quinta-feira, maio 25, 2023

O Capitalismo nos levará à nova Idade Média em 'Vesper'


“Vesper” (2022), co-produção franco-belga-lituana, não é apenas mais um ficção científica pós-apocalipse. Contrastando com o realismo capitalista das produções do gênero (é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do Capitalismo) em Vesper a maior ameaça foi o próprio Capitalismo: as formas artificiais de criar escassez para agregar valor cada vez maior às mercadorias acabaram com o meio ambiente e com o próprio Capitalismo, jogando o mundo em uma nova Idade Média. Uma ameaça muito maior do que a queima de combustível fóssil: a manipulação genética de sementes. Em seu pequeno laboratório, uma jovem tenta desbloquear o código DNA de sementes que produzem colheitas estéreis. Para todos ficarem dependentes de novas sementes vendidas por uma elite de cidades fortificadas. Exatamente como faz hoje conglomerados agroquímicos como a Monsanto e Bayer. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende. 


No começo dos anos 1970 o pesquisador italiano Roberto Vacca publicou um inquietante livro chamado “A Próxima Idade das Trevas: haverá um Idade Média próxima e vindoura?”. 

Vacca alertava para a degradação dos grandes sistemas tecnológicos que, em muitos aspectos, lembrava a queda do Império Romano que deu origem às trevas da Idade Média: sistemas demasiado vastos e complexos para serem controlados por uma autoridade central e mesmo individualmente por uma iniciativa empresarial. Fadados ao fracasso pelo gigantismo e descoordenação, esses sistemas entram em colapso provocando o recuo de toda uma civilização industrial.

Especialista em Idade Média, outro pesquisador italiano, Umberto Eco, expandiu essa tese central de Vacca, criando um roteiro bastante atual e plausível de como estaríamos caminhando a passos largos para uma nova Idade Média: o colapso da “Pax Americana” (atualmente, o Grande Reset Global do Capitalismo), deterioração ecológica, neonomadismo (semelhante aos peregrinos medievais nos caminhos místicos em busca de iluminação, hoje ecoturistas vagam por rotas exóticas – escaladas, caminhadas, pedaladas etc. – em busca de iluminação da autoajuda), insegurança, vagantes (bandos marginalizados vagam pelos territórios – hoje, os refugiados), autorictas (se na Idade Média, o que restou do conhecimento ficou restrito à elite clerical, hoje concentrou-se na maiores universidades americanas e europeias enquanto o resto consome o lixo midiático. Na Idade Média, era o obscurantismo religioso para a plebe) – leia ECO, Umberto. “A Nova Idade Média” In: Viagens da Irrealidade Cotidiana, Nova Fronteira, 1984.

  Quando vemos gigantes do conglomerado agroquímico como Monsanto e Du Pont produzindo sementes geneticamente modificadas não só para serem mais resistentes a pragas e secas (esse é o marketing positivo) mas, principalmente, produzir safras estéreis (obrigando os agricultores a comprar mais sementes das empresas), criando escassez para aumentar o valor de mercado, lembramos das teses tanto de Vacca quanto de Umberto Eco: realmente estamos muito próximos do roteiro traçado por esses autores.

O filme Vesper (2022), uma co-produção franco-belga-lituano, materializa o prognóstico sombrio desses autores. Vesper não se trata de mais um filme pós-apocalíptico ou distopias fascistas da cepa hollywoodiana – permeada pela ideologia do realismo capitalista de que seria mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

O mundo futuro de Vesper mostra os resultados da última etapa do capitalismo (agroquímico industrial) que se autodestruiu: o mundo caiu numa nova Idade das Trevas enfrentando um colapso ambiental produzido pela engenharia genética. Novas espécies sintéticas foram produzidas em laboratórios para finalidades industriais. Mas tudo saiu do controle quando essas espécies modificadas escaparam para a natureza a assumiram o papel de espécies invasoras, eliminando a biosfera original do planeta, suplantando-a como novas espécies de vida agressivas.



As únicas sementes que ainda crescerão vêm dos laboratórios das Cidadelas (cidades fortificadas que concentram o que restou do conhecimento tecno-científico – tal como os mosteiros e catedrais medievais) e são projetadas para produzir culturas estéreis. As pessoas de fora (que vivem em grandes áreas de lodaçais e pântanos) têm que trocar ou comprar novas sementes a cada estação de crescimento. Em troca de sangue... e sexo.

O roteiro de Vesper desenvolve todas as características antevistas por Umberto Eco sobre uma possível vindoura Idade Média: assim como o Império Romano, que ruiu pelo próprio gigantismo e complexidade impossíveis de ser coordenados, a complexidade das manipulações genéticas e agroquímicas levam à catástrofe ambiental e o colapso social – muito mais do que a queima do carvão fóssil, a maior ameaça é o próprio Capitalismo: as formas artificiais de criar escassez para agregar valores cada vez maiores às mercadorias.

