terça-feira, fevereiro 22, 2022

Resposta anticíclica de Putin é auge da guerra semiótica entre Rússia e o modelo de Deep State


Algo saiu do script! De repente, pareceu que algum release que viria diretamente da OTAN para o ponto eletrônico dos repórteres cessou. Deixando-os gaguejantes, consternados, sem ter o que dizer ao vivo após um irritado e impaciente Putin ter reconhecido a independência e soberania das regiões separatistas da Ucrânia. Para depois, enviar “tropas de paz” para as regiões. Biden aproveitou o feriado e se fechou na Casa Branca, e, no vácuo, aliados prometeram “uma reposta rápida a Putin”. A resposta anticíclica de Putin, rompendo a “política do megafone” de Biden é a culminância aos primeiros sinais das diferenças semióticas EUA/Rússia: o salão oval versus a gigante mesa oval de reuniões do Putin, p. ex.. As diferenças não são meramente estéticas: Putin explora muitos elementos do teatro de vanguarda, sob a influência do “Rasputin” Vladislav Surkov, trabalhando na linha tênue entre ficção e realidade. Nada do que o Ocidente também não faça. Porém, com uma diferença: enquanto o Deep State ocidental precisa criar uma cena ficcional com atores que acreditam ser os próprios personagens que encenam, Putin é a própria realpolitik russa. Mas, também, essa diferença oculta uma ameaça mortífera.

“Acho necessário tomar uma decisão que deveria ter sido tomada há muito tempo... reconhecer imediatamente a independência e a soberania da República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk”, discursou Vladimir Putin, pela TV, ao reconhecer as duas regiões separatistas da Ucrânia nessa segunda-feira.

Sem ponto, teleprompter, visivelmente irritado e impaciente, Putin fez um discurso duro, repleto de argumentos históricos sobre a ancestralidade russa das terras do leste ucraniano. “A Ucrânia é parte integrante da nossa história”, afirmou. 

accent russo em si já inspira em um estrangeiro que ouve uma certa “dureza” pela quantidade de consoantes nas palavras. E ainda mais com um emissor flagrantemente enraivecido...

Alguma coisa deve ter saído do script. O que mais se viu nos canais fechados de notícias, ao vivo, eram jornalistas esbaforidos, gaguejando, consternados, ao terem que encarar um acontecimento anticíclico – depois das previsíveis semanas de “política de megafone” do John “Sleep Joe” Biden (a política siderada pelos signos de uma diplomacia deteriorada em slogans de propaganda), com jornalistas mecanicamente repetindo textos que mais pareciam releases diretamente despachados do Pentágono via ponto eletrônico.

De repente, repórteres se viram tendo que preencher os longos tempos ao vivo atrás de alguma resposta do Ocidente que não vinha de lugar nenhum – Biden se encastelou na Casa Branca e, aproveitando o feriado nos EUA, deixou a imprensa a ver navios. Enquanto os aliados falavam o protocolar discurso das “sanções econômicas contra Rússia” e “Putin não ficará sem resposta...”. 



O descabelado “colonista” da GloboNews, Guga Chacra, era o mais transtornado: “Olha, os EUA não estão lidando com um Sadam Hussein, um Muamar Kadafi... É A RÚSSIA! A segunda potência militar do planeta [questionável]”. Alguns até lembraram, saudosos, de Angela Merkel, ex-chanceler alemã: “ela falava fluentemente russo...”. 

Kiev é Bagdá?

Como esperado, a primeira resposta foi a do próprio jornalismo corporativo internacional, sempre mostrando imagens noturnas ao vivo de Kiev. Como que torcendo para algum ataque inesperado russo... algum míssil... recall das imagens ao vivo de Bagdá do repórter Peter Arnett, da CNN, durante a Guerra do Golfo de 1990 – a primeira guerra transmitida ao vivo. 


