sábado, setembro 10, 2022

Morte da rainha evita pânico semiótico do jornalismo corporativo


“Saída pela direita!”, dizia o Leão da Montanha naquele velho desenho animado da Hanna-Barbera. Parece que o espírito do felino animado possuiu o jornalismo corporativo que viu na morte da Rainha Elizabeth II a saída mais rápida do pânico semiótico após o Sete de Setembro protagonizado por Bolsonaro: o forçoso desgaste do malabarismo semiótico que teria que despender - como normalizar, neutralizar e diluir os crimes eleitorais em série que o chefe do Executivo cometeu no suposto desfile cívico militar? Como, mais uma vez, executar o script da normalidade e dizer que “as instituições estão funcionando”? Saindo rapidamente pela direita, jornalistas e “colonistas” mergulharam no infotenimento + viralatismo para deixar tudo esfriar. Porém, criou a prova do pudim para si mesma: como mostrar ao vivo as psyOps de Bolsonaro para depois dizer ser contra? Como defender pautas identitárias sem disfarçar o fascínio por uma monarquia colonialista, racista e genocida?

Quem não se lembra do desenho animado do personagem da Hanna-Barbera Leão da Montanha, da turma do Zé Colmeia? Quando percebia que estava em maus lençóis numa situação qualquer, falava de um jeito fleumático: “saída pela direita!”... ou “saída pela esquerda!”, dependendo do lado para o qual estava virado.

Não tem como deixar de vir à memória desse humilde blogueiro a imagem desse azarado personagem de animação diante da morte da Rainha britânica Elizabeth II, aos 96 anos. Parece uma associação estranha, mas não tanto pelo falecimento de Vossa Majestade, mas do profundo senso e oportunismo do jornalismo corporativo desses tristes trópicos. 

Definitivamente, o Sete de Setembro foi incômodo para os “colonistas” e apresentadores e repórteres da grande mídia. Incômodo porque, como vimos discutido nas últimas postagens, a mídia hegemônica tem executado o script da normalização nessa reta final da campanha eleitoral: (a) as instituições estão funcionando; (b) todos os pleiteantes nessas eleições são equivalentes como se estivéssemos numa clássica democracia liberal; (c) a grande mídia está aliada ao Judiciário na defesa da Democracia e na lisura de um processo eleitoral limpo e transparente.



O principal malabarismo semiótico é o de mostrar que Bolsonaro é apenas mais um candidato dentro de um processo eleitoral absolutamente normal... afinal, as instituições estão funcionando!

Ter que exibir ao vivo durante todo o dia as falas e atos do presidente e candidato à reeleição se apropriando do desfile cívico militar, numa sucessão de crimes eleitorais (fugir do protocolo e cumprimentar pessoas, posar para fotos com aliados e, em discurso em um trio elétrico, conclamar apoiadores a votar no primeiro turno etc.), forçou jornalistas a fazerem hercúleos esforços retóricos, semióticos e linguísticos para “normalizarem” o que exibiam. Tentavam reduzir tudo ao empirismo grosseiro de uma reportagem “imparcial”.

O que o distinto público assistia eram apresentadores e repórteres com olhos arregalados, alguns tensos. Outros perplexos. Uns poucos, consternados. Mas todos ansiosamente à espera de algum “colonista”, com o ponto eletrônico no ouvido, que desse o tom da cobertura, vinda diretamente da direção geral de jornalismo da emissora.



Saída pela...

A notícia da morte da Rainha Elizabeth, no meio da quinta-feira, fez os jornalistas corporativos parecerem o impagável Leão da Montanha: “Saída pela... no caso, Direita!”. A morte da monarca foi o evento oportuno para dar não exatamente um alívio cômico (como pede todo bom roteiro de terror ou suspense hollywoodiano), mas um alívio de infotenimento às horas subsequentes ao Sete de Setembro. Que certamente seriam tensas: como normalizar, neutralizar ou diluir semioticamente uma demonstração, à luz do dia e ao vivo, de que as instituições NÃO estão funcionando?

Pois então, os jornalistas corporativos mergulharam naquilo que fazem de melhor: o infotenimento – não é para menos que muitos jornalistas acabam migrando para programas de entretenimento... - clique aqui.

Este Cinegnose nem vai entrar na questão da síndrome de vira-lata como um retorno do reprimido freudiano – parecia que nós também éramos súditos da rainha ou, no mínimo, saudosos da Casa Real dos Orleans e Bragança – a repórter Bianca Rothier com voz embargada mostrando as flores depositadas em frente ao Palácio de Buckingham ou o veterano jornalista Álvaro Pereira Junior, quase chorando, ao ver na tela do estúdio o videoclipe dos Smiths “The Queen is Dead”.

