quarta-feira, setembro 07, 2022

Filme 'No' e derrota da esquerda no plebiscito chileno: será que o gato subiu no telhado?


A direita ganhou no plebiscito que recusou a nova constituição para o Chile. Quer entender o porquê? Então assista ou reveja o filme “No” (2012) – indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2013. Um filme sobre outro plebiscito chileno, trinta e quatro anos atrás, no qual o país decidiria se o General Augusto Pinochet permaneceria mais nove anos no poder, estendendo a ditadura militar. Um filme sobre a campanha de propaganda do “Não” que enfrentou vitoriosamente a campanha de desinformação do “Sim”, mostrando que o “hype” das fake news não é nenhuma novidade. Porém, o que torna as estratégias nas redes digitais mais letais do que a propaganda política do passado é sua contaminação semiótica de natureza metonímica, exponencial, em tempo real – muito além da velocidade processual da Justiça e das legislações. Às vésperas das eleições brasileiras, a esquerda deve se precaver: será que o gato está subindo no telhado? 

“Chile: pois é, não deu. Deu não...”. “Surpresa acachapante”... “Derrota acachapante”. Essas foram algumas reações entre surpresa e resignação diante do placar de 62 a 38 para recusar a nova Constituição chilena: uma vitória para a direita que já tem maioria na Câmara e empata no Senado. Reações tanto da grande mídia e, supreendentemente, também da chamada mídia progressista.

Para esse humilde blogueiro, o gato acabou de subir no telhado. Principalmente pela reação da mídia alternativa: quase nenhuma repercussão (a não ser algumas escassas linhas, sempre en passant) à máquina de desinformação da direita colocada em ação desde 2020, quando os chilenos votaram esmagadoramente a favor da elaboração de uma nova Constituição. Desde esse primeiro plebiscito, antes mesmo de nada ainda ter sido escrito, começaram campanhas de desinformação televisionadas e nas redes sociais.

Aqui no Brasil, a esquerda ficou em silêncio. Talvez temerosa de ser confundida com a direita se começar a criticar um processo eleitoral de outro país às vésperas das eleições gerais brasileiras.



Por isso é oportuno rever o filme No (2012), sobre as estratégias de propaganda e comunicação utilizadas no referendo de 1988 no Chile, o momento que o país decidiu se o General Augusto Pinochet deveria ou não permanecer na presidência – no poder desde 1973 quando o golpe de Estado liderado pelas Forças Armadas depôs e assassinou o presidente socialista Salvador Allende.

O filme acompanha o publicitário René Saavedra (Gael Garcia Bernal) que lidera a equipe que faz a campanha pelo “Não”, usando as estratégias de marketing da chamada “guerra das colas” nos EUA – a batalha publicitária entre as duas mais icônicas bebidas gaseificadas: Coca-Cola e Pepsi. Para complicar as coisas, o seu chefe, Lucho Gúzman (Alfredo Castro) lidera a equipe do “Sim”. 

As regras da campanha no referendo foram criadas propositalmente para beneficiar Pinochet: toda noite (num horário proibitivo para a maioria dos trabalhadores que precisavam dormir cedo), cada lado recebe 15 minutos de transmissão na televisão nacional para apresentar seu caso. A gangue do "Sim" retrata a liderança de Pinochet como um sucesso econômico, modernizando o país, introduzindo fornos de micro-ondas nas casas - todos agora sob risco de os comunistas confiscarem se a campanha do "Não" for bem-sucedida. Esse é o ponto de partida da estratégia de desinformação militar.



Do outro lado, o movimento do "Não" assume que o referendo foi fixado dentro de regras que beneficiam o ditador Pinochet. Muitos dos próprios ativistas da campanha sofreram sob o regime militar. Presumindo que vão perder, eles se concentram em aumentar a conscientização sobre as atrocidades do governo, sobrecarregando seu público com imagens de tanques, bombardeios e prisioneiros políticos reprimidos e torturados pelos militares. 

Para o publicitário René, o problema é que essa abordagem negativa gera medo, o que contribui para uma sensação de impotência, o que levaria à abstenção dos eleitores. O que ajudaria ainda mais Pinochet. 

Todo o início do filme está nesse conflito entre a visão pragmática publicitária de René (fazer uma campanha pelo “No” numa linguagem análoga a dos comerciais da Coca-Cola) e o derrotismo combinado com ressentimento e vingança dos militantes – como vender uma imagem de uma campanha baseada em alegria, saúde e otimismo para uma esquerda revoltada contra a violenta ditadura de Pinochet?

Para a estranheza dos líderes da esquerda, René insiste numa operação semiótica centrada na felicidade. Toma emprestado imagens da cultura pop americana (até a figura do mímico, clichê que proliferava nos filmes publicitários da época), além de falar da luz do sol e esperança. Sintetizado na figura do arco íris em torno do “No” para representar a diversidade política contra a ditadura. Imagine a dificuldade de René convencer militantes endurecidos a adotar imagens publicitárias de americanos felizes em piqueniques e andando a cavalo...

O grupo do “Si” e os militares atacam com mais força, de várias maneiras: assediando os membros da equipe "No", roubando suas fitas de vídeo, tentando censurar seus anúncios e finalmente tirando do arsenal de truques promocionais da equipe "No" e usando-os como seus. O esquadrão do ditador decide incorporar o mesmo humor e felicidade em seus próprios comerciais.

