quinta-feira, fevereiro 24, 2022

'Moonfall': um filme-catástrofe para a nova era da Guerra Fria 2.0 e da pandemia global


“Moonfall: Ameaça Lunar” (2022), do mestre dos filmes-catástrofe Roland Emmerich (“Independence Day”, 2012), é um exemplo do mais recente pico de produções do gênero, sincrônico à crise pandêmica global e à Guerra Fria 2.0 consolidada com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Dessa vez, acompanhamos o que aconteceria se a Lua saísse de órbita e entrasse em rota de colisão com a Terra. Esse novo pico de produções de filmes-catástrofe (basta pesquisar o banco de dados do Internet Movie Data Base – IMDB) confirma a tese do sociólogo Ignácio Ramonet: os filmes catástrofes são uma operação psicológica de deslocamento, ao criar um objeto fóbico que fixa a angústia coletiva suscitado em situações de crise. Fixar o vetor da crise como uma calamidade de ordem natural para, dessa maneira, despolitizar os acontecimentos. Freud explica.

Roland Emmerich é o mestre dos filmes-catástrofe. Principalmente pela maneira como consegue combinar paranoia e teorias conspiratórias que sempre apontam para uma iminente destruição do planeta.

Em Independence Day (1996), a conspiração governamental para ocultar o segredo alienígena na Área 51; em Godzilla (1998), testes nucleares secretos criam um lagarto mutante gigantesco que, claro, vai querer destruir Nova Iorque; em O Dia Depois de Amanhã (2004), a conspiração para ocultar as consequências apocalípticas das mudanças climáticas; em 2012, tendo como pano de fundo a profecia Maia que supostamente previa o fim do mundo naquele ano, a conspiração das elites mundiais para ocultar a catástrofe geológicas que matará grande parte da população – enquanto a elite, com informação privilegiada, pagava fortunas para um lugar na Arca de Noé high tech.

E agora, Moonfall: Ameaça Lunar, com uma teoria da conspiração tão velha quanto a do pouso da Apollo 11 na Lua dirigido por Stanley Kubrick – a teoria de que a Lua é uma megaestrutura alienígena oca, criada por uma antiga raça para algum propósito não muito claro.

Dessa vez o “mestre do desastre” ao mesmo tempo nos aterroriza e nos fascina (com os espetaculares efeitos especiais CGI) descrevendo o que aconteceria se a Lua saísse de orbita e entrasse em rota de colisão com a Terra.

O filme é lançado num momento em que transforma esse típico exemplar do gênero filme-catástrofe num sintoma: as consequências econômicas globais da pandemia somadas à escalada da crise política no Leste Europeu com o desfecho final da invasão russa na Ucrânia.

Moonfall é um típico filme de um gênero bem particular, que não pode ser confundido com a tendência atual da “Covid Expoitation”, série de filmes que exploram as mazelas humanas em meio à pandemia global: Corona Zombies (mortos pela Covid viram zumbis vingativos), Coronavirus: The Movie (produção hindu), Corona: Fear is a Virus (em meio à pandemia, um grupo fica preso num elevador no Canadá), A Casa da Praia (uma pandemia que vem do oceano), a série Slborn (uma pequena comunidade numa ilha observa indiferente a pandemia global pela TV) ou o curta Apocalypse Norway (um grupo de adolescentes numa área costeira remota ignora a chegada de um vírus apocalíptico na Europa), entre outras inúmeras produções.

Roland Emmerich pega uma carona num gênero que ao mesmo tempo é um sintoma psicossocial e uma operação ideológica de Hollywood – uma tendência que cresceu principalmente no pós-guerra da década de 1950.



Historicamente, os filmes-catástrofes começaram operando um fenômeno de deslocamento no psiquismo coletivo, onde a ansiedade e medo coletivo da guerra nuclear e da guerra fria eram transferidos para um “objeto fóbico” representados por invasores alienígenas, formigas gigantes ou até pássaros assassinos – Os Pássaros, de Hitchcock.

