sábado, setembro 17, 2022

Mito da informação e fake news: como grande mídia confunde comunicação com informação


Agências de checagem, projetos de educação midiática em escolas públicas da periferia e nos grupos de WhatsApp, além da cada vez maior judicialização da política. Tudo apoiado pela grande mídia que acredita que o único antídoto para fake news é a informação. Pudera! É o produto que ela vende. E seu marketing é o mito da informação: a ingênua crença propagada para o distinto público de que a informação verdadeira é a única forma para combater a mentira. Do ponto de vista da ciência da Comunicação é um esforço inútil, porque há um mal-entendido conceitual: confundir os conceitos de sinalização, informação e comunicação. Fake news são fenômenos comunicacionais, enquanto as metodologias de checagem e apuração estão no campo da informação. Como combater um acontecimento comunicacional com informação? Como enfrentar um acontecimento a priori com uma informação a posteriori? Com o mito da informação grande mídia quer ocultar a causa de todas as fake news: a privatização da esfera pública. 

 

(a) Numa parceria da Agência Mural com a agência de checagem Lupa, o Projeto Papo Reto no Zap – projeto de checagem e divulgação de informações verificadas na periferia de SP.  A iniciativa está disponível para milhares de moradores dos bairros paulistanos do Capão Redondo, Cidade Tiradentes e Jardim Fontalis e na Vila Galvão, em Guarulhos (SP). A ideia é que cada grupo seja moderado por um embaixador que já resida na região e conte com a ajuda de um checador de informações treinado pela Agência Lupa para identificar fake news. Além disso, será possível para os participantes do grupo enviar sugestões de temas ou notícias para serem analisados pelos especialistas – clique aqui.

(b) “Quanto mais checagem melhor”. É o princípio da oficina #FaketoFora com turmas de alunos da EMEF M’Boi Mirim II em São Paulo. iniciativa que disponibiliza um e-book gratuito com o passo a passo para professores aplicarem a metodologia de educação midiática na escola, contou com explicações sobre o conceito de fake news e suas variações, como as notícias fora de contexto, golpes para conseguir informações pessoais, opiniões versus fatos e outros métodos de checagem. “Às vezes, a pergunta é a melhor resposta. Quem criou essa informação? Para quem? Com qual intenção?”, diz a gerente do projeto – clique aqui.

(c) O ministro Raul Araújo, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), determinou que diversas redes sociais tirem do ar publicações que promovem desinformação sobre o e-Título, aplicativo da Justiça Eleitoral que oferece ao eleitor diversos serviços digitais.Araújo determinou a retira das publicações em 24h a partir da notificação da decisão, bem como a citação dos envolvidos para que se manifestem se assim desejarem – clique aqui.

Três flagrantes do combate às fake news em um ano eleitoral. Agências de checagem, projetos de educação midiática em escolas públicas da periferia e nos grupos de WhatsApp, além da cada vez maior judicialização da política, são alguns exemplos dessa intensa militância. 



Em todas as falas, sejam de magistrados, professores, jornalistas, coordenadores e gerentes de projetos, estão a preocupações de que não mais se repitam as estratégias de desinformação, decisivas nas últimas eleições.

Não é necessário dizer que todas essas ações ganham espaço na grande mídia. O enfoque é que todas essas ações seriam parceiras do jornalismo supostamente profissional e imparcial da mídia hegemônica. Em seu esforço de defender a Democracia e a transparência do processo eleitoral.

Derrubar a ponte

Conceitos como “fake news” ou “pós-verdade” se tornaram conhecidos partir de 2016, embora a mídia corporativa minta e manipule desde sempre. 

Aquele ano foi particularmente marcado pelo final de uma intensa turnê mundial de revoluções populares híbridas: “primaveras”, “levantes ou “jornadas” na Jordânia, Ucrânia, Egito, Síria, Tunísia, Líbia e finalmente Brasil. O ponto em comum de todas elas: intensa exploração de notícias falsas nas mídias sociais explorando a desinformação e cultivando o ódio.


2017: TSE descobre fake news... para depois ignorá-las em 2018


Consolidado o golpe no Brasil, a preocupação da grande mídia rapidamente passou a de ter que derrubar a ponte pela qual trilhou: e se a esquerda quisesse lutar no mesmo campo simbólico da Guerra Híbrida promovida pelo consórcio grande mídia e PMiG (Partido Militar Golpista)? Por isso começou o primeiro movimento da judicialização das eleições. Não apenas com a prisão de Lula. Mas com a repercussão da expressão “fake news” como um perigo potencial que poderia supostamente vir da mídia progressista. 

