quinta-feira, maio 18, 2023

Série 'Stalk': o mundo digital é o inferno pavimentado por boas intenções


O marketing da inteligência artificial, por trás desde câmeras de reconhecimento facial até plataformas de streaming, nos informa que os algoritmos têm uma natureza técnica, neutra e imparcial. Mas, e se os algoritmos forem apenas opiniões codificadas? E se o mundo digital for na verdade um inferno pavimentado por boas intenções? Essas são dúvidas deixadas para o espectador na série francesa da HBO Max "Stalk" (2019- ). Além da paranoia e o impulso de deixar para sempre uma fita adesiva no smartphone e no laptop. A série é um verdadeiro curso acelerado em segurança cibernética – como pegar linha de código e listas de IPs, mentir e manipular para obter aquilo que mais queremos: o poder e o amor. Um geeker é humilhado no trote da universidade e decide utilizar seus conhecimentos hacker para um plano de ciber vingança: o que você faria se tivesse uma mini-NSA nas suas mãos?

Em meados dos anos 1990, os cientistas políticos Arthur Kroker e Michael Winstein descreveram de forma crítica o nascimento da chamada classe virtual, formada pela tecno-inteligência de cientistas da cognição, engenheiros, cientistas da computação, criadores de jogos eletrônicos e todo um conjunto de especialistas em comunicação.

Como em todas as variações da classe burguesa, os pesquisadores canadenses encontravam no imaginário dessa tecno-elite que nascia o que denominavam de “masculinidade pré-adolescente: “pensamentos de pequenos garotos achando que poderão controlar o mundo, mas agora o mundo é o ciberespaço. O sonho de ser deus do ciberespaço – ideologia transformada em fantasia de garotos pré-adolescentes: uma regressão do sexo para uma forma autística de poder” (KROKER, Arthur & WEINSTEIN, Michael. Data Trash: the theory of the virtual class. N. York, St. Martin Press, 1994, p. 11.).

É a primeira geração dessa ciber-elite, a geração de Bill Gates e Steve Jobs, que ainda mascaravam esse imaginário com um discurso de relações públicas messiânico, como o discurso da “estrada do futuro” de Gates.

Isso começa a mudar com a segunda geração, com a figura emblemática de Mark Zuckenberg e a sua rede social Facebook - um jovem nerd de Havard, gênio em algoritmos e linguagem de programação, com uma grande dificuldade em se comunicar e estabelecer uma rede de relacionamentos, desconta sua ansiedade difamando pessoas em um blog enquanto tem uma ideia divertida, pelo seu ponto de vista: um jogo com as fotos de todas as moças da universidade para que as pessoas possam escolher qual a mais bonita. Assim nasceu o Facebook.

Enquanto outros donos de big techs como Elon Musk e Jeff Bezos não escondem a impulsividade adolescente: um brinca de apoiar golpes de Estado e apoiar o fascismo politicamente incorreto no Twitter e o outro, junto com seu irmão, se divertem como astronautas com o foguete Blue Origin.

Essa elite geek chega à terceira geração, inspirados em piratas cibernéticos como Julian Assange, Edward Snowden ou o coletivo hacker Anonymous. Ciber-segurança, back-doors, malwares e instruções algorítmicas executadas diretamente no processador, hackers, crackers e black hats, ciber ataques etc. passam a ocupar o vocábulo dessa nova geração – certamente impulsionada pela ciber-inteligência por trás das guerras híbridas geopolíticas das últimas décadas (NSA, CIA) e o papel dos hackers nas eleições nos EUA (Trump) e Brasil (Bolsonaro).

O episódio da série Black Mirror “Shut Up and Dance” (no qual um jovem é chantageado depois da câmera do seu laptop ter sido hackeada) é uma das produções recentes que melhor retratou esses novos tempos de ciber-ataques, ciber-bullyings e ciber-crimes.



Mas ainda melhor, é a série francesa Stalk (2019- ), criada por Simon Bouisson, pelo seu realismo, pedagogia e um roteiro enxuto. Composto por duas temporadas, com 20 episódios de 30 minutos em média, a série é um verdadeiro curso acelerado em segurança cibernética – como pegar linha de código e listas de IPs, mentir e manipular para obter aquilo que mais queremos: o poder e o amor. 

Assim como na arte gráfica que abre cada episódio, após assistir à série todo espectador ficará paranoico a ponto de colocar um pouco de fita adesiva em volta do seu smartphone ou na câmera do laptop – como diz o protagonista da série, “a fita adesiva é a criptonita do hacker”.

