidade do mal no pós-guerra?  A vida perfeita dentro de bunkers suburbanos (condomínios e shopping centers) que nos separam da violência, desigualdade e a miséria social no qual todo o luxo consumista de sustenta. Mais do que isso, evitando que olhemos diretamente para o Mal.

A proximidade desse paraíso pastoral com o campo de Auschwitz (cujos vários edifícios pontilham a vista) é um choque baseado em fatos históricos.

A verdadeira família Höss, assim como suas contrapartes fictícias, vivia no complexo de Auschwitz, uma faixa de cerca de 15 milhas quadradas de tamanho que abrigava diferentes campos em uma área chamada “Interessengebiet” ou “zona de interesse”. 



A casa estava escondida perto de um canto do campo mais antigo, Auschwitz I, que tinha quartéis de prisioneiros, forca, uma câmara de gás e crematório. Depois que Höss foi preso em 1946, ele escreveu que “minha família estava bem em Auschwitz, todos os desejos que minha esposa ou meus filhos tinham foram realizados. As crianças corriam livres e minha esposa tinha seu paraíso de flores”. 

Ele foi enforcado em Auschwitz em 1947, não muito longe de onde a família morava. 

O Filme

O período do tempo em que se passa aa adaptação de Glazer é vago, embora pareça ocorrer principalmente em 1943 antes que o verdadeiro Höss fosse transferido para outro acampamento. 

O filme abre em uma tela preta acompanhada por uma música lúgubre, uma longa abertura que dá lugar a uma cena pacífica em um rio com um grupo de pessoas em trajes de banho. Eventualmente, eles se vestem e vão embora.

Grande parte do resto do filme acontece na casa da família Höss, onde as câmeras cuidadosamente emolduradas e muitas vezes fixas de Glazer, gravam as crianças brincando enquanto os pais conversam e às vezes discutem. Você vê Rudolf indo trabalhar no acampamento enquanto a esposa Hedwig Höss (Sandra Hüller) supervisiona a casa. 

A realidade de horror que cerca esse paraíso doméstico aparece pontualmente. Como quando observamos um dos prisioneiros, que faz as vezes de empregado da família, silenciosamente adubando, com cinzas humanas dos crematórios, os jardins floridos. 

Logo somos apresentados à casa dos sonhos deles, uma alta estrutura de concreto cercada por espaços luxuosos. Do outro do muro farpado está o próprio acampamento de prisioneiros. Com exceção de uma única cena - um ângulo contra-plongée de Rudolf, emoldurado por fumaça preta dos fornos ao fundo - nunca vemos realmente dentro do acampamento. 

Em vez disso, os espectadores são convidados a visualizar auditivamente o horror na vizinhança – não por menos o filme ganhou o Oscar técnico de Melhor Som.



A família Höss vive ao lado do genocídio em curso, mas nunca comenta os gritos horríveis ou o cheiro da morte nas proximidades. Assim, há uma frieza que se infiltra na falta de sentimentalismo do filme. Eles criam seus filhos sob o pretexto de normalidade - Rudolf conta histórias de fadas aos seus filhos antes de dormir, os leva a passeios a cavalo e participa de outras atividades pastorais. 

Toda essa frieza e indiferença de Rudolf é premiada: ele é promovido a comandante geral de todos os campos de extermínio e será transferido de Auschwitz para Oranienburg. Surge uma tensão doméstica: a esposa Hedwig quer permanecer na “casa dos sonhos” com seus filhos. Rudolf aceita ir sozinho. Afinal, sua família está realizando o sonho programático de Hitler: espalhar a raça ariana pelo Leste europeu.



Uma banalidade do bem? – Alerta de Spoilers à frente

O final do filme é irônico. O que fez reforçar a percepção inicial desse Cinegnose sobre a analogia entre o estilo de vida ariano e o sonho americano.

Rudolf recebe a notícia de que ele será pessoalmente responsável pela maior operação de transporte de prisioneiros da guerra: milhares de judeus que serão transferidos por trem da Hungria para os fornos de Auschwitz. 

A cena é cortada para o museu atual em que se transformou Auschwitz. Glazer filma funcionários limpando com vassouras e aspiradores de pó o interior de uma antiga câmara de gás e nos corredores onde estão em exibição pilhas de sapatos, muletas e outros dispositivos médicos e uniformes dos presos. 



Tudo muito asséptico e preciso, para tornar o lugar apresentável para a visita dos turistas. Glazer parece sugerir que existe tal coisa como uma espécie de “banalidade do bem”, que também torna o Mal silencioso e abstrato. 

Auschwitz se tornando parte de um roteiro turístico mórbido, em que transforma uma tragédia histórica em mais uma atração em um roteiro de consumo. Algo parecido como as violentas favelas do Rio (como a da Rocinha, p. ex.), transformando o caos urbano brasileiro em atração turística para gringos – algo como fazer um passeio turístico pelas selvagens savanas africanas.

Esse final irônico proposto por Glazer parece reforçar o conceito inicial do filme: a extensão da banalidade do mal através da sociedade de consumo do pós-guerra – a bunkerização urbana dos condomínios fechados, shopping centers etc. A promessa para poucos de uma vida idílica, familiar, entre os iguais, perto da natureza e longe do caos urbano resultante da desigualdade e exploração que sustentam esse estilo de vida elitizado.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Zona de Interesse

Diretor:  Jonathan Glazer

Roteiro:  Jonathan Glazer e Martin Amis

Elenco: Christian Fiedel, Sandra Hüller, Johann Karthaus

Produção: A24, Access Entertainment, Film4

Distribuição: A24

Ano: 2023

País: Reino Unido, Polônia

 

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