sábado, maio 20, 2023

'Sick of Myself': cultura do narcisismo ou como esquecer quem você já foi um dia


Até onde podemos chegar para ganhar atenção e aprovação dos outros? E se o custo para conseguir isso for performar um eu até você esquecer quem já foi um dia? A comédia dramática norueguesa “Sick of Myself” (2022, disponível na plataforma MUBI) discute a cultura do narcisismo contemporâneo que chega ao auge na cultura influencer das mídias sociais. O filme cria uma metáfora poderosa: o narcisismo como deflação do ego - quanto mais se aproxima da fama, mais literalmente o corpo se auto consome e se destrói; ou a fronteira com a ilegalidade desaparece. “Sick of Myself” joga com a reversibilidade irônica do narcisismo moderno: ao invés do excesso de ego, quanto mais procuramos o centro das atenções e a aprovação dos outros, mais somos ameaçados pela desintegração e o vazio interior.

Em uma sociedade de massas, que evolui para a de consumo, e hoje consome-se a si própria através das mídias sociais, a individualidade e a identidade tornaram-se problemáticas. Isso porque somos julgados (por colegas e superiores no trabalho, pelos estranhos com os quais cruzamos nas ruas ou pelas selfies que postamos nas redes sociais) através das nossas posses, estilo de vida ou pela nossa “personalidade” – na verdade, o resultado da nossa performance, a visão teatral que criamos de nós mesmos.

Se no passado a ética do trabalho protestante fundamentava o espírito do capitalismo e a individualidade (baseada no “caráter”, isto é, no registro público das realizações pessoais em um mundo público durável, sólido e que sobrevive à vida e que emite diante dela um julgamento ético ou moral), hoje a “personalidade” ou “individualidade” é uma escolha aberta. Dependente das modas ou tendências do momento, mas, principalmente, do impacto da performance da pessoa (pensada como “usuário” nas redes) no ambiente “público” (agora privatizado pelas Big Techs).

O “ser substituído pelo ter” e “cultura da fama e do narcisismo” são as críticas mais comuns contra esse estado de coisas. Porém, ainda é uma crítica moralista que coloca a culpa no indivíduo – do tipo “consuma, mas com responsabilidade!”. Ou acusa o crescimento do “egoísmo” na sociedade, confundindo o termo com “narcisismo” no sentido de inflação ou excesso do ego.

Esse tipo de crítica perde de vista que a dinâmica é exatamente o contrário: na verdade, clinicamente, o narcisismo significa uma perda da individualidade e não autoafirmação egóica – refere-se a um eu sempre ameaçado de desintegração devido a uma sensação de vazio interior. 

Como define o crítico cultural e historiador Christopher Lasch, narcisismo é sobrevivencialismo: a luta cotidiana e desesperada para conseguir a aprovação do entorno – atenção, likes e compartilhamentos nas redes, a aprovação de um olhar abstrato e coletivo pela sua auto performance ou autogestão do ego. O rendimento ótimo de uma espécie de empreendedorismo de si mesmo. 



O que leva a auto corrosão do caráter e a própria destruição do ego: ao tentar ser aquilo que acha que todos esperam de você, acaba esquecendo daquilo que foi um dia – leia LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo, Imago, 1979; e O Mínimo Eu, Brasiliense, 1985.

Certamente uma das produções que mais dramaticamente (mas com muito humor negro) descreve esse traço contemporâneo é o filme norueguês Sick of Myself (2022), uma sátira de Kristoffer Borgli (disponível na plataforma MUBI) sobre uma barista chamada Signe (Kristine Kujath Thorp) possuída por delírios de grandeza e a obsessão em se tornar alguém chamando a atenção de todos. Ela e seu namorado, Thomas (Eirik Saether), um artista conceitual arrogante que faz instalações a partir de móveis roubados, vivem uma competição velada sobre quem consegue chamar mais a atenção do que o outro.

Uma competição que começa a partir do círculo de amigos. Para terminar de forma autodestrutiva tentando a busca de notoriedade e fama na própria sociedade como um todo. 

A grande metáfora de Sick of Myself é que quanto mais se aproxima da fama, mais literalmente o corpo de Signe se auto consome e se destrói, enquanto o seu namorado cada vez mais ultrapassa a fronteira da ilegalidade. De um lado o horror corporal, e do outro a soma de pequenos delitos que vão formar um quadro em que a arte se confunde com o crime, levando Thomas para a cadeia.

A metáfora da autodestruição como representação da cultura do narcisismo contemporânea como esvaziamento do próprio ego – um processo de deflação psíquica que conduz ao esvaziamento da identidade. 



O Filme

Um jovem casal atraente se senta no centro de um restaurante chique na Noruega. Signe e Thomas não parecem especialmente apaixonados, mas estão se divertindo o suficiente com uma sobremesa de aniversário e uma garrafa de vinho de US$ 2.300. No final da refeição, Thomas diz a Signe para fingir atender uma ligação do lado de fora. Quando ela sai do restaurante, ele rouba o que sobrou da garrafa e sai correndo pela rua com um garçom irado atrás dele. 