Maidan Square, Kiev, ao vivo na CNN: recall de Bagdá na Guerra do Golfo...

No grande vazio de respostas assertivas do Ocidente, destaque para entrevistas com o cônsul da Ucrânia no Brasil, Jorge Rybka, protestando ao dizer que “Putin está atrapalhando a ordem mundial...”. Ordem de quem, cara pálida?

A resposta anticíclica de Putin (deixou de ser apenas reativo, para agir... uma boa lição para as esquerdas tupiniquins sempre sequestradas pelas pautas da grande mídia) foi a culminância de uma guerra semiótica que já estava saltando aos olhos de muitos comentários nas redes sociais: a diferença entre o salão oval e a gigantesca mesa oval de reuniões que distanciava Putin do presidente francês Macron e, depois, do chanceler alemão Olaf Scholz; ou o kitsch acúmulo de objetos (com suas respectivas guarnições), da Casa Branca com o décor austero e salas com pé-direito alto do Kremlin.

O “Rasputin” Surkov

Essas diferenças semióticas não são meras opções estéticas. Putin tem o seu “Rasputin” como consultor, como aponta o documentarista Adam Curtis no seu documentário HyperNormalisation (2016): é Vladislav Surkov, doutor em economia, empresário e ex-estudante de artes cênicas. Veio do universo das relações públicas e departamentos de publicidade de TVs russas. 

Na famosa entrevista para a revista americana “The Atlantic”, em 2014, Surkov descreveu que “meu currículo no Kremlin e no governo inclui ideologia, mídia, partidos políticos, modernização, religião, inovação, relações exteriores e... arte contemporânea”. Curtis afirma no documentário que Surkov levou para a cena política russa “muitos elementos de teatro de vanguarda”. 


Vladislav Surkov: teatro de vanguarda em Moscou


Fã de rap, jazz e pintura surrealista, Sarkov aplicou no governo Putin, mais precisamente, elementos do teatro do absurdo, trabalhando na linha tênue entre ficção e realidade – o exemplo da gigantesca mesa oval no meio daquele cenário que combinava austeridade com a estética dourada que remete à época dos czares, certamente é um desses elementos tributados de, por exemplo, “Esperando Godot”, de Samuel Backett.

Claro, o álibi é a pandemia (garantir o distanciamento social). Mas, não com muita teatralização.

Também é claro: nada do que também o Ocidente não faça. Por exemplo, a guerra híbrida do Ocidente, que derrubou, através de uma revolução popular híbrida em 2014, o então presidente aliado de Moscou, Viktor Yanukovytch. No lugar, entrou o comediante e ator da série “Servo do Povo”, Volodymyr Zelensky (que, na ficção televisiva, tinha se tornado presidente do país).  Zelensky foi eleito na onda anti-política impulsionado pela guerra híbrida, dizendo que não tinha conhecimento aprofundado sobre qualquer tema e com o bizarro slogan antissistema “Sem promessas, sem decepções”.  

Porém, há uma diferença abissal entre a espetacularização da política entre Rússia e o Ocidente.

O modelo do Deep State

O modelo de política atual de separação entre o chamado “Deep State” (complexo industrial-militar, inteligência, tecnologia, vigilância e espionagem) e o Governo foi imaginada pelo cientista político Zbigniew Brzezinski e o diplomata Henry Kissinger nos anos 1960-70. Cujo espírito já estava no relatório da Comissão Trilateral (fórum de discussão privado criado por David Rockefeller) intitulado “The Crisis of Democracy” que propunha soluções para o “excesso de democracia” como um perigo para a ala liberal do Estado capitalista, a elite dominante – leia ASSMANN, Hugo, “A Trilateral: a nova fase do capitalismo mundial”, Vozes, 1979.


