sexta-feira, outubro 09, 2020

Trump e Bolsonaro desconstroem a lógica do Papai Noel na Propaganda

Até aqui as estratégias de comunicação da chamada “direita alternativa” vêm sendo bem-sucedidas. Fala-se muito no poder de eleições viciadas, cheias de aplicativos, robôs e fake news com postagens automáticas em grupos de Whatsapp e mineração de dados pessoais de usuários de redes sociais. Porém, essas ferramentas somente são potencializadas através de uma deliberada desconstrução do campo da Política. Principalmente de duas instituições que são a alma dessa esfera pública: a Propaganda e a Publicidade – através de discursos hiperbólicos cheio de pegadinhas e iscas para jornalistas fisgarem, desconstrói o seu núcleo: a “Lógica do Papai Noel”. A eficácia da Propaganda e Publicidade sempre esteve muito menos na persuasão e muito mais na fábula e adesão. Trump e Bolsonaro ridicularizam não apenas a política, mas a própria Propaganda ao expô-la como uma piada. Um exemplo: a forma proposital como o presidente expõe os currículos fraudados de seus indicados.

Em 2014 esse humilde blogueiro teve a oportunidade de assistir a uma palestra com um CEO de Estratégias de Comunicações e Marketing Corporativo da Hitachi Data Systems. O tema era “Marketing Digital, Comunicação B2B, Big Data/Dark Data e o impacto no Profissional de Marketing e Comunicação”.

Uau!!! O título do evento parecia alguma coisa como a “Teoria de Tudo”... Os mundos futuros que o CEO descrevia pareciam tornar as denúncias de Edward Snowden sobre a espionagem digital da NSA fichinha: um novo mundo onde o marketing estimulará a produção de novos produtos e serviços a partir da forma inteligente de armazenar dados sobre tudo e todos através da chamada internet das coisas (sistema global de registros de bens em um sistema wireless e nanotecnologia) - o desafio do armazenamento e análise estratégica de dados para encontrar pistas do comportamento e confiança do consumidor, geolocalização e padrões de tráfego que podem auxiliar no planejamento do negócio – clique aqui.

A fé e entusiasmo do alto executivo na livre iniciativa e pragmatismo comercial eram impressionantes – o pesquisador canadense Arthur Kroker chamava isso de “Capitalismo Pentecostal”. Para ele, tudo moralmente bom, porque voltado para o lucro. Via tudo com positividade, assim como Justin Rosenstein, o inventor do botão do “curtir” no Facebook, que inocentemente pretendia “espalhar positividade pelo mundo”. Mas tudo o que conseguiu foram comportamentos de usuários entre a depressão e a viciosidade por trás do lucrativo mercado da “Economia da Atenção”.

Esse blogueiro mal sabia que estava assistindo ao início de uma brutal mudança no paradigma de engenharia social e política: dois anos depois, assistíamos a antessala da destruição da democracia liberal – a manipulação de algoritmos, Big Data e psicometria que deu a vitória à campanha do Brexit. E, no mesmo ano, a vitória da campanha de Donald Trump, sob os auspícios da mineração ilegal de dados privados de usuários pela Cambridge Analytica.


E em 2018, o Brasil entra no admirável mundo novo da erosão da Política com a vitória de Bolsonaro com a luxuosa assessoria de Steve Bannon e seu movimento internacional alt-right assentado nas ferramentas dessa nova engenharia social.

A Política e a Democracia nunca mais serão as mesmas. 

Fazendo um rescaldo dessa catástrofe planetária, o que assistimos foi um autêntico movimento de desconstrução pós-moderna da Política (no sentido dado por Lyotard e Derrida, como vimos em postagem anterior – clique aqui). 




Campanha milionária não dá voto

Para começar, desconstrução começou primeiramente com a questão do dinheiro: campanhas milionárias ganham uma eleição? Trump e Bolsonaro provaram que não: Trump venceu as eleições investindo apenas a metade dos gastos da sua principal adversária, a democrata Hillary Clinton.

No Brasil, as coisas foram mais radicais: Bolsonaro, com apenas 8 segundos na TV e gastando R$ 1,2 milhões, conseguiu 49 milhões de votos. Enquanto Geraldo Alckmin gastou R$ 51 milhões e o maior tempo na TV, ficando com pouco mais de 5 milhões de votos.

Claro, o leitor poderá dizer que a figura “picolé de chuchu diet” de Alckmin não ajudou muito e que foi uma eleição viciada, cheia de aplicativos, robôs e fake news com postagens automáticas em grupos de Whatsapp.

Porém, uma eleição desconstruída a partir da nova engenharia social: a hegemonia das estratégias de viralização sobre as de massificação – a aplicação na política dos princípios mercadológicos descritos por aquele CEO da palestra.

Mas há um segundo movimento de desconstrução, acredito que mais radical porque atinge o próprio núcleo da instituição da Propaganda e da Publicidade na esfera pública política.

A eficácia da Propaganda e da Publicidade nunca foi uma questão de poder de condicionamento pela repetição ou da lógica do convencimento mediante provas. Mas foi, principalmente, uma questão da lógica de fábula e adesão.