Começaram as discussões sobre fake news, big data e robôs no TSE. Além do Tribunal criar um “grupo para monitorar fake news” – um colegiado formado para propor ações sobre o problema. A princípio, uma resposta os escândalos envolvendo a Cambridge Analytica e a manipulação de dados privados dos usuários do Facebook, tanto no caso Brexit quanto na eleição presidencial nos EUA. Mas em tudo isso, claro, estava o objetivo de cercar a blogs e sites independentes como estratégia de barrar as esquerdas nas próximas eleições.

O problema é que não contavam que a última “esperança branca” (em 2018 restou apenas o ex-capitão Bolsonaro para, bem ou mal, apoiar a agenda neoliberal pós-Temer) também utilizava a mesma estratégia massiva de desinformação colocada em ação por Trump e pela extrema-direita internacional liderada naquele momento por Steve Bannon.

Repentinamente os magistrados silenciaram, mesmo como a matéria bomba da jornalista da Folha, Patrícia Campos, sobre empresas (entre elas a Havan) que pagavam pacotes de disparos em massa com mensagens anti-PT no WhatsApp – com base de usuários-alvo fornecida ilegalmente.

E assim foi... e aquilo deu nisso.

Agora, nos meses que antecederam as eleições desse ano, retornou o frenesi em torno das fake news: voltam à ribalta agências de checagem, agora empoderadas por aplicativos e parcerias com projetos escolares e comunitários de educação midiática. Além dos ministros do TSE voltarem à cena, dessa vez “boladões”: decidindo mandar retirar vídeos ou postagens de mídias sociais, sob prazos “draconianos” de 24 horas... quando bastam alguns segundos para qualquer fake news criar uma onda de compartilhamentos...



Guerra Santa 2.0

O fato é que essa nova guerra santa 2.0 contra fake news ressignifica aquele hype de 2016 pelas seguintes maneiras:

(a) Num cenário tecnológico disruptivo das tecnologias de convergência, é uma maneira simbólica de reforçar o “profissionalismo” das mídias tradicionais diante de uma Internet que seria intrinsecamente criminógena;

(b) Reforçar na opinião pública a ideia de que o único remédio contra fake news é a “informação verdadeira”, checada, apurada e confirmada. Logicamente, feita por profissionais que, virtualmente, exercerão a função missionária de educação para o analfabetismo midiático das massas;

(c) Turbinar a tendência crescente da judicialização da política – o crescente número de recursos de partidos para barrar conteúdos nas redes sociais somente corrobora com a estratégia do “movimento em pinça”: fazer a esquerda acreditar que a Justiça está combatendo a desinformação da direita para, em seguida, fechar a pinça quando também suspende conteúdos da esquerda, num jogo de freios e contrapesos para controlar o processo eleitoral.

Porém, para tudo isso funcionar é necessário que a grande mídia diariamente reforçe a mitologia em torno dos conceitos de fake news e informação. Uma mitologia que se fortalece ao induzir o distinto público e as esquerdas a confundir três conceitos que são cruciais para a questão: sinalização, informação e comunicação.

Há um mal-entendido em torno dos conceitos de informação e comunicação, sempre tomados como sinônimos. O que só piora, quando o conceito de sinalização é subentendido ora em um, ora no outro conceito. Pois a força da mitologia da fake news reside exatamente nessa confusão conceitual.

Vamos primeiro traçar a diferença entre eles, para depois entender a dinâmica semiótica dessa mitologia.

(a) Sinalização: chamar a atenção através da interpretabilidade do sinal: cores, letras garrafais, repetição etc. Formas de chamar atenção, desviar um olhar disperso e desatento para um ponto. Pura percepção, sem ainda nada informar. Chama a atenção como uma promessa de que há algo importante a ser visto ao lido. Nas redes sociais têm a ver com toda a chamada economia da atenção: estratégias semióticas para prender a atenção dos usuários às telas para gerar lucros às Big Techs.