Mas há também um drama familiar envolvendo a má-consciência do próprio protagonista René: há indícios que Pinochet exilou o seu pai. Mas agora, como publicitário, mora com seu filho em uma confortável residência ao estilo american way of life, com um carro esportivo, um micro-ondas em destaque e brinquedos elétricos importados. Ao aceitar assumir a coordenação da equipe do “No” para tentar livrar o país da ditadura, parece buscar a validação da sua ex-esposa, Veronica Carvajal, uma militante de esquerda. 



Há uma sensação em René de que sua vida é vazia e sem substância, assim como os filmes publicitários que cria. Enquanto a vida de Veronica é o contrário: cheia de paixão e substância. Será que René tenta reconquistar um amor perdido? Reunir de novo sua família? Ou simplesmente a admira e a inveja? De qualquer forma, René chegou a um ponto na sua vida em que precisa fazer uma escolha.

Um filme atual

Ao dramatizar um referendo feito há trinta e quatro anos no Chile, o filme No mantém a atualidade no momento do desfecho de mais um referendo em que o país tentou se livrar de outra herança da ditadura militar – no passado foi do próprio Pinochet. Hoje, o legado da Constituição.

A atualidade está exatamente nas estratégias de desinformação descritas pelo filme, mostrando de que o hype atual das fake news é tão artificial quanto as próprias desinformações. A única diferença é que lá no passado o ecossistema midiático era a das mídias de massas, enquanto na atualidade são as redes sociais.

No mostra a massiva disseminação militar de que, sem Pinochet, os comunistas retornariam, confiscariam propriedades e os bens dos chilenos (principalmente o objeto fetiche do micro-ondas), além de perseguir cristãos. No material publicitário, vemos um vídeo de um rolo compressor esmagando bens de consumo em uma estrada, até ameaçadoramente se aproximar de uma criança que está com um brinquedo.



Trinta e quatro anos depois, uma nova máquina de desinformação entrou em ação no Chile, desde em que em outubro de 2020 os chilenos votaram esmagadoramente a favor da elaboração de uma nova constituição. Substituindo o documento de 1980 que mantém as marcas ideológicas da ditadura de Pinochet.

A máquina de desinformação da direita chilena

Durante uma campanha televisionada em 2021, um partido de direita alegou falsamente que a nova constituição mudaria o hino nacional do Chile, a bandeira – e até o nome do país.

Nas redes sociais, o redemoinho diário de anúncios falsos e interpretações enganosas do documento (notavelmente progressista que consagrava a igualdade de gênero e os direitos indígenas, ampliando proteções sociais e garantindo a proteção ambiental) dificultaram a verificação de fatos.

Os tópicos mais emotivos foram colocados em primeiro plano. Em maio, o senador Felipe Kast afirmou que, sob a nova constituição, o aborto seria permitido até o nono mês de gravidez. Outra falsidade recorrente era de que a propriedade privada poderia ser confiscada sob a nova constituição.

Uma das alegações mais bizarras estava em um site cujo design imitava o da convenção constitucional, afirmando que a desprivatização dos direitos à água do país proibiria a venda de água engarrafada e sacos de gelo para churrascos de verão.

E a pedra de toque da campanha de desinformação: ativistas da extrema direita copiaram as táticas dos líderes de extrema direita Donald Trump e Jair Bolsonaro e começaram a atacar e colocar sob suspeição o serviço eleitoral do Chile e insinuando que poderiam não aceitar o resultado do referendo.


Uma mulher recebe cópia do rascunho da nova constituição do Chile: informação não foi o suficiente contra desinformação


Tanto em 1988 quanto em 2022, ficou evidente de que a vulnerabilidade de toda uma opinião pública mediada tecnologicamente pelos meios de comunicação, seja de massa ou digital, está na forma como a desinformação chega primeiro, tornando difícil de que a verificação dos fatos tenha o mesmo alcance. Plataformas de checagem e a justiça eleitoral estão muito aquém da velocidade do tempo real da desinformação.

A justiça eleitoral até com frequência tem exigido que fake news sejam retiradas de redes como Facebook, Twitter e TikTok. Porém, até que os magistrados analisem os processos e exijam o cumprimento da lei, a desinformação já conseguir fazer estragos exponencialmente. Enquanto essas redes propositalmente protelam não só o cumprimento das decisões judiciais, como também medidas para sanar efetivamente o problema. O que faz compensar a lubrificação diária das engrenagens da desinformação, sempre nos períodos críticos dos processos eleitorais. O que permite uma repercussão negativa de reparação impossível da imagem do alvo das mentiras.

Contudo, há uma diferença entre aquilo que o filme No descreve e o que aconteceu no plebiscito recente no Chile. A desinformação da propaganda do “Si” era de uma natureza muito mais metafórica ou retórica. Por exemplo, as imagens do rolo compressor esmagando os bens de consumo da classe média chilena.

Enquanto nas redes de informações atuais são muito mais rápidas, pela natureza metonímica: retirar imagens, frases ou palavras fora do seu contexto original para criar contaminações semióticas por contiguidade. Uma contaminação rápida, exponencial, em tempo real. Muito além do ritmo processual das legislações e tribunais.

Parece que todas as forças reacionárias da História esperaram por séculos por uma tecnologia como essa. 

 

 

Ficha Técnica

 

Título: No

Diretor: Pablo Larrain

Roteiro: Pedro Peirano, Antonio Skármeta

Elenco:  Gael Garcia Bernal, Alfredo Castro, Antonia Zegers, Luis Gnecco

Produção: Participant, Funny Ballons, Fabula

Distribuição: Sony Pictures Classics

Ano: 2012

País: Chile, França, México, EUA

 

 

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