A Lógica do Papai Noel

O pensador francês Jean Baudrillard chamava jocosamente essa lógica de “Lógica do Papai Noel”. Ele via na Propaganda e na Publicidade muito mais uma lógica da fábula, semelhante o que as crianças fazem com seus mitos sem se interrogar sobre a existência deles.

“A crença no Papai Noel é uma fábula racionalizante que permite preservar na segunda infância a miraculosa relação de gratificação pelos pais (mais precisamente pela mãe) que caracteriza a relação da primeira infância. (...) se fundamenta no interesse recíproco que as duas partes têm em preservar a relação. O Papai Noel em tudo isso não tem importância e a criança só acredita nele porque no fundo não tem importância.” (BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos, São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 176).

A Propaganda e a Publicidade funcionariam pela mesma lógica: nem slogans, textos ou informações são decisivos para a compra – seja mercadológica ou de discursos políticos. As pessoas não acreditam em Propaganda e Publicidade mais do que acreditam em Papai Noel. Então para quê elas servem? Para racionalizar a compra ou o voto. 

“Portanto ele não ‘acredita’ na Publicidade mais do que a criança no Papai Noel. O que não impede de aderir da mesma forma a uma situação infantil interiorizada e de se comportar como ela. Daí a eficácia bem real da Publicidade, segundo uma lógica, apesar de não ser do condicionamento-reflexo, não é menos rigorosa: lógica da crença e da regressão”, conclui Baudrillard. 

Slogans e toda a retórica publicitária nada mais seriam do que Papais Noeis oferecidos para o consumidor/eleitor criar uma “desculpa” a si mesmo e aos outros do porquê da aquisição. Um motivo nobre (acabar com a corrupção, com a pobreza etc.).

Em outras palavras, a instituição da Propaganda e a Publicidade funciona por meio de uma lógica cínica: elas fazem de conta que levam a sério e acreditam nos enunciados vendidos, enquanto o eleitor/consumidor finge que crê nas promessas políticas e de consumo. Funcionam como álibis para outros motivos menos confessáveis e, por isso, invisíveis nesse pacto: compulsão e viciosidade (sociedade de consumo); raiva e ressentimento (eleições).



Como desconstruir Papai Noel

  A desconstrução da política feita pela direita alternativa chega até a Propaganda e a Publicidade, a alma dessa esfera pública. Esse é um dos fatores de sucesso, pelo menos até aqui, da estratégia da comunicação da extrema-direita: expõe ao público essa Lógica do Papai Noel ao levar a Propaganda e a Publicidade ao nível metalinguístico e ao paroxismo – ao vivo, diante do público, ridicularizam esse pacto cínico, como se dissessem: estão vendo, é tudo falso! Nós somos autênticos! Então a truculência, racismo e intolerância se confundem com autenticidade e crítica ao status quo.

Como fazem isso? Veja por exemplo, caro leitor, no primeiro debate Trump X Biden. Parecia proposital em Trump um discurso hiperbólico repleto de “millions”, “billions”, “trillions”, “o presidente que mais criou empregos”, “meu plano de trilhões de dólares” etc. Trump fala que vai “distribuir gratuitamente para todos o remédio que me curou” (REGN-COV2) – ele sabe que é impossível, por ser ainda experimental. 

Trump exagera até o limite da credibilidade. Pegadinha! Olha, isso é a Política!

Ao levar ao paroxismo retórico, é como se Trump tirasse um sarro da própria propaganda política. Sua “autenticidade” é a relação autofágica de um político com a própria esfera política. Trump mostra que a propaganda e o discurso político não passam de um Papai Noel. Se os políticos tradicionais fingem acreditar no Papai Noel, Trump reverte de forma niilista a fábula.

Seguindo essa cartilha de comunicação alt-right, Bolsonaro segue os mesmos passos. Como não possui os dons discursivos (o estilo “voice roll”) de Trump, Bolsonaro investe no comportamento canastrão, como fosse um meme “thug life” vivo – sobre o papel da canastrice na política clique aqui.



A marca do imaginário alt-right é o niilismo desesperançado: como uma piada ou pegadinha, desconstrói a Lógica do Papai Noel, para no lugar instituir a terra-arrasada: a descrença na própria democracia.

Bolsonaro parece ser mais sistemático, como, por exemplo, nos episódios de indicados pelo presidente com “imprecisões curriculares”. O caso do indicado ao Ministério da Justiça (o falso doutorado de Carlos Alberto Decotelli) e ao STF (o pós-doc Mandrake de Kassio Marques) é como se ao expor propositalmente as fraudes dos currículos (ele joga as iscas para a grande mídia fisgá-las) quisesse desmoralizar poderes da República. Tenta criar uma espécie de bonapartismo civil. 

Por isso o fato de tanto Trump como Bolsonaro zombarem de debates ou discussões de programas ou projetos. Trump pegou COVID (e agora, recusa a hipótese de um próximo debate virtual procurando uma forma de melar tudo) e Bolsonaro, uma facada. 

Eles parecem a Dorothy abrindo a cortina para mostrar o Mágico de Oz e revelar a farsa. O problema que preferem aquela terra seca e devastada do Kansas do início do filme.

 

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