(b) Informação: essa interpretabilidade (a promessa de que seja um dado importante para o receptor) vira informação, notícia. A informação é meramente aditiva: a informação corresponderia ao plano da escolha do receptor: uma vez retirado da sua indiferença em relação às sinalizações das mídias, o receptor seleciona informações que aditivam, complementam um repertório pré-existente. Pela sua natureza aditiva, procuramos informações que fortaleçam nossas próprias posições. Vamos buscar aquelas notícias no mercado de informações que confirmem ou fortaleçam nossas predisposições, opiniões, atitudes e mesmo tomadas de decisões profissionais, pessoais, financeiras etc.

No caso das fake news, através dos algoritmos de microtargeting, são direcionados a perfis cujo repertório vai adicionar a desinformação e compartilhá-la.

(c) Comunicação: é de outra natureza. É irruptiva, e não aditiva. É mais do que uma “irritação” (sinalização), ganha um sentido como acontecimento comunicacional. Enquanto a informação é a posteriori (é uma representação de algo que já ocorreu), a comunicação é o aqui e agoraa priori, puro fenômeno que, impulsionada pelas estratégias de sinalização, vai fazer o receptor ou usuário querer participar desse acontecimento, clicando, compartilhando, discutindo, reagindo etc.



Cura equivocada

O equívoco em toda essa mitologia em torno do problema das fake news está na prescrição da “cura”: como combater um acontecimento comunicacional com informação? Como contrapor uma informação a posteriori contra um acontecimento fenomênico, instantâneo, imprevisível?

O ponto crucial é que fake news são fenômenos comunicacionais, enquanto as metodologias de checagem e apuração estão no campo da informação. Fake news está no campo do fenômeno, do acontecimento, enquanto as informações estão no campo do conteúdo – querer descobrir se a informação representa algo que já aconteceu ou não.

O campo da informação é binário: ou é falso ou verdadeiro. Enquanto o campo da comunicação está muito além: é acontecimento puro, antes de qualquer significação ou representação – destina-se ao automatismo da percepção.

Pouco importa se os eminentes juízes determinem a retira das publicações “em 24h a partir da notificação da decisão, bem como a citação dos envolvidos para que se manifestem se assim desejarem”. Como escrevemos acima, bastam alguns segundos para uma postagem virar um acontecimento comunicacional.

No âmbito da ciência da Comunicação, é totalmente inútil, se não até pueril, querer combater estratégias de desinformação com informações checadas ou com medidas judiciais. Ou mesmo com “educação midiática” que ignore todas essas decisivas diferenças conceituais.

Com a mitologia das fake news, a grande mídia criou sua zona de conforto:

(a) valoriza no mercado aquilo que ela vende: informação;

(b) com toda essa profilaxia da informação, o jornalismo corporativo ajuda a ocultar todo o automatismo da percepção criada pelas estratégias de sinalização das Big Techs – que, aliás, ironicamente apoiam projetos de “educação midiática” e agências de checagem; 

(c) a mitologia da informação contribui com a judicialização da política, mantendo a esquerda na sua própria zona de conforto: longe das ruas e do atrito real, no conforto parlamentar, nas suas notas de repúdio e encaminhamento de recursos ao Judiciário... à espera da pinça fechar.

Fake news nada mais são do que a continuidade da manipulação das informações numa esfera pública privatizada (da mídia corporativa dos meios de comunicação de massas às Big Techs atuais). Apenas com uma diferença: no passado, a manipulação era ao vivo; agora, em tempo real.

Lá como cá, persiste a mitologia do combate à desinformação com informação: sessão “erramos” ou “direito de resposta” na mídia convencional ou checagem de informações por agências especializadas na atualidade, são meros remendos a posteriori, depois que ocorreu o acontecimento comunicacional e o estrago já se propagou exponencialmente.

A mitologia da informação serve unicamente para esconder a origem de todos os males: a privatização da esfera pública por seus interesses políticos e econômicos: plataformas e veículos pouco fazem para enfrentar a desinformação, a não ser medidas pontuais e reativas insuficientes, e somente quando são instadas pelo Judiciário. Que por sua vez, participa deliberadamente desse jogo de ilusionismo.  

Quer acabar com fake news? Follow the money: aprofundamento das investigações sobre a produção da desinformação, revelando a operação de grupos profissionais que usam as plataformas com sistemas que permitem burlar as limitações pontuais impostas pelas plataformas e acabam atingindo sobretudo os usuários. 

 

 

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