O Filme

Acompanhamos a protagonista que leva o nome do filme, Vesper (Raffiela Chapman), de apenas treze anos, que teimosamente tenta resolver o problema das sementes sintéticas das Cidadelas: em um laboratório precário e sujo, tenta destravar o código DNA das sementes para poder cultivas suas próprias plantas comestíveis. 



Enquanto não consegue, ela e seu pai, que está paralisado numa cama, Darius (Richard Brake) são dependentes do demiurgo local: o seu próprio tio chamado Jonas (Eddie Marsan), um abusador que explora crianças e mulheres em troca de sementes que consegue comprar das Cidadelas – trocando por sangue que colhe como moeda de troca dos moradores locais.

Por que as Cidadelas precisam de sangue? Para continuar com suas manipulações genéticas. Entre elas, os “jugs”, humanos artificiais. Aparentemente, para servirem de mão de obra escrava para a elite.

Jonas não faz segredo que que quer Vesper, que mal saiu da pubescência, como sua reprodutora. Para Vesper, quebrar o código DNA das sementes das Cidadelas é a única forma para alcançar a liberdade. 

Numa paisagem tão desoladora, e com uma paleta de cores tão sombria, o único alívio cômico é um pequeno robô voador que acompanha Vesper (com uma carinha pintada, lembrando a bola “Wilson” do filme O Náufrago). Na verdade, é através dele que o pai se comunica à distância com a filha.

Numa das caminhadas de Vesper com seu pequeno companheiro voador, ela vê uma pequena nave, vindo das terras das Cidadelas, cair no meio da floresta. Lá encontra uma mulher ferida perto dos destroços chamada Camellia (Rosy McEwen). Camellia conhece o laboratório de pesquisas de Vesper, e promete levá-la, com seu pai, para a Cidadela.



Naturalmente, é tudo que Vesper quer – escapar da dominação do seu tio abusador.

O filme deixa bem claro o quanto se distancia dos clichês sci-fi hollywoodianos. As distinções começam com o desempenho de Chapman no papel-título; ela não é a heroína feroz e combativa de tantas histórias distópicas do futuro, mas uma sobrevivente cautelosa que, mesmo aos 13 anos, aprendeu claramente como cuidadosamente lidar com as adversidades.

Chapman e o roteiro dão a Vesper uma forma de coragem que parece incomum para esse tipo de história. Em cada movimento dela reconhecemos sua história, como uma jovem adolescente que, apesar da solidão e a ausência parental, adquiriu bastante senso de responsabilidade. O pai dela pode desaprová-la, mas não pode fazer nada para impedi-la de fazer o que ela quer. Ela é calma e obstinada ao mesmo tempo, entregando ao espectador uma combinação intrigante.

Como colocamos acima, o filme desenvolve todo o roteiro descrito por Umberto Eco para uma vindoura Nova Idade Média. Para começar, a deterioração ecológica (no filme, por um vetor intrínseco aos próprios mecanismos de criação de valor no Capitalismo – a criação artificial da escassez), autorictas (o segredo do bloqueio do código DNA das sementes e a concentração do conhecimento em uma elite fortificada), neonomadismo e vagantes – as estranhas figuras que vagam pelo território no filme, inexplicavelmente arrastando ferro-velho para algum lugar ignorado. Aparentemente, por alguma motivação profundamente mística. 

Que acaba se revelando na cena final.



Uma coisa marcante em Vesper é o design futurista contido, lembrando a série Tales From The Loop, da Amazon: os efeitos de CGI são mínimos e máquinas futuristas de repente aparecem organicamente integrados a uma paisagem desolada e medieval e que parecem funcionar apenas como um pano de fundo para a estória de crescimento e amadurecimento da protagonista.

Na verdade, a maior tecnologia futurista está nos códigos de DNA travados pela elite. Criados pela mesma tecnociência que tornou o planeta ainda mais hostil aos seres humanos.


 

 

Ficha Técnica 

Título: Vesper

Diretor: Kristina Buozyte e Bruno Samper

Roteiro: Bruno Samper, Kristina Buozyte e Brian Clark

Elenco: Raffiella Chapman, Eddie Marsan, Rosy McEwen, Richard Brake

Produção: Rumble Fish, Natrix Natrix, 10.80 Films

Distribuição:  IFC Films

Ano: 2022

País: França, Bélgica, Lituânia


 

Postagens Relacionadas

 

Realismo capitalista e hipo-passado no filme '65 - Ameaça Pré-Histórica'

 

 

 

Na série "Tales From The Loop" o futuro já passou e a gente não percebeu

 

 

Nos labirintos da Nova Idade Média com Umberto Eco

 

 

Em "Closer To God" o mito de Frankenstein enfrenta a Ciência, Mídia e Religião

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review