Kissinger, Brzezinski e a Comissão Trilateral

Com a divisão do mundo árabe e a manutenção dos conflitos no Oriente Médio, e a consequente criação de estados párias e o terrorismo internacional, criou-se uma espécie de sideralização da política: a distorção entre a economia política fictícia e real. A diferença entre as “guerras orbitais” e as “guerras territoriais” – guerras prosseguem em todas as partes, fragmentadas, localizadas. Porém, a catástrofe real (guerra mundial, nuclear etc.) mantém-se em suspensão, sempre latente ou adiada sine die.

Aos governos eleitos pela democracia formal foi reservado o papel de gerir essas guerras orbitais e a política sideral: Trump, Obama, Reagan, Blair, Bush etc. seriam nada mais do que líderes que acreditam nas suas próprias pantomimas e nos scripts passados a eles. Personagens ficcionais criados para consumo massivo através da grande mídia e que simplificam a complexidade da política real ao participarem de narrativas ficcionais, muitas vezes extraídas de roteiros de sucessos hollywoodianos.

Como, por exemplo, quando em 2002, alguém do MI-6 (serviço de inteligência britânico) notou que os relatórios sobre as supostas armas químicas de destruição em massa de Sadam Hussein, no Iraque, eram idênticos ao roteiro do filme A Rocha (1996) com Sean Connery e Nicolas Cage – veja no documentário HyperNormalisation.

Putin é o Deep State

Essa é a abismal diferença com Vladimir Putin: como ex-agente da KGB, Putin é o próprio Deep State. Governo e Estado Profundo se unificam no líder russo – daí, talvez, a sua performance soturna, parecendo sempre olhar de soslaio, debaixo para cima.

Enquanto isso, o Deep State no Ocidente precisa roteirizar o espetáculo dos governantes, egressos de quadros partidários. Atores que perigosamente começam a acreditar no próprio papel que foi dado a eles representar – aliás, essa é a técnica da famosa Actor’s Studio que treinou atores do quilate de James Dean e Dustin Hoffman: quanto mais se confundam psiquicamente com o personagem, mais espontâneos ou telegênicos se tornam para as câmeras.

O presidente ucraniano Zelensky é um grande exemplo dessa distorção entre a política sideral e real: sempre à espera das atualizações do script, mostra-se indeciso, perdido e quase pedindo para sair – por exemplo, quando falou em “histeria” da OTAN que atrapalhava a “economia ucraniana”. Logo as operações psicológicas do Deep State elevaram aos trend topics a hashtag “#Ukraine_IS_NOT_zelensky”.




Se as ações de Putin são rápidas e contundentes, o Ocidente precisa manter o espetáculo para a grande mídia: uma reunião inofensiva do Conselho de Segurança da ONU (“excepcionalmente até altas horas da noite!”, como exclamaram os jornalistas, sem ter nada de mais importante para dizer ao vivo), já que a Rússia faz parte e tem poder de veto. E as protocolares “sanções econômicas” contra as províncias separatistas de Lugansk e Donetsk, além da Rússia.

E as indefectíveis narrativas dramáticas de “retirada de cidadão e diplomatas norte-americanos da Ucrânia”.

Porém, apesar dessa desconexão entre a realpolitik e a pantomima das lideranças Ocidentais, há uma ameaça mortífera: a hiper-realização da política, dos meios de destruição (e a correlata hiper-realização dos mercados financeiros que pairam sobre as nossas cabeças) estilhaçam o próprio objeto, tanto da economia quanto da política.

As duas dimensões (da simulação orbital e da política real) não têm regras ou dimensões iguais. O trambolho da catástrofe virtual que paira sobre nós pode inesperadamente cair sobre a terra, justamente por obra de algum desses atores que, acidentalmente, possam se esquecer de quem foram, antes de tanto se acostumarem a “entrar no personagem”.

Principalmente por causa dessa fricção espaço-tempo entre a instantaneidade de Putin (um líder no qual Deep State e Governo se convergem) e o delay ocidental entre o diretor/roteirista Deep State e a ribalta dos atores-fantoches. 

 

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