Stalk é uma mistura do imaginário hacker ativista de Mr. Robot e A Rede Social de David Fincher, sobre o nascimento do Facebook. Porém, sem o contexto político do primeiro e a tino empresarial do segundo. Stalk narra de forma urgente como as linhas dos algoritmos nada têm de técnicas ou neutras, como promove a propaganda atual dos aplicativos e plataformas. Apenas dão maior alcance e poder de destruição para o demasiado humano: mentiras, boatos, manipulação, chantagem, bullying e dominação.

A Série

O argumento é simples: Stalk conta a história de Lucas (Théo Fernandez), também conhecido como Lux, um estudante de ciência da computação na Escola Nacional Superior de Engenharia de Paris que, durante o trote e festa para os calouros, sofre bullying e é humilhado ao postarem na rede do campus um vídeo no qual está embriagado e, sem saber, toma um copo com urina. 



Porém mexeram com o estudante de computação errado.  Lux é um codinome hacker de Lucas nas profundezas da Internet. Através das suas habilidades acima da média, decide se vingar de Alex (Pablo Cobo), o filhinho de papai arrogante e presidente do Centro Acadêmico que comandou todo o trote. 

A partir desse ponto, Stalk passa a descrever didaticamente como se inicia o stalk e assédio eletrônico, a partir do que Lucas chama de “vetor inicial” – através da busca de informações da vítima em fotos do seu perfil no Instagram, encontrar seus gostos e hobbies preferidos. Para, a partir daí, criar a isca para hackear a câmera de smartphones e laptops.

Na primeira temporada acompanhamos ascensão, queda e redenção de Lucas: como o seu jogo vingativo acaba dando tão certo que, paradoxalmente, acaba se voltando contra ele. Isto é, voltando-se contra seu próprio “vetor inicial”: a sua paixão por Alma (Carmen Kassovitz), a ex-namorada de Alex, cujo sonho e fugir da sua própria vida, morando no Canadá. 

É inegável como Lucas vai adquirindo um complexo de Deus, quando consegue hackear todos os smartphones e câmeras de vigilância do campus. Porém, um demiurgo solitário: como um geeker clássico, com dificuldades familiares e de relacionamentos sociais. Vê em Alma, alguém com quem se identificar – também solitária, perdida e distante da família, tentando fugir de si mesma. 



Alma será a peça-chave da sua queda, arrependimento e redenção. Dando a deixa para a segunda temporada: como resistir à embriaguez do poder e de ser um deus onipotente? Essa é a aposta nesta segunda temporada em que desta vez, como desculpa, Lux trata de se defender de um rival tão talentoso, se não mais, do que ele, no mesmo campus - o “White Duck” (Aloïse Sauvage). Como cumprir uma promessa, feita a quem mais ama de que jamais hackeará novamente, quando o vício se revela mais forte do que tudo e que de repente passa a ter uma justificativa?

O que impressiona ao longo da série falta de “higiene digital” dos usuários. Isto é, como somos capazes de expor toda a nossa privacidade num dispositivo no qual apenas manipulamos a interface, como fosse um mero eletrodoméstico – sem termos o menor conhecimento das linhas algorítmicas maliciosas que estão por trás da fina camada colorida de ícones. E como as linhas de comando ocultas nos manipulam e direcionam nosso olhar, clicks, deslizar de dedo na tela, decisões e compulsões.



Olhando demais para as telas frias e pixeladas dos celulares, onde cada pessoa é apenas mais uma linha de código, os personagens de Stalk esquecem que estão lidando com seres reais, com um passado complexo, com sofrimento muito real. As alucinadas sequências de traições, pornografia, vingança e outros assédios cibernéticos atravessam os episódios como um todo digital desumanizado. Lux, Charlie e outros hackers, apanhados num turbilhão tecnológico fincheriano, aprendem a derrubar o filtro para olhar melhor para seus alvos.

Stalk explora as consequências do encontro entre ultra transparência dada pelas linhas algorítmicas e os baixos instintos humanos, além de encenar os limites éticos desse poder. O inferno digital é pavimentado com boas intenções, como mostra a segunda temporada.

E nos pergunta: o que faríamos se tivéssemos um mini-NSA em nossas mãos?


 

 

Ficha Técnica 

Título: Stalk (série)

Diretor: Simon Bouisson

Roteiro: Simon Bouisson,Jean-Charles Paugam

Elenco: Théon Fernandez, Carmen Kassovitz, Pablo Cobo, Clément Sibony

Produção: Silex Films

Distribuição:  HBO Max

Ano: 2019-

País: França

 

 

 

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