Signe, ignorada na calçada, parece incrédula enquanto o garçom passa por ela depois de perder Thomas. Ela se ressente de não ser reconhecida, mesmo que acabasse envolvendo-a no roubo. Mais tarde, enquanto Thomas celebra seu assalto entre amigos em uma festa, Signe observa com ciúmes, de fora do centro das atenções. Naquele momento, encontramos o verdadeiro casal infeliz, competitivo e autodestrutivo disputando os cobiçados holofotes em Sick of Myself.  

O incidente do vinho é apenas a primeira de muitas acrobacias que Thomas e Signe farão para chamar a atenção, a princípio, um do outro. Para depois disputarem o centro da atenção dos amigos. Para em seguida ambicionarem a fama nos meios de comunicação e redes sociais. 

O roteiro do filme é sobre um conto de dois narcisistas: elegantes, mas ocos; bonitos, mas grotescos se chegarmos perto deles.

Signe (numa interpretação da atriz totalmente comprometida com o narcisismo louco da personagem) está descontente com o sucesso artístico de seu namorado escultor, Thomas. O que significa que ela não é mais o centro das atenções – ele começa a atrair a imprensa especializada e editoriais fotográficos.



Desesperada para trazer o foco de volta para si mesma, Signe consome secretamente um medicamento russo proibido (comprado para ela na dark web por um nerd de computador secretamente apaixonado por ela), uma droga que havia sido retirada do mercado depois de causar erupções cutâneas horríveis e desfigurantes. 

Começam então a surgir vergões e feridas inexplicáveis no rosto e no corpo de Signe, confundindo os médicos que não conseguem um diagnóstico. Pela bizarrice da “doença rara”, Signe, começa a ganhar a celebridade que ela tanto anseia.

Recusando o tratamento médico, ela afirma que sua aflição é completamente misteriosa — a primeira de seu tipo — e depois elimina sua bandagem de cabeça para mostrar seu novo visual em toda a sua glória monstruosa. 

Ela inunda seus canais de mídia social com selfies que exaltam sua bravura e resiliência, e chama um amigo jornalista sob o pretexto de querer normalizar sua condição.

Imagine o personagem desfigurado do filme Homem Elefante (1980) com um talento para autopromoção e uma compreensão moralmente duvidosa de como criar capital social.



Uma tragédia perversa de loucura na qual Signe explora sua própria doença para conseguir tudo, desde uma história de capa de jornal até um contrato com uma agência de modelos que promove a representação da beleza não convencional. 

O filme constrói uma visão nada sutil da cultura da vitimização, tanto quanto procura gerar humor ultrajante a partir do senso das prioridades cada vez mais absurdas de Signe. Um caso extremo de síndrome do personagem principal, que Sick of Myself conecta ao narcisismo tóxico subjacente a várias facetas da existência moderna.

Quanto mais perto Signe fica da fama, mais seu corpo se quebra: ela não consegue engolir nada sem precisar jogar a cabeça para trás como um pelicano. Ela também de repente vomita sangue. Com essas e outras cenas de terror corporal,toda vez que acreditamos que Signe atingiu seu ponto de ruptura. Mas ela persevera e se supera. 

É muito engraçado no começo, mas depois fica perturbador. 

O ritmo de edição intencionalmente agitado permite que a narrativa frequentemente surpreenda o espectador. Principalmente pelas fantasias de Signe que pontuam o filme, sendo a mais obscena o seu próprio funeral encenado como um evento V.I.P. Eventualmente, essas visões não parecem tão diferentes da vida de Signe, criando um limite desfocado entre as fantasias e a realidade. 

Signe mente sistematicamente para manter o controle da sua própria narrativa, o que deforma seu relacionamento com seu próprio corpo e identidade. Ela é incapaz de entender a seriedade de suas ações — em outras palavras, a própria realidade.

As teses de Christopher Lasch sobre a cultura do narcisismo significando a perda da identidade e do ego ameaçado pela desintegração por um sentido de vazio interior, foram formuladas na década de 1980, num contexto de uma sociedade de consumo ainda estruturada pelos meios de comunicação de massa.

Hoje, a nova cultura dos influenciadores (no lugar das celebridades do século passado) apenas potencializa os diagnósticos de Lasch no século XX.

Mesmo as críticas de Lasch ao narcisismo como um “eu mínimo” (e de resto, toda a sociologia de clássicos norte-americanos como David Riesman e seus estudos sobre a “multidão solitária”), já eram atualizações da ideia de Freud que saltava das páginas de “Psicologia de Massas e Análise do Ego”, de 1921: mais do que a morte, do que a espécie humana mais teme é a solidão. 

Essa necessidade de aprovação e aceitação pelo outro chega ao paroxismo na atualidade com a cultura influencer das redes e mídias sociais: o desespero por atenção que acaba por autoconsumir o ego. 


 

Ficha Técnica 

Título: Sick of Myself

Diretor: Kristoffer Borgli

Roteiro: Kristoffler Borgli

Elenco: Kristine Kujath Thorp, Eirik Saether, Fanny Vaager

Produção: Garage Film International, Oslo Pictures

Distribuição:  MUBI

Ano: 2022

País: Noruega

 

 

 

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