 Mas, em muitos momentos, a atmosfera de convescote ou piquenique tomou conta de apresentadores e repórteres, contando de suas lembranças da rainha quando eram correspondentes em Londres. Curiosidades, contos pitorescos, imagens de arquivos das peripécias da família real aqui no Brasil, o agora Rei Charles III arriscando passos de samba com uma porta-bandeira no Rio de Janeiro. E até dicas de media training para o novo rei: a necessidade de ter empatia com os súditos, aprender com o carisma da mãe... vamos parar por aqui para não ofender a paciência do distinto leitor.




O mais inacreditável foi a “colonista” Miriam Leitão tentando criar um momento sério na pauta infotenimento ao procurar fazer uma análise dos “desafios econômicos do Rei Charles III”.

Todos pareciam estar aliviados e à vontade porque momentaneamente dispensados do pânico semiótico de terem que lidar com os atos do chefe do Executivo que desafiam o script da normalização.

Três discursos

Até o momento do “The Last Minute Rescue” da quinta-feira, os jornalistas corporativos estavam ensaiando três discursos:

(a) Comparado com o ano passado, o discurso do dublê de presidente e candidato foi mais contido, sem atacar as instituições – como se os seus próprios atos já não tivessem feito isso;

(b) O discurso niilista: não vai dar em nada porque nunca deu, depois de tantos processos contra o presidente parados na procrastinação judiciária – veja bem, o problema não seriam as instituições que não funcionam, mas a “burocracia” e “tecnicalidade”;

(c) Bolsonaro teve o cuidado de não “deixar provas” (o “follow the money”). Portanto, as oposições “têm que apresentar provas” – como se as próprias imagens, por si mesmas, não incriminassem o presidente que mais produziu provas contra si mesmo.



Portanto, o oportunismo e sincronismo da morte da Rainha Elizabeth II foi tão grande que ajudou a criar uma “ponte” de alívio de infotenimento entre a fatídico feriado de quarta-feira e o final de semana – para definitivamente esfriar tudo.

Pelo menos em tudo isso foi colocada a prova do pudim para a grande mídia. Primeiro, apesar de se dizer tão defensora das instituições democráticas e zelosa de um processo eleitoral supostamente transparente, a grande mídia tupiniquim jamais tomou a decisão das redes a cabo e de transmissão dos EUA nas últimas eleições presidenciais: simplesmente interrompiam as transmissões das falas de Trump toda vez que atacava a democracia e incorria em desinformações – MSNBC, ABC, CBS, CNBC e NBC já haviam cortado transmissões de Trump ao vivo em briefings do presidente sobre o coronavírus. 

A grande mídia brasileira se diz contra os discursos golpistas e anticonstitucionais de Bolsonaro, mas os exibe, descreve e repercute diariamente ao vivo. Às vezes fica até indignada, mas faz esse maroto jogo de ambiguidade semiótica.

E segundo: apesar de se apropriar do discurso identitário, transformando o Fantástico numa verdadeira crônica woke dominical, o viralatismo da grande mídia com mexericos, “causos” e curiosidades da família real britânica é, no mínimo, hipócrita: reverenciar uma monarquia que construiu o seu poder e legitimidade na base da violência, expropriação e pirataria – a tragédia histórica do genocídio e racismo no colonialismo africano e asiático, no qual o holocausto nazista apenas se inspirou.

E pior! Ainda tentou diluir um escândalo que foi relembrado: a capa do jornal The Sun de 2015, com a imagem da rainha Elizabeth II fazendo a saudação nazi no início da década de 1930, quando tinha seis anos. Incentivada por familiares nos jardins do Castelo Balmoral, na Escócia. Para o infotenimento da Globo News, tudo não passava de um “conhecido gesto de amizade inglês”...

Porém, o mais estranho sincronismo ficou para o final. Depois de Bolsonaro reeditar todo o esforço de propaganda do Sesquicentenário da Independência de 1972 (a comemoração dos 150 anos da independência pela ditadura militar com futebol, traslado do corpo de D. Pedro I e milagre econômico – que Bolsonaro tentou emular), o jornalismo corporativo passou a repetir ad nauseum imagens de arquivo em p&b da única visita da Rainha Elizabeth II ao Brasil em 1968, recebida pelo General Costa e Silva nos então primeiros anos da ditadura militar.

Pudera! Esperou o país ser “pacificado” para visitar essas plagas. É o modus operandi do velho colonialismo britânico.

 

 

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