Esse conceito de objeto fóbico é muito mais complicado do que a paranoia criada pelo medo de um inimigo externo. não se trata simplesmente de medo a um objeto. O próprio medo e o objeto, em si, já são sintomas. Como Freud afirmava em 1909, “aquilo que é hoje o objeto de uma fobia, no passado deve ter sido também a fonte de um elevado grau de prazer” (Cf. FREUD, S. “Análise de uma fobia de um menino de cinco anos”, Capítulo III parte II).

Segundo Ignácio Ramonet, esse gênero de blockbuster teria o papel habitual de “deslocamento”: as calamidades fílmicas teriam a função de “criar um objeto fóbico que permitiria ao público localizar, circunscrever e fixar a formidável angústia ou estado de aflição real suscitado pela situação traumática da crise” (Veja RAMONET, Ignácio. Propagandas Silenciosas. Petrópolis: Vozes, 2002, p.86).




Se acompanharmos a produção dos filmes desse gênero veremos que os picos de produção se localizam exatamente em contextos históricos de crise econômica ou política. Trabalhando com o banco de dados do IMDB (Internet Movie Data Base) referente à produção de disaster movies entre 1920-2021, percebe-se nitidamente essa tendência - veja gráfico com esses dados adiante.

Mas antes, vamos falar um pouco sobre a nova produção de Roland Emmerich.

O Filme

Os astronautas Jo (Halle Berry) e Brian (Patrick Wilson) testemunham um acidente bizarro enquanto fazem a manutenção de um satélite em órbita, causado por uma massa ondulante de matéria negra. 

Quando eles voltam à Terra sem um membro da tripulação (morto no episódio), ninguém acredita neles; Brian é culpado e colocado na lista negra da NASA. 

Corta para dez anos à frente, para conhecermos KC Houseman (John Bradley de Game of Thrones ), um blogueiro solitário com um gato chamado Fuzz Aldrin. Na verdade, um teórico da conspiração que vê antes de qualquer pessoa que a Lua saiu de órbita e seus detritos destruirão o planeta dentro de semanas. 




Cabe a Brian e Jo retornarem ao espaço e derrotar o que eles chamam de “o enxame”, a misteriosa matéria negra que causou o acidente orbital na abertura do filme – de alguma forma, aquela estranha forma de inteligência alienígena está conectado com o estranho comportamento do nosso satélite “natural”... ou não tão natural assim!

O ator Donald Sutherland está fascinante e assustador como o personagem guardião dos mais sombrios segredos da NASA: um deles, o de que a Lua é um artefato alienígena que parece ter sido hackeado por alguma forma sinistra de IA alienígena que pretende riscar a humanidade do Universo.

Moonfall é um filme-catástrofe vintage, que parece querer retornar aos tropos clássicos dos anos 1990: no meio da catástrofe, com a Terra sofrendo anomalias gravitacionais que destrói cidades com terremotos e tsunamis, há espaço para piadas sem graça, discussões de relacionamentos entre casais e famílias que tentam juntar os cacos de casamentos rompidos. Junto ao combo, crianças que se perderam dos pais e mulheres frágeis à espera do herói.

Mas, como uma pitada de contemporaneidade dos tempos de privatização das viagens espaciais: A NASA é retratada por um viés extremamente negativo, enquanto Elon Musk e suas empresas são mencionados com uma regularidade de arregalar os olhos, a ponto de parecer uma estratégia mercadológica de inserção de produtos – product placement.




O objeto fóbico dos filmes-catástrofe

Acompanhando o gráfico abaixo, podemos observar a confirmação da tese de Ignácio Ramonet: os filmes-catástrofe correspondem imaginariamente ao efeito de deslocamento, isto é, fixar o vetor da crise como uma calamidade de ordem natural para, dessa maneira, despolitizar os acontecimentos.

O primeiro pico de produções está no ápice da guerra fria com a ameaça nuclear dos anos 1950 e começo da década de 1960.

Nos anos de 1970 vemos a consolidação do gênero com Filmes sobre catástrofes (incêndios, maremotos, terremotos, panes tecnológicas, enchentes etc.) que surgiam de repente e abalavam a harmonia de uma comunidade começam a se multiplicar desde o filme Aeroporto (1970). Seguem-se O Destino de Poseidon (1972),Terremoto (1974), Inferno na Torre (1974), Heat Wave (1974), Aeroporto 1975Flood! (1976) entre outros.




Depois de décadas de crescimento e estabilidade econômica no pós-guerra, os anos 1970 foram marcados pela aceleração da inquietude com a crise do petróleo associado às sucessivas derrotas norte-americanas do Vietnã, conflitos raciais, o escândalo de Watergate e a moratória disfarçada de Nixon ao romper o acordo de Breton Woods e decretar o fim do lastro-ouro para o dólar.

Após as crises dos anos 1970, segue-se a era de ouro das políticas neoliberais da era Reagan e Thatcher nos anos 1980 e a estabilidade econômica mediante a socialização dos prejuízos pela dilapidação do Estado. Em uma década triunfante coroada com a queda do Muro de Berlin e o início da ordem global, despenca a produção de filmes desse gênero. O gênero será retomado na segunda metade dos anos 1990, época das primeiras grandes crises financeiras sistêmicas e globais: a crise do México em 1995, a crise das bolsas asiáticas em 1997-98 e o calote russo em 1998.  

A retomada dos filmes-catástrofes vem com filmes como IndependenceDay (1996), Daylight (1996), Twister (1996), Titanic (1997), Volcano (1997), O Inferno de Dante (1997), Impacto Profundo (1998) entre outros.




E na segunda metade dos anos 2000 com uma nova onda de instabilidade pela explosão da bolha especulativa imobiliária dos EUA em 2008 e o derretimento da Zona do Euro a partir de 2009, experimentamos um novo pico de filmes catástrofes: Cloverfield – Monstro (2008), Fim dos Tempos (2008), A Estrada (2009), 2012 (2009), A Epidemia (2010) etc. E a onda de filmes continua na década de 2010 como reflexo da demora da retomada da economia mundial: Invasão do Mundo: a batalha de Los Angeles (2011), Ataque ao Prédio (2011) ou O Impossível(2012).

E os anos 2020 começam com a pandemia global e, agora, o ressurgimento da Guerra Fria com a invasão da Ucrânia pela Rússia.

Porém, para haver essa operação psíquica de deslocamento descrita por Ramonet, é necessário o motor imaginário do objeto fóbico. Como Freud observou, esse objeto particular passa a ter uma característica fóbica – aquilo que no presente tem uma característica fóbica, significa que no passado foi fonte de prazer.

O fascínio pelos filmes-catástrofe se origina justamente dessa ambiguidade imaginária das crises: assim como Freud observou que o objeto de uma fobia foi fonte de prazer no passado, crises e instabilidades vislumbram a inesperada possibilidade de libertação com a destruição de uma ordem. Crises e desordens podem produzir desobediências civis e, no âmbito político, possibilidade de novos discursos críticos emergirem. Por isso a necessidade da o cinema transformar a crise em um objeto fóbico (assustador, repugnante etc.), para afastar do horizonte qualquer esperança de mudanças.

Em síntese, o filme-catástrofe explora de uma maneira peculiar o clichê mais geral da indústria de entretenimento de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem  - não importa o gênero ou tema, esse clichê está sempre presente como uma forma de elaborar a fantasia e as expectativas do espectador: ir ao cinema para quebrar a rotina e o desprazer do cotidiano ao ver, de forma ritualizada a ordem social, política etc. ser quebrada – bancos sendo roubados, terroristas explodindo coisas, a desordem da sociedade à beira do fim do mundo etc. 

E, chegando ao final, prepará-lo para retornar às suas obrigações diárias, como se nada tivesse ocorrido, com o retorno à ordem. 


 

Ficha Técnica


Título: Moonfall: Ameaça Lunar

Diretor: Roland Emmerich

Roteiro: Roland Emmerich, Harald Kloser, Spenser Cohen

Elenco:  Haller Berry, Patrick Wilson, John Bradley, Charlie Plummer

Produção: Centropolis Entertainment

Distribuição: Diamond Films

Ano: 2022

País: EUA

 

Postagens Relacionadas


Covid exploitation: o Mal e o demasiado humano em “Host” e “Safer at Home”



Por que Nova York precisa ser destruída?



Por que o mundo tem que acabar?



O fim do mundo não foi